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Ó meu louro e doce como um bolo,
Amei o teu e-mail/ o teu e-mail amei/ ele me partiu ao meio/ eu ri tanto que nem sei! Bah, vou pintar isso num azulejo pra você. Ou não, enfim. Adorei a história e o poema sobre a camisa que o Darkon Roque (não o conheço) te deu. Confesso, porém, que tive dificuldade em te imaginar de camisa de linho branca. Ornou com suas botas de cowboy ou você tinha outro tipo de sapato para a ocasião? Se bem que, levando-se em conta meu exíguo guarda-roupa, não sou ninguém para julgar esse tipo de coisa.
Bueno, tô aqui no pátio da casa da minha irmã, no Laranjal, fumando um mata-ratos que meu padrasto me deu (ok, é um Shelton, causa mortis de boa parte da classe trabalhadora, suponho) e tenho uma térmica cheia de água quente pra esse mate que vou começar a sorver em instantes. Como não costumo fumar – só em casos respiratório-existenciais específicos – e tampouco pertenço à classe trabalhadora, não será por este Shelton que virei a desencarnar, certo? Morrerei em Paris com aguaceiro? Prefiro não saber. E agora me lembrei de um namoradinho que me disse, certa vez, muito lúcido, decidido: “Quando eu morrer, doem meus órgãos todos e o resto atirem pros cachorros”. A la pucha!
Que maravilha de adolescência, esta na Pelotas dos anos 80… Não tinha porra nenhuma pra se fazer aqui. Bom, continua não tendo, na verdade. Uma coisa que me entretinha bastante era escrever cartas. Minha amiga Paula D’Elia tinha descoberto, por meio de um primo comissário de bordo que fazia voos internacionais via Varig, uma misteriosa organização chamada International Pen Friends, com sede em Dublin, que funcionava da seguinte forma: você preenchia uma ficha com seus dados (sexo, idade, idiomas que falava, e ainda escolhia os países onde queria correspondentes) e mandava tudo com 10 dólares num envelope pra eles. Meses depois, chegava uma listinha com nomes e endereços. Tinha gente da Irlanda, do Canadá, da Islândia. Era um barato! Você estava em Saco Escrotal do Brasil, RS, e de repente podia trocar ideias com uma adolescente igualmente entediada em Reykjavík. Uma maravilha. Ainda hoje me lembro do barulho que as cartas faziam ao passar por baixo da porta lá de casa. Sssvvvich!
Depois que chegou a listinha com os nomes e endereços, a Paula e eu nos juntamos várias vezes para redigir as missivas. Ela falava mais inglês do que eu, que andava aí pelo primeiro semestre do CCAA. Uma vez botei numa carta: “I have a cat. He sleeps with me”. A Paula, sempre honesta, me chamou a atenção: “Mas o teu gato não dorme contigo!” Respondi: “Eu sei, mas é que aprendi a palavra sleep.”
Graças ao vocabulário adquirido com a Paula, meus pen friends anglófonos e a Bizz Letras Traduzidas, pude em alguns meses empreender sozinha construções lexicais mais complexas para descrever meu dia-a-dia em Pelotas, a city in the south of Brazil. Quase todas as cartas começavam com uma descrição do lugar em que me encontrava, e também do meu estado de espírito. Do tipo: “Estou aqui na sala ouvindo The Cure, é sábado à tarde, que saco, meu pai tá em casa e não me deixa levantar o volume do som. Mas quando tocar Caterpillar Girl, eu não quero nem saber”. E, claro, em seguida aparecia alguém, irmã, mãe ou empregada, pra dizer as famosas cinco palavras: “O pai pediu pra baixar”. E daí eu escrevia: “Meu pai pediu pra baixar o som. Típico. O seu pai também faz isso? Já vou aproveitar para trocar o lado da fita.” Tudo de extrema relevância.
Meu pai se foi há vinte e um anos, mas sempre tem alguém pedindo pra baixar o som. Eu continuo descrevendo o lugar onde estou e meu estado de espírito quando começo as cartas – as raras que ainda escrevo. Mas troquei The Cure pela Karina Buhr. Você já ouviu a Karina Buhr? Tem que ouvir.
Pra terminar, queria te contar sobre a minha primeira correspondente via International Pen Friends, a Louisa, uma menina dublinense. A gente se escreveu por uns quatro anos, até o início da década de 90, quando fui visitá-la. Infelizmente, a correspondência não sobreviveu àquela semana juntas, em que falei – grossa que nem um dedo destroncado – coisas como “O Rick Astley só pode ser gay” (ela gostava dele) e “Como assim você não ouve a Sinéad O’Connor?” Acabamos perdendo contato. Googlei o nome dela durante anos, mas foi inútil. A Louisa não deixava rastros na internet. Um dia, ao ponderar sobre a vida offline de minha ex-pen friend, escrevi “Louisa, por que não me googlas?”. Vai aí abaixo. (Ah, sim: ano passado ela me adicionou no Facebook. Tinha casado e mudado o sobrenome, por isso não a encontrava. Está morando em Abu Dhabi. É tudo o que sei. Porque ela me adicionou e ficou por isso mesmo. Nunca trocamos uma linha.)
louisa, por que não me googlas?
louisa, fevereiro de 91
em dublin, lembras de mim?
quatro anos de cartas e
cheguei à tua família, que me
tratou como filha, me entupiu
de comida. passeando
nos ônibus verde-ervilha,
como éramos saltitantes.
tu gostavas dos beatles, eu
gostava dos beatles. tu
gostavas de pizza, eu
gostava de pizza.
“e a sinéad o’connor
é uma gênia!”, eu bradava
aos passantes.
tu discordaste, séria.
eu calei, não queria agravantes.
foi porque a cantora careca
rasgou a foto do papa?
tu eras assim tão católica?
deverias ter dito antes.
louisa, ainda tenho as cartas,
a fita das bananarama
toda enredada. louisa,
por que não me googlas?
Com essa, me despeço.
Um beijo,
Angie F (era assim que eu assinava)