A primeira noite em Paris

Correspondência

20.01.12

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Chico,

Quatro horas de sono por dia é dureza. Tomara que essa fase já tenha passado. Eu tenho dormido seis horas. Não seis horas e meia ou cinco horas e quarenta e cinco minutos, mas seis horas, exatamente. Se eu dormir à 1h da madrugada, acordo às 7h. Depois fico remoendo sonhos na cama – ou aqueles primeiros pensamentos tenebrosos do dia – e tento dormir de novo. Quase nunca consigo. Antes eram só os sonhos que me mandavam recados (hoje briguei aos pontapés com cachorros e crianças), mas agora é o meu corpo que também quer dizer alguma coisa.

Mais que entender, me identifico com suas dificuldades sociais na noite do ano novo aí em Chicago. Jogar conversa fora é algo que talvez só seja possível fazer – do jeito que fazemos – em português e com amigos como nós. Se você reclama que não conseguiu concluir nenhum raciocínio, é porque ninguém estava pensando contigo.

Mas nem essa solidão acompanhada que se tem quando viajamos é ruim. Porque é iluminadora, Chico. Só entendemos melhor quem somos quando viajamos. E não apenas nós, mas as cidades e os países de onde viemos.

É no contraste que se existe, como se o contato com o outro – e com a indiferença do outro – nos ajudasse a desenhar nossas próprias fronteiras. Onde acabamos, onde começamos. Quem não tem essa vivência corre o risco de se confundir com o lugar que nasceu, a bandeira, o time de futebol, a família. O que é mais um jeito de ser invisível.

No Rio de Janeiro é o que mais se vê – ou melhor: não se vê.

Na semana que vem vou pra Macau, Chico. É um encontro de escritores que devo emendar com um mês e meio pelo sudeste asiático. Por quê?

Ainda não sei.

O Old Navy segue existindo, sim, com suas bandeirinhas na fachada, balcão sujo, telões de LCD e as pessoas mais desagradáveis e menos Saint-Germain possível. Ou pelo menos existia em março ou abril do ano passado, quando passei uma temporadinha meio trágica em Paris. Eu te contei que foi o primeiro bar que entrei na minha primeira noite na cidade, totalmente por acaso? E que o García Márquez escreveu sobre o Old Navy no seu necrológio para o Cortázar? Já citei isso em crônica, mas como não sei se você leu, repito porque é do caralho:

Alguien me dijo en París que él escribía en el café Old Navy, del boulevard Saint-Germain, y allí lo esperé varias semanas, hasta que lo vi entrar como una aparición. Era el hombre más alto que se podía imaginar, con una cara de niño perverso dentro de un interminable abrigo negro que más bien parecía la sotana de un viudo, y tenía los ojos muy separados, como los de un novillo, y tan oblicuos y diáfanos que habrían podido ser los del diablo si no hubieran estado sometidos al dominio del corazón. (…) Lo vi escribir durante más de una hora, sin una pausa para pensar, sin tomar nada más que medio vaso de agua mineral, hasta que empezó a oscurecer en la calle y guardó la pluma en el bolsillo y salió con el cuaderno debajo del brazo como el escolar más alto y más flaco del mundo.”

Ontem fui num bar que tinha uma jukebox/maquininha de karaokê parecida com a do Old Navy. Comi a melhor rabada de boteco da vida. Não sei o nome, mas era na Vila Cruzeiro, ali na Penha. Passei a tarde com o Otávio Jr., um amigo que tem um projeto de leitura no Complexo do Alemão. Estávamos ciceroneando um casal de amigos que está hospedado aqui em casa. O Alemão tem teleférico e exército, o Cantagalo tem elevador e polícia. Mas continuam sem saída.

Que mais? O verão chegou no Rio, Chico, e eu não gosto do verão.

Fala das suas aulas. Vale? Vamos escrever um roteiro juntos? Eu tenho um argumento – já está traduzido pro inglês, aliás – que eu quero te mostrar.

Beijo,

JP

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