Muitos anos atrás, quando um amigo francês veio a São Paulo, a primeira coisa que me perguntou, enquanto sobrevoávamos os Jardins na rota de aproximação do aeroporto de Congonhas, foi se aquele imenso quadrilátero de árvores era o parque central da cidade. “Não, é um loteamento”, respondi.
Se São Paulo fosse Nova York, como muitos paulistanos gostariam de crer, aquilo seria de fato um parque e as pessoas que vivem ali teriam que se contentar em pagar os olhos da cara para viver ao redor do parque, com a vista do parque, o que já seria bem melhor do que pagar os olhos da cara para viver com vista para o esgoto, que é o que muitas delas fazem hoje quando, por razões de segurança ou por pragmatismo (para poder enfim desfrutar de um shopping center no térreo, no lugar da portaria, por exemplo), decidem se mudar de suas casas para condomínios às margens de um dos rios que cortam a cidade.
Um casal de amigos, moradores dos Jardins, resolveu comemorar o aniversário de um ano das filhas numa pracinha do bairro. A ideia de uma festa em praça pública não podia ser mais simpática. Me lembrou os fins de semana em Berlim, quando a velha pista de Tempelhof, o antigo aeroporto de Hitler, hoje desativado, se transforma na maior confraternização de churrasqueiros do mundo – ou se transformava. Durante muitos anos, Berlim foi uma exceção mundial, uma metrópole alternativa, ao mesmo tempo cosmopolita, pobre e acessível. Tempelhof resistiu até recentemente, mas parece que agora também a sorte dos churrasqueiros berlinenses já está ameaçada pela especulação imobiliária.
Na festa das filhas dos meus amigos, reencontrei gente simpática, que eu não via há anos, como uma antiga chefa a quem devo meus primeiros fios de cabelo branco e que se espantou ao me rever depois de tanto tempo: “Mas você está completamente grisalho!”.
Também encontrei gente que eu não conhecia e que me pareceu muito simpática à primeira vista, como um casal sexagenário que passeava com uma cadelinha Jack Russell pelo bairro e que foi atraído pelas caipirinhas servidas num balcão armado num canto da praça. Não sei se é porque essa raça de cães me faz lembrar alguém que conheci e de quem tenho boas lembranças, mas o fato é que de uns tempos pra cá comecei a cogitar em adquirir um Jack Russell. E acabei dissuadido da ideia pela recorrência de relatos que insistiam em associar o pequeno animal ao protagonista de uma versão canina de O médico e o monstro.
Mais uma razão para me surpreender com o fato de o casal passear sua cadelinha sem coleira pelos Jardins. Me aproximei e fui direto ao que me interessava. Perguntei se a cadelinha, aparentemente tão adorável quanto os donos, não era no fundo o demônio. “No início, sim. Destruiu a casa inteira. Mas agora se acalmou. No começo, a gente trazia ela pra cá e deixava ela correr até ficar exausta. Tá vendo? Acabou manca de tanto correr na infância”, respondeu a mulher, enquanto o marido pedia um drink ao barman.
“Mas essa raça não costuma atacar outros cachorros?”, eu insisti.
“Bobagem. São uma doçura.”
De fato, a cadelinha corria de um lado para o outro, confraternizando com todos, sem discriminação entre humanos e animais. Até aparecer um cachorro preto, também muito simpático, que tinha o dobro do tamanho da cadelinha e que passeava desavisado, na coleira, ao lado da dona. A cadelinha Jack Russell notou imediatamente o recém-chegado e se aproximou, como vinha fazendo com os outros seres vivos na praça. Mas em poucos segundos já estava engalfinhada com o pobre cachorro, depois de ter avançado no pescoço dele com fúria assassina, latindo e rosnando, como se estivesse num teste para o filme A profecia.
O cachorro tentava entender e se defender como podia da violência do ataque. Quando a dona da cadelinha enfim se adiantou para apartar a briga, como se tudo aquilo fosse a coisa mais natural do mundo, o marido, já com a caipirinha na mão, virou-se pra mim e disse, com um sorriso maroto de cumplicidade: “Basta preto querer entrar na festa”. Como eu demorei a entender, ele repetiu, para não haver dúvida: “Ela não deixa preto entrar na festa”.
Eu não sabia como reagir. Decidi sair de perto. Continuo inconformado com a cara-de-pau do sujeito que conta a um estranho na rua a mesma piada que deve ser sucesso garantido entre os amigos que ele recebe no aconchego do lar. Que é que faz um sujeito supor que outro branco, por ser branco, numa festa de crianças nos Jardins (na qual havia negros entre os convidados), deve ser necessariamente racista, como ele?
O episódio aconteceu poucas semanas antes de um júri nos Estados Unidos decidir não indiciar o policial branco Darren Wilson pela morte de um jovem negro desarmado, Michael Brown, em Ferguson, Missouri, desencadeando uma série de protestos contra a discriminação racial, nas principais cidades do país.
A propósito do caso, a escritora de origem haitiana Edwidge Danticat publicou no blog da The New Yorker uma pequena lista com os nomes de vítimas negras da arbitrariedade policial americana dos quais ela se lembra desde que se mudou para os Estados Unidos, supondo que muitos outros nomes nunca chegaram nem chegarão à mídia ou aos seus ouvidos. Fiquei tentando me lembrar do nome de alguma vítima da discriminação racial da polícia brasileira. Em vão. E fiquei pensando se o fato de eu não me lembrar (de não saber) de nenhum nome e de nunca ter pensado nisso não me faz, mesmo a contragosto, um candidato natural a ouvinte das piadas do dono da cadelinha Jack Russell.