As folhas de contatos e o fotojornalismo

Fotografia

26.05.15

As observações de Kristen Lubben na introdução do livro Magnum – Contatos podem ser retomadas para apresentar Contatos 1: A grande tradição do fotojornalismo, série de conversas filmadas sobre fotografia. O DVD será lançado dia 30 de maio no IMS-RJ, às 16h, com exibição dos curtas sobre Henri Cartier-Bresson, William Klein e Raymond Depardon. Diz Kristen na introdução do livro:

“Este volume acompanha a evolução e o abandono de uma forma de trabalho que era tão onipresente a ponto de ser vista como parte inevitável e inextricável do processo fotográfico: o uso das folhas de contato como registro do que foi fotografado, ferramenta para a edição e índice para um arquivo de negativos. A folha de contato, criada mediante a impressão direta de um rolo ou sequência de negativos, permite ao fotógrafo a primeira visão daquilo que ele ou ela capturou no filme, mas também propicia uma visão do seu processo criativo. Ao armazenar cada passo ao longo do caminho que conduz a determinada imagem, ela dá a sensação de que estamos ao lado do fotógrafo e vemos através de seus olhos. Com características peculiares a cada profissional, a folha de contato mostra como a imagem foi construída: terá sido montada ou foi obra do acaso? Terá o fotógrafo reparado numa cena com potencial e trabalhado com afinco para chegar à imagem bem-sucedida ou tudo foi devido ao lendário instante decisivo? A folha de contato, agora tornada obsoleta pela fotografia digital, incorpora muito daquilo que é tão atraente na arte fotográfica: o senso do tempo em marcha, o rastro duradouro de um movimento no espaço, a confirmação visível de que a fotografia constitui uma representação transparente da realidade”.

Folha de contatos de Raymond Depardon

Os doze depoimentos reunidos neste primeiro DVD da série Contatos (clique aqui para ver a lista completa de fotógrafos entrevistados) reforçam essa sensação de estar ao lado do fotógrafo apontada por Kristen. Aqui, é o próprio fotógrafo que, diante da câmera cinematográfica, nos convida a acompanhar seu processo criativo, analisar com ele a folha de contatos, descobrir com ele como a imagem final foi construída. Ou mais, com os olhos do fotógrafo descobrir na folha de contatos o gesto fotográfico como uma espécie de memória do instante, como sugere William Klein num quase autorretrato feito para A grande tradição do fotojornalismo: “Folha de contatos: 36 exposições. Seis tiras de seis fotografias tomadas uma depois da outra. Você lê as tiras da esquerda para a direita, como se fosse um texto. É o diário do fotógrafo. Você vê o que ele viu através do visor, suas hesitações, seus sucessos, suas falhas, suas escolhas. Ele escolhe um momento, um ângulo. Escolhe outro momento, outro ângulo. Ele insiste. Ele para. É raro ver os contatos de um fotógrafo. Só vemos a imagem escolhida, não vemos o antes ou o depois, como numa folha de testes. O que você sabe do trabalho de um fotógrafo? Uma foto, digamos, tirada a 1/125 de segundo. Uma centena de fotos, digamos 125, já é uma obra. Mas podemos dizer também que isso corresponde a apenas um segundo. Vejamos mais, digamos 250 fotografias, uma obra considerável – dois segundos. A vida de um fotógrafo, até mesmo de um grande fotógrafo, corresponde a uns poucos segundos”.

“Lembrança, mas não memória. Pedra bruta, vista e nem sempre observada. Registra tudo: a intensa surpresa, a alegria e o ódio, o ‘por que não?’ e o ‘talvez’, e até mesmo aquele instante em que, sem convicção, o indicador fica pairando sobre o obturador à espera que alguma coisa aconteça”. É assim que Henri Cartier-Bresson define a folha de contatos em resposta ao questionário que a revista francesa Les Cahiers de la Photographie enviou a 30 fotógrafos para compor a edição número 10, Les Contacts, no segundo trimestre de 1983. Cartier-Bresson diz ainda que não se interessa pela fotografia em geral, “apenas pela reportagem, pelo disparo intuitivo do obturador diante de um fato”. As folhas de contato, para ele, são um utensílio “tão insignificante e revelador quanto uma gravação feita sob a poltrona de um psicanalista ou o divã do analisado”. Nunca fez análise, acrescenta entre parênteses, mas queria sublinhar com o paralelo que importante de verdade não é tanto o que a folha de contatos nos diz, mas a análise do que ela nos diz. No depoimento a Robert Delpire em A grande tradição do fotojornalismo, Cartier-Bresson faz novo paralelo entre o trabalho de um psicanalista e o do fotógrafo na folha de contato: “O que importa na fotografia é o tempo. Tudo é não-permanente. Nada existe para a perpetuidade, tudo muda de segundo em segundo. Na fotorreportagem, nosso diário de bordo, só importa o flagrante, o instantâneo. É preciso associar a emoção recebida do tema ao prazer da composição plástica, e a intuição é a regra de ouro para buscar o equilíbrio das formas. Para mim, esses são os princípios. O mais vem do inconsciente – na verdade, não sabemos. Vem do inconsciente. E por fim, da folha de contato. Ela é mais ou menos o divã do analista. Uma espécie de sismógrafo. Registra o instante. Está tudo lá: o que nos surpreendeu, o que conseguimos registrar, o que perdemos, o que desapareceu”.

