O sacrifício é uma forma extrema de representação: alguém morre no lugar do outro; alguém assume o lugar do outro, para salvar o outro. Muitas vezes, o sacrifício toma a forma de um ritual, o que o aproxima do teatro. É o tema da peça (A)polônia, do polonês Kryzstof Warlikowski, que encerrou a Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, MITsp, no domingo.
Num pequeno manifesto disponível no site do grupo Nowy Teatr, do qual é diretor, Warlikowski diz que “os verdadeiros mestres do teatro são mais facilmente encontrados longe dos palcos”. A frase ecoa o desejo, no teatro contemporâneo, de reencontrar seu graal: a verdade da força ritualística da representação. O teatro se tornou um ritual domesticado, uma representação pálida dessa potência perdida.
(A)polônia é uma composição de fragmentos de tragédias (de Eurípedes e Ésquilo) e textos contemporâneos (de Jonathan Littell, da polonesa Hanna Krall e do sul-africano J.M. Coetzee, que Warlikowski inclui entre os que “descreveram profeticamente a queda dos deuses europeus”). O tom é do mais completo desencanto. E se é que há alguma nostalgia, ela tem a ver com a grandeza e o heroísmo perdidos num mundo onde a representação passou a ser sinônimo de mentira, dissimulação e impostura (tanto no teatro como na política).
Na tragédia de Eurípedes, Alceste se sacrifica por amor, para salvar Admeto, seu marido. Quando se casa com Alceste, ele se esquece de fazer um sacrifício em homenagem a Ártemis, que se enfurece e o condena à morte. Apolo intercede a favor de Admeto e consegue convencer as Moiras a aceitar um substituto. Na hora da morte, entretanto, Admeto não tem nenhum substituto e é Alceste quem se oferece para morrer em seu lugar. Apolônia, de Hanna Krall, baseada em uma história real, morre nas mãos dos nazistas, tentando salvar a vida de judeus.
São sacrifícios heroicos. Mas o sacrifício também pode ser crime e horror. (“A lenda procura explicar o que não pode ser explicado. Por estar fundada na verdade, tem que acabar no inexplicável”, Warlikowski explica no pequeno manifesto sobre o teatro). Agamênon sacrifica a filha Ifigênia para agradar a deusa Ártemis e ganhar a guerra. Clitemnestra, sua mulher, o mata para vingar a filha. Orestes, irmão de Ifigênia, mata a mãe para vingar o pai. O sacrifício instala o caos e expõe a vaidade e a loucura dos deuses e dos homens.
A denúncia do sacrifício como crime e barbárie fica mais clara na segunda parte da peça, com o discurso A Vida dos Animais, proferido por Elizabeth Costello, alter ego de Coetzee, e com o texto de Hanna Krall sobre uma mulher que tenta salvar crianças judias, na Polônia da Segunda Guerra. No texto de Coetzee, Costello faz um paralelo potente e desconfortável entre os judeus e os animais. Quer nos fazer compreender os direitos destes últimos. E para isso tem que nos pôr na pele dos animais. “Hoje, me levaram para passear por São Paulo. Me pareceu uma cidade simpática, mas tenho certeza de que também existem aqui, porque estão em toda parte, fora do alcance do olhar.” Está se referindo aos matadouros. Em seguida, sua menção aos poloneses, surpresos ao serem confrontados, depois da guerra, com a realidade dos campos de extermínio, como se não soubessem de nada, como se não os tivessem visto, como se não pudessem associar a fumaça das chaminés à chegada dos comboios de prisioneiros, faz a ponte com o texto de Hanna Krall.
Os cristãos acreditam que Jesus veio ao mundo para se sacrificar no lugar dos homens, para salvá-los. É um sacrifício maior, cujo exemplo e potência simbólica deveriam ser suficientes para acabar com todos os outros sacrifícios. E é o que torna ainda mais espantoso que um dos povos mais católicos do mundo não tenha se dado conta do horror do sacrifício que ocorria ao seu lado, em seu próprio país, durante a guerra. E que hoje esse mesmo povo cristão, sobrevivente de guerra, se mostre tão refratário a sacrificar o que quer que seja para salvar alguns milhares de estrangeiros, refugiados de guerra.
A peça de Warlikowski fala do sentido ambivalente do sacrifício, do horror mas também da incapacidade de se pôr no lugar do outro, por quem sabe do que está falando.