A crítica mais frequente que tenho ouvido a Na estrada é a de que a versão de Walter Salles para o clássico beat de Jack Kerouac é demasiado clean, elegante e, no limite, fria. Talvez seja essa a percepção dos leitores fanáticos do livro ou daqueles que tiveram sua vida marcada por ele. Não é o meu caso.
Nunca mergulhei de fato na cultura beat, nem fui impregnado por ela – e peço licença para usar a primeira pessoa porque se trata aqui de um livro e de um filme cuja apreensão tem muito a ver com a dimensão subjetiva, com as tais vivências pessoais. É preciso lembrar que os livros de Kerouac, Burroughs, Ginsberg e companhia chegaram ao Brasil com pelo menos duas décadas de atraso. Refiro-me à tradução das principais obras, pois poucos foram os brasileiros que leram os originais na época (fim dos anos 50). Foi uma onda que já chegou aqui arrefecida, filtrada e, em certa medida, ressignificada pelo que veio de entremeio, dos anos 60 aos 80.
A América pelas bordas
Foi portanto dessa perspectiva – a de alguém que contempla o universo beat a uma certa distância – que fui ver Na estrada. E gostei muito. Mais do que como um inventário de transgressões – que, ao que parece, era o que muitos esperavam -, recebi o filme como uma tentativa de penetrar na América a partir das suas bordas (os negros, os latinos, os gays, os loucos, os desajustados de toda ordem). A busca de um outro American way of life, centrado não na família tradicional, no consumo e no medo do “outro” (seja este o comunista, o estrangeiro ou o extraterrestre), mas sim no movimento contínuo, na descoberta de novas formas de percepção, na construção de novos laços de afeto.
Desse ponto de vista, o filme tem tudo a ver com a sensibilidade de Walter Salles, cuja filmografia, de Central do Brasil a Diários de motocicleta, é marcada pelo deslocamento e pela busca. Sua pátria é a estrada, sua figura de estilo mais marcante é o travelling para a frente.
Criticou-se uma suposta assepsia da imagem, certa timidez ou pudicícia nas cenas de sexo. Uma amiga querida sugeriu, brincando, que o filme deveria ter sido feito por Cláudio Assis. Aceitando a brincadeira e seguindo na especulação, penso que uma versão de Assis talvez ganhasse intensidade e calor no lado “podreira” da história. Mas por certo haveria uma perda em muitos outros aspectos. Pois a sensibilidade literária e humana de Kerouac não foi formada apenas por Céline, mas também por Proust, como o filme sublinha visualmente a todo momento. Havia fúria naquele jorro vital, mas também sutileza e refinamento.
Há que lembrar ainda que Na estrada foi produzido por Francis Coppola, e talvez um tanto do filtro clean venha daí. Deu-se algo análogo, com resultados menos satisfatórios, quando ele produziu o primeiro filme americano de Wim Wenders, Hammett: o universo duro e sujo do escritor noir ganhou uma aura cool, maneirista, a um passo da estética publicitária. O trailer de Hammett não me deixa mentir:
Em comum entre os dois filmes, a consciência de