Zingg, Andrew Zingg

Fotografia

13.11.15

Nascido e criado nos subúrbios de São Francisco, na Califórnia, Andrew Zingg, 25 anos, passou esses últimos 10 meses no Brasil tentando entender quem foi afinal seu avô, o também americano, só que de Nova Jersey, David Drew Zingg. Fotógrafo (seu acervo está sob a guarda do Instituto Moreira Salles), cronista, crítico de botequim, meio ator e meio cantor, totalmente boêmio, figura celebrada por celebridades do eixo Rio-São Paulo, onde esteve radicado desde 1964, o pai do pai de Andrew morreu aos 76 anos em julho de 2000, praticamente sem dar à família notícias de seu paradeiro no exterior. Um belo dia saiu de casa no número 151 da Central Park West, em Nova York, dizendo à mulher e aos três filhos que ia fazer um ensaio fotográfico no Rio de Janeiro para a revista Look, e só voltou a estabelecer contato com eles 20 anos depois, em 1984. Andrew viu o avô uma única vez na vida, tinha na época 3 anos de idade. Depois disso, David Zingg só reencontrou parentes – os filhos Peter, Christopher e Jonathan – já muito doente, pouco antes de sua morte em São Paulo.

Andrew cresceu sem a mágoa do abandono, herança que não lhe foi transmitida, mas também custou a dar pela falta do avô ausente, arquivo morto nas conversas de família. Atribui a uma certa “conexão cósmica” o interesse que passou a ter pelo grandfather através da música brasileira. De repente, garotão ainda de high school, descobriu que os discos de Caetano Veloso e Gilberto Gil que escutava, tinham na capa fotos assinadas pelo velho Zingg. Já na Wesleyan University, sua turma no curso de Estudos Latino-Americanos custou a acreditar quando contou que era neto do autor daquelas fotos de Tom Jobim, João Gilberto e Stan Getz apresentadas em sala de aula: “Quem é esse cara?” – ouviu de vários colegas.

Sem ter uma boa resposta para dar aos amigos, “voltei para casa e fui direto pesquisar na internet. Eu praticamente conheci meu avô no Google”. Ficou sabendo naquela noite que, antes mesmo de fugir para o Brasil, David Zingg não só deu a ideia como articulou a realização do show que apresentou a Bossa Nova ao mundo no palco do Carnegie Hall em novembro de 1962. Em 2009, Andrew começou a escrever por conta própria sobre David. Ano seguinte, com o dinheiro de uma bolsa da faculdade para projetos de verão, veio ao Brasil pela primeira vez pesquisar o antepassado mais a sério. Ficou um mês na ponte aérea Rio-São Paulo e o material que levantou em entrevistas com amigos do avô – entre eles Caetano, Gil, o jornalista Matinas Suzuki Jr e o colecionador de arte Kim Esteves – rendeu a Andrew nova bolsa para voltar ao País no verão seguinte. O assunto virou depois tema de sua monografia na faculdade, trabalho que o credenciou a passar os últimos 10 meses no Brasil às custas do Programa Fulbrigth, bolsa de intercâmbio educacional de alto nível entre o Brasil e os EUA.

David Drew Zingg. Autorretrato, 1982. (Acervo IMS)

Andrew Zingg chegou ao Rio em fevereiro de 2015 e, desde então, tem sido figura fácil de encontrar na Reserva Técnica de Acervos do IMS. “Logo percebi que não seria um processo rápido, tem muita coisa além das 250 mil fotografias”.  A pesquisa vasculhou grande parte do material impresso acumulado nas gavetas, arquivos e escaninhos do fotógrafo, tudo agora já devidamente inventariado e acondicionado em 245 caixas pelo pessoal da Reserva Técnica Fotográfica do IMS. São centenas de recortes de jornais e revistas, dezenas de cadernos de anotação – verdadeira mania de Zingg –, um sem número de cartas, bilhetinhos, memorandos, cartões de embarque de companhias aéreas, convites, contas de luz, gás e telefone, recibos, orçamentos de projetos, layouts, desenhos, os originais em inglês das crônicas que escrevia para a Folha de S. Paulo, ideias rabiscadas em guardanapos, declarações de amor, missivas desaforadas de leitores…

À medida que foi mergulhando na história do avô, Andrew não demorou a perceber que tinha pela frente um personagem capaz de enlouquecer qualquer biógrafo. “É muito difícil separar histórias verdadeiras e fantasiosas na narrativa da vida do David.” Entre os episódios que conseguiu confirmar, embora pareça mentira, não chegou ao conhecimento da imprensa que, certa vez, de passagem para show em São Paulo, Dizzy Gilespie foi encontrado chapado no sofá da casa de Zingg quando a produção do músico de jazz já havia mobilizado até a polícia para comunicar seu desaparecimento do hotel onde estava hospedado. Foi uma noite e tanto aquela em que os dois saíram enchendo a cara pela noite paulistana. Não chegou a tanto com Joan Miró, mas, para fotografá-lo nos anos 1950, David passou um mês inteiro indo todo dia à casa do artista espanhol, até ser recebido pelo próprio. De Bobby Short a Vinícius de Moraes, isso também a pesquisa de Andrew confirmou, David era amigo de todo mundo – ou quase todo mundo.

