Wesley Duke Lee, Openended

Quadro a quadro

23.07.12

Uma grande caixa transparente, como um esquife, guarda uma tela vertical, aproximadamente do tamanho de um homem. Pendurado sobre a tela está um rolo de papel, aberto, como um banner, respingado de tinta de coloração cinza-esverdeada. Nesse grosso suporte estão desenhados, a lápis, dois retângulos: um vertical, que acompanha suas margens, e um horizontal, menor, posicionado um pouco acima do seu centro. Dentro deste encontra-se, colado, outro retângulo de papel mais fino pintado de um tom marrom e, por cima deste, outro papel retangular, de cor creme. Aparece, por fim, uma palavra manuscrita em tinta cinza, a pincel: “openended”. Uma mancha avermelhada, formando um pequeno “x”, espreme-se entre a letra “p” e a “e”. Mais respingos cinzentos cobrem também esta área quadrangular.

Estamos diante de um enigma. Como decifrá-lo?

Wesley Duke Lee
Openended, 1977
Técnica mista sobre papel
184x150cm

A palavra escrita em inglês é composta, de fato, por uma junção de outras duas, “open” e “end”, flexionadas verbalmente pela partícula final “ed”, que determina sua condição de particípio passado. Palavras que significam “abrir” e “terminar”. Não se constituem explicitamente como antônimas, mas podem ser assim entendidas se pensarmos na ideia de um processo que pode ser aberto e depois concluído. O neologismo, ou invenção de palavras a partir da fusão de outras, foi um recurso utilizado pela poesia e literatura modernas, especialmente no início do século XX, podendo ser exemplificado pela obra do escritor irlandês James Joyce, ou pela do brasileiro Guimarães Rosa, autores que criaram diversos termos, alguns pela soma do início de uma palavra e final de outra, também chamadas de “palavras-valise”.  “Openended”  remete, então,  a um estranho sentido de algo que teve início e fim quase simultaneamente.

E o que querem dizer os inúmeros respingos de tinta acinzentada e vermelha, e a sobreposição de retângulos e de papéis? Podemos cogitar que o retângulo marrom parece “aprisionar” a palavra, e que os respingos nos fazem pensar em um ambiente “cósmico” no qual todos os retângulos ou “caixas” flutuam. A mancha avermelhada, por sua vez, inevitavelmente remete à cor do sangue, como se fosse uma ferida aberta.

Poderíamos, portanto, interpretar o conjunto como uma metáfora de um aprisionamento e de um processo frustrado de romper tal barreira: a impotência de ação, de enfrentamento de um dado contexto. Mas de qual contexto estamos falando?

“Openended” é uma obra do artista brasileiro Wesley Duke Lee, datada de 1977. Duke Lee, falecido em 2010 aos setenta e oito anos, é um dos principais representantes da geração emergente no início da década de 1960, identificada com as novas figurações, neo dada e a arte pop, e que no Brasil foi também chamada de neo-realista. O artista, que no início de sua carreira participara do grupo Realismo Mágico, foi um dos fundadores da galeria e grupo Rex, que entre 1966 e 67 promoveu polêmicas e debates em torno do incipiente mercado de arte paulistano e nacional, visto como precário, injusto e fechado em relação ao acolhimento dos jovens artistas.  A partir da dissolução do grupo, Wesley segue sua trajetória de modo mais individualizado, mas sempre mantendo, segundo comenta Cacilda Teixeira da Costa, estudiosa de sua obra, uma distância crítica ao sistema e mercado de arte, mergulhando de modo cada vez mais profundo em uma obra singular, autobiográfica, autorreferente, intertextual e metalinguística, que constrói simultaneamente uma narrativa fantástica e imaginária, pela qual se costuma aproximá-lo também do movimento internacional surrealista.

O trabalho da coleção do Instituto Moreira Salles foi exposto pela primeira vez em 1977, durante a mostra individual Caligrafias e Ideogramas, organizada na Galeria Luisa Strina, em São Paulo.  O conjunto era composto por uma série de trabalhos concebidos de modo semelhante e que se caracterizavam pelo uso da escrita tomada como símbolo gráfico, ao modo da caligrafia oriental tradicional que valoriza tal operação como atividade artística. Mais especificamente, Wesley Duke Lee toma por princípio os Kakemonos, pinturas coladas sobre rolos para ser penduradas na parede, introduzidas no período Heian japonês (datado entre 784 e 1150), no qual a influência da religião budista predominava sobre a poesia e literatura, vistas como as artes principais da época.