A grande tradição do fotojornalismo: Don McCullin, na conversa com Sylvain Roumette, diz que não confia nas folhas de contato. Confia na memória, nas fotos “gravadas com ferro em brasa na minha mente, como uma cicatriz. Os contatos são ótimos para os editores, mas eu quero manter o controle sobre o meu trabalho. Na guerra ou em outro lugar, assim que tiro uma foto sei se ela vai queimar em minha memória. Sei qual saiu bem. Vai ser aquela e não outra. Um fotógrafo sente”. Mário Giacomelli, no depoimento para Yervant Gianikian e Angela Ricci Lucchi, diz que as folhas de contato não servem para grande coisa, porque a imagem é pequena demais para revelar o rosto das pessoas: “No contato, não vejo nada e eu preciso ver o rosto, a expressão das pessoas, na fotografia”. E Leonard Freed diz para Alain Taieb que gosta das folhas de contato porque elas são um desperdício – “em 99% dos casos contêm apenas os erros do fotógrafo. Mas, precisamente, existem coisas na vida que fazemos porque não têm qualquer utilidade. As fotos acabadas vivem independentes do fotógrafo, ganham vida própria. Já as folhas de contato são inteiramente minhas, registro pessoal, não servem para ninguém mais”.

Rascunho, anotação, parte inacabada do processo que conduz à imagem final, “a folha de contato ainda não é a fotografia”, diz Elliot Erwitt, “e por isso não deve ser mostrada a ninguém. Um outro olhar pode levar a conclusões erradas ou, pior ainda, pode levar a conclusões corretas, mostrar que a foto foi feita um segundo antes ou um segundo depois do instante exato. Existem regras para a fotografia como para as artes plásticas, e um bom instantâneo precisa ser primeiro uma boa imagem. Numa folha de contatos podemos ver vários bons flagrantes, emocionalmente fortes, mas apenas um desses registros combina emoção e uma boa composição visual”. E, conclui, “talvez, para proteger a mística e os erros dos fotógrafos, as folhas de contato devem permanecer tão íntimas quanto o que se diz para um padre no confessionário ou para o psicanalista nas sessões de análise”. Como Erwitt, como Cartier-Bresson, Freed também vê um certo quê de divã de analista na fotografia: “Ela deve ser uma atividade divertida, ou lucrativa – ou então um substituto da psicanálise”. No asilo de San Clemente – mais exatamente, na folha de contatos com as imagens de San Clemente – Raymond Depardon diz (em A grande tradição do fotojornalismo) que “no asilo o fotógrafo, ele também, não é normal, parece um louco numa obsessiva procura do instante decisivo e do ângulo correto. O fotógrafo é um voyeur profissional”. Um voyeur: Helmut Newton concorda, “todos os fotógrafos são mais ou menos voyeurs” e ele, ao fotografar modelos nus, “mais voyeurque qualquer outro”.

Contatos: se não começaram exatamente com o aparecimento da Leica, tornaram-se prática comum no jornalismo fotográfico depois dela. Criada em 1914, por Oskar Barnack, como uma espécie de complemento para as câmeras de cinema, como um acessório para testar a sensibilidade de filmes cinematográficos de 35mm numas poucas fotos antes de começar a filmar. Depois de ganhar existência própria e ser comercializada a partir de 1925, ela passou a oferecer a possibilidade de trabalhar na fronteira entre a fotografia e o cinema. O fotógrafo disparava uma sequência de fotos – muito rapidamente, graças à leveza e agilidade da câmera com um rolo de 36 poses – para a posterior seleção da imagem final na folha de contatos, numa operação não muito distante da ordenação dos copiões de um filme na sala de montagem. Uma clássica foto do diretor Sergei Eisenstein examinando uma tira de filme com uma lupa na mesa de montagem registra um gesto não muito distante daquele do fotógrafo diante da folha de contatos.