John F. Kennedy, Hyannis Port, 1960 (David Drew Zingg/Acervo IMS)

Às vezes exagerava um pouco no grau de intimidade que dizia desfrutar no convívio com celebridades de primeiro escalão. Andrew não encontrou pistas, por exemplo, da amizade de infância que, reza a lenda, seu avô teria protagonizado com John Kennedy. Ajudou, de fato, a escrever alguns discursos de campanha do futuro presidente – fez duas capas de revista e a clássica foto do homem já eleito velejando –, mas nada, a começar pela diferença de classes sociais, fornece indícios da hipotética parceria de longa data. “Tom Horan, um grande amigo dele na Nova York dos anos 1940/50, desconhece proximidade maior de meu avô com os Kennedy.”

Andrew se diverte com as constantes reinvenções nos registros de David. “Ele aumentava quase tudo que dizia a seu respeito, a começar pela riqueza de seus antepassados na Suíça – transformou familiares classe média em nobres europeus – e o pai, que trabalhava numa gráfica, era apresentado como dono do negócio”. Era um exímio articulista da meia verdade. Tornava sua vida ainda mais interessante quando delirava sobre certos episódios biográficos. Por exemplo: “Acho que ele inventou bastante sobre sua participação na Segunda Guerra Mundial. Dizia que foi piloto da Air Force, que bombardeou Berlim e que deu baixa das tropas aliadas quando levou um tiro no ombro.” Tudo que Andrew conseguiu apurar a respeito do ‘herói’ da família foi o trabalho voluntário de correspondente em campo de batalha do Stars and Stripes, jornal do Exército americano.

Segue sem confirmação na pesquisa de Andrew outra passagem alucinada do currículo do biografado: “Ele dizia que jantou com Che Guevara na casa dos Rockfeller quando o líder revolucionário foi a uma reunião no prédio da ONU em Nova York, no início dos amos 1960.” O próprio neto não resiste a uma boa gargalhada quando lembra da história, tema de crônica do avô. “O David tinha muito humor: ele não mentia, inventava seu próprio personagem.” Difícil separar o homem do mito. Andrew tem se surpreendido a cada novo passo de sua investigação.

Há controvérsias até sobre a passagem de David Zingg pela Columbia University. Andrew seguiu essa pista e não achou registro do avô como estudante nos arquivos do campus. Também ficou surpreso ao não encontrar nada sobre ele na papelada do Departamento Estadual de Ordem Política e Social (DEOPS-SP), que consultou no Arquivo Público de São Paulo. “Ele era um estrangeiro sem visto de residência no Brasil, uma pessoa pública, amiga de muita gente que sofreu com a ditadura.” Pretende, quando voltar para os EUA, “vasculhar documentos do governo americano sobre o Brasil daquele tempo” para ver se encontra “algo sobre ele” nos serviços de inteligência de seu país. No Rio desde 1964 e em São Paulo, a partir de 1978, David Zingg passou incólume pelos ‘anos de chumbo’.

David Zingg (à direita) e Andrew Zingg (à esquerda, no colo da mãe, aos três anos)

Andrew compara a mudança do avô de uma cidade para outra à maluquice como se deu a troca dos EUA pelo Brasil. “Esse é outro mistério. Ele se estabeleceu no Rio, criou laços afetivos com a cidade e sua gente e, de repente, largou tudo isso e foi viver em São Paulo.” Em algumas das mais de 50 entrevistas que fez por aqui, velhos amigos cariocas lembram que, na época, perguntavam-se uns aos outros em Ipanema: “Cadê o David?” Nada tão grave quanto não dizer adeus aos filhos antes de partir para não voltar, mas em sua busca pela memória do avô Andrew acha que “de alguma forma estou resgatando a história que meu pai e meus tios não conhecem e está sendo bom para eles saber que David foi uma pessoa muito influente e querida no Brasil.” É esta descoberta familiar que o jovem biógrafo pretende transformar em livro.

Não foi, definitivamente, um avô como outro qualquer. “Acho que ele saiu de Nova York, que naquela época não era cosmopolita como hoje, em busca de liberdade, de uma vida sem compromissos, misturando trabalho e boemia.” Para isso, imagina, se reinventou como uma caricatura de gringo: “Até o sotaque carregado que David conservou por quase 40 anos fazia parte desta estratégia.” Com menos de um ano de Brasil, na soma das três viagens que fez ao País, Andrew já está mais fluente no português que o avô. “Mas ele sabia muito mais gírias”, ressalva. O neto vai pelo mesmo caminho. Ao final do nosso almoço-entrevista, pergunto se ele quer sobremesa e a resposta sai naturalmente: “Não, obrigado, estou de boa.” Andrew volta à Califórnia em dezembro, mas já tem planos de retornar ao Brasil para aprofundar ainda mais sua pesquisa em tema de mestrado. Capaz de também acabar ficando por aqui.

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