Duke Lee desenvolveu uma aproximação à caligrafia desde criança, tendo estudado, durante sua formação nos Estados Unidos, com o calígrafo Paul Standard. Na década de 1970 interessa-se pela cultura oriental, pela sua escrita e pelo ideograma. E em várias de suas obras, em diversas fases, é possível identificar o uso de textos, manuscritos ou não, aplicados à imagem.  Assim, nessa série, o fascínio pela caligrafia encontra-se com a prática japonesa, aplicada a palavras ou frases, escritas em português ou inglês, geralmente de cunho filosófico, como a que estampou o cartaz da mostra: “O mundo é uma vasta experiência que ainda não atingiu seu objetivo”.

Em 1977 Duke Lee encontrava-se em posição relativamente marginal frente ao mercado de arte, mesmo expondo em uma galeria comercial. Por outro lado, o país ainda respirava o ar da ditadura militar, sob o governo do General Ernesto Geisel, que propunha uma “abertura lenta, gradual e irrestrita”, mas ainda plena de arbitrariedades e desmandos. A situação econômica era de crise e recessão, gerando descontentamento entre a população.

Em termos artísticos, é importante ressaltar que a década de 1970 é considerada em grande parte pela herança da arte conceitual e pelo uso de certo hermetismo metafórico, em especial em países nos quais a liberdade de expressão encontrava-se limitada por governos autoritários (caso do Brasil). O uso de palavras e frases pelos artistas, muitas delas em inglês, era frequente e estratégico, por permitir a manifestação, mesmo sutil, sobre os fatos e a realidade do mundo.

Visto esse contexto, é possível agora retornar à obra, e procurar uma conclusão para seu significado.

Ou melhor, um cluster de significados, pois as várias interpretações possíveis se somam de modo a trazer a complexidade da produção do artista: “Openended” é uma manifestação política, mesmo discreta e metafórica, tanto em relação às condições mais amplas do país, como em questão do contexto mais restrito às artes plásticas da época. A situação de clausura, impotência, impedimento é figurada: ao tentarmos abrir, o processo se interrompe, tal qual uma performance mínima e quase invisível que nunca se realiza. No entanto essa situação claustrofóbica encontra-se em um contexto maior, cosmos infinito e aberto, território da liberdade e da expressão. Transformar a escrita em desenho e pintura, trazer uma tradição antiga e de outro lugar, deslocar a linguagem, ritualizar o cotidiano, provocar o intelecto e criar a maravilha são armas do personagem fictício e autobiográfico Arkadin d´y Saint Amèr, criado por Wesley Duke Lee, e que perpassa sua obra.

Arkadin faz referência a Mr. Gregory Arkadin, personagem de um filme de Orson Welles que contrata um homem para investigar a sua memória supostamente perdida no passado. O nome reverbera a ideia de “Arcádia”, a visão utópica e nostálgica de um paraíso natural esquecido, origem mística da civilização. Misturado a um interesse obsessivo pela ordem dos templários, Arkadin se transforma, no imaginário do artista, em um cavaleiro deslocado que cambaleia entre a eminência do erotismo e da morte. Porém, traz de Welles também uma sofisticada ironia e humor, que pontua sua atuação artística, assim como a de Duchamp.

O passe mágico de abrir/concluir é o encanto proposto por Arkadin em seu gesto que desenha e designa, transportando-nos para um instante de suspensão impossível de um lapso de tempo. Arabesco abstrato, virtuoso, criado pelo prazer, contém em si a nota vermelha que espelha o abismo do fluxo vital da vida e da morte.

“Openended” pode ser visto, enfim, como representação da única fuga possível em um estado estanque e latente de uma real distopia.

* Marco Pasqualini de Andrade é professor de História da Arte na Universidade Federal de Uberlândia.

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