Oi, André,
Eu também fiz essa travessia da Lagoa da Conceição em Florianópolis. Foi a primeira travessia que nadei na vida, eu tinha uns dezesseis anos, acho. Na época o percurso era de 2300m. Falei brevemente dessa prova num texto sobre a Travessia dos Fortes que publiquei na Piauí uns anos atrás. Comentei a violência da largada e a visão de sofás, cuecas e detritos diversos no fundo da lagoa, era algo assim. Existe uma foto horrorosa que meu pai tirou na chegada, estou com uma garrafa d´água na mão, de sunga e óculos na testa, inchado e deprovido de pêlos corporais, com uma expressão patética no rosto, parecendo alguém que acaba de acordar de uma anestesia geral após um grave acidente de carro. Está num mural de fotos familiares na casa dos meus pais e faz parte das Fotos Que Finjo Que Não Vejo, como outra em que estou de terno e gravata, muletas e pé enfaixado.
Com relação a atividades físicas, também não gosto da “papagaiada” que tu mencionou: a glorificação da fadiga extrema, a competição, as seitas de atletas e essas coisas. Nunca fui um esportista dedicado, jamais tive pretensões profissionais nesse sentido e meu senso de competitividade é nulo, tanto que me mantenho longe de esportes coletivos, que envolvam bolas ou que sejam focados demais na ideia boba de vencer. (Abro exceção pro tênis, esporte que idolatro, mas tive aulas aos doze anos e descobri que era descoordenado demais pra coisa.)
Desde a adolescência, minha relação com exercícios é de certa forma análoga à minha relação com os livros ou com o intelecto em geral: há um aprendizado infinito no enfrentamento de cada um desses mundos e, embora sejam diferentes a ponto de parecerem contraditórios para muita gente, eles são na verdade manifestações complementares, e igualmente importantes, do nosso organismo. Nunca achei que a mente – ou a alma – habitasse o corpo. Mente e corpo são a mesma coisa, e a sensação de que uma habita o outro é apenas uma piada não-intencional da consciência.
Talvez por isso eu tenha me impressionado tanto com a leitura de um livro do Yukio Mishima chamado Sol e Aço, é um livrinho da Brasiliense traduzido pelo Leminksi, e creio que é a última coisa que o Mishima escreveu antes de cometer harakiri diante do comandante das forças armadas em protesto à decadência dos valores militares e tradicionais do Japão etc. Nesse ensaio poético, ele defende que é preciso investigar o significado da morte ao mesmo tempo com o espírito – a investigação intelectual – e com a carne – a investigação física. Em primeiro lugar, o exercício talha o corpo para exercer um contraste com a morte e, assim, ressaltá-la como objeto da busca intelectual. Ou, ao estilo do Mishima (tive que ir procurar o livro nas minhas caixas, sorte que tava na de cima): “O que salva a carne de ser ridícula é a presença da morte que reside num corpo vigoroso e saudável”.
A partir daí, sua ambição é alcançar uma combinação entre a arte e a ação, o que não poderia ser feito sem “a assunção de uma polaridade dentro do eu e a aceitação da contradição e do choque”. Mais pra frente, ele diz:
Agora entendo que o tipo de tarefa de polir a imaginação para a morte e o perigo acaba tendo o mesmo significado de afiar a espada, tarefa que há muito tempo vinha me chamando de longe; só a fraqueza e a covardia me fizeram evitá-la. Manter a morte na alma dia a dia, focalizar cada momento à luz da morte inevitável, colocar em um mesmo lugar nossos mais sinistros presságios e nossos sonhos de glória… se isso era tudo, então era suficiente transferir ao mundo da carne o que há muito tempo eu vinha fazendo no mundo do espírito.
Como homem e artista radical que era, o Mishima levou a ideia a um patamar de ação que poucos ousariam e que está evidente em aspectos conhecidos da sua biografia: a rotina insana de exercícios físicos, lutas marciais, glorificação do militarismo e da coragem física etc. E apesar de eu me sentir atraído por esse tipo de coisa somente num plano mais idealizado ou estético, entendo bem do que ele fala nesse outro trecho:
Minha paz estava mais do que em qualquer lugar – só ali, aliás – nos pequenos renascimentos que ocorriam imediatamente após o exercício. Agitação contínua, mortes contínuas sem parar, fuga incessante da fria objetividade – nesse momento, eu não podia mais viver sem esses mistérios. Nem é preciso dizer: dentro de cada mistério, uma minúscula imitação da morte.
O que eu busco ao nadar ou correr ou praticar algum outro exercício é algo semelhante a isso, embora certamente num grau mais comedido. O transe dos movimentos repetidos da natação, a concentração na respiração e no desenho das braçadas durante longos períodos, sem enxergar quase nada, ouvindo apenas o ruído da água agitada, sentindo o deslizamento eficiente de um nado vigoroso e bem coordenado, podem levar a um auto-abandono que nos põe em contato com os mesmos mistérios que se pode investigar intelectualmente, mas numa experiência física, ao mesmo tempo antagônica e complementar ao espírito. A face antagônica é bastante clara, como ele exemplifica: “Suponha que eu agite os braços. Ao fazê-lo, perco parte do sangue intelectual. Suponha que eu me permita, mesmo que por um instante, a pensar antes de dar um golpe. Nesse momento, meu movimento está condenado ao fracasso.”
A face complementar é que parece mais insondável. O Mishima sonha com o lugar onde as duas coisas devem se encontrar, “um território afim àquele reino supremo onde movimento torna-se repouso e repouso, movimento.” Ele conclui que esse princípio maior onde as duas coisas se encontram só pode ser a própria morte.
Uma parte do perfil do Hermano, o protagonista do Mãos de Cavalo, é diretamente inspirada na leitura de Sol e Aço. Aquela coisa da relação meio masoquista dele com os exercícios físicos, a tentativa de superar intelectualmente sua obsessão com o sangue e sua covardia essencial. São temas que me encantam.
Não te assusta, não há a menor possibilidade de que eu cometa suicídio ritual aos pés do Nelson Jobim nem nada do tipo. Mas por mais extremo que seja o pensamento do Mishima, assim como extrema foi a maneira com que ele transformou o pensamento em ação, encontrei nesse livro, pela primeira vez, uma expressão clara de algumas coisas que eu já intuía, uma ligação subterrânea entre os esforços de ler toda a obra de um Proust ou Melville e o de encarar a nado os redemoinhos do estreito de Dardanelos.
Mas eu não sou um homem de extremos intelectuais, tampouco físicos. Me contento com – ou estou limitado a – uma faixa média de pensamento e experiência. Tenho certeza de que isso está claro no meu comportamento e também no que escrevo, e já passei do ponto em que poderia ter vergonha disso. Tem aquela frase do Iberê Camargo, “eu não toco a vida com a ponta dos dedos”. Pois é justamente o que eu faço. É o que está ao meu alcance fazer. Tateio um pouco e depois imagino, embora não seja cego e possa enxergar muito bem toda a extensão da experiência em que me abstenho de enfiar a mão (não creio que se trate de uma escolha). E a verdade é que nadar uns 2 ou 3km na Pinheira ou dar quatro voltas correndo no Parque da Redenção não apenas me basta, como sobra.
A mensagem final talvez seja essa: não se encontra o mistério somente nos extremos. Ninguém precisa entrar numas de competir ou se matar de cansaço pra dialogar fisicamente com o mundo por meio de um exercício. Sei lá, se eu fosse tu eu voltava pro boxe. Te imagino fazendo kung fu também. Nossa, imagino muito.
E fica aqui em casa em março, óbvio.
Um abraço,
D. Galera