A possibilidade de registrar várias fotos num breve intervalo de tempo, para a escolha de uma imagem-síntese do acontecimento ou para a montagem de uma sequência fotográfica – um “cineminha”, na gíria das redações de jornais e revistas –, logo se ampliou com uns poucos acessórios para a Leica: um motor movido a corda para disparar 9 fotos num intervalo de 12 segundos e um modelo especial com chassis para 250 fotos no lugar dos pequenos rolos de 36 poses. O processo de criação de uma imagem fotográfica, então, passou a se realizar em dois diferentes instantes. Uma fotografia deixou de ser a imagem definida exclusivamente no instante em que o fotógrafo pressiona o disparador da câmera e a resultar, em igual ou maior medida, também do instante em o fotógrafo, então sem câmera alguma, a olho nu, na folha de contatos, fotografa de novo as fotografias que registrou ao vivo e quase só por instinto, como numa escrita automática.

Antes da foto, um “cineminha”. Mais ou menos assim como a Leica veio depois do cinema. Mais ou menos assim como, para Cartier-Bresson o cinema veio antes da fotografia. Seu interesse pela foto veio do cinema: Os mistérios de Nova York, com Pearl White, (The Exploits of Elaine, filme em série de Louis J. Gasnier e Georges B. Seitz, EUA, 1914); O lírio partido, de David W. Griffith (Broken Bloosoms or The Yellow Man and the Girls, EUA, 1919); Ouro e maldição, de Erich von Stroheim (Greed, EUA, 1924); O encouraçado Potemkin, de Sergei Eisenstein (Bronienosets Potiomkin, URSS, 1925). A paixão de Joana d’Arc, de Carl Theodor Dreyer (La passion de Jeanne d’Arc, França, 1928). “Esses filmes me ensinaram a ver”, disse certavez. “Só mais tarde conheci fotógrafos que já tinham uma obra, como Eugène Atget.E, finalmente, quando descobri a Leica, ela se transformou no prolongamentode meu olho. Passei a andar com ela para cima e para baixo nas ruas, tirando fotosde acontecimentos vivos, em busca da imagem com o essencial da cena”. Como os fatos vivos se movem para todos os lados, Cartier-Bresson conta que muitas vezes continuava a fotografar mesmo “depois da sensação de ter conseguido a foto mais forte, a mais expressiva”. Cineminha, mas com o ostinato rigore de Leonardo, pois um fotógrafo não deve se reduzir a um espectador passivo, “o trabalho depende das relações que estabelecemos com as pessoas que fotografamos”. Um fotógrafo não deve tratar a câmera como se ela fosse uma metralhadora e, impaciente, disparar rápida e mecanicamente, “sobrecarregar-se de esboços que, na realidade, desviam a atenção do principal. O que procuro desesperadamente é a foto única, a que é completa em si mesma por seu absoluto rigor.”

Fotografia: “Na verdade, não sabemos, vem do inconsciente” – resume  Cartier-Bresson. Vem de um tempo de espera. O olhar à espera de uma imagem “como um anzol à espera do peixe”, observa Robert Doisneau, para quem um fotógrafo não é um caçador de imagens, “é um pescador de imagens”. De quando em quando, uma imagem morde a isca. “Uma fotografia é um encontro, uma surpresa”, diz Marc Riboud na conversa com Alain Taieb para A grande tradição do fotojornalismo. A folha de contatos, para Riboud, é “uma sucessão de tentativas equovocadas, de notas falsa à procura daquela que está no tom certo”. Edouard Boubat tem sensação idêntica. No depoimento para Roger Ikhlef, diz que “uma fotografia é um presente”. “O fotógrafo, a rigor, não tira uma foto, e sim recebe a foto como um presente. Uma foto é o presente, é uma presença e é um presente. Em Nova York, na Brooklyn Bridge, encontrei uma jovem olhando para o mar. Fotografei. Um presente. Ela estava vendo o infinito, e para mim a fotografia está sempre olhando para o infinito”.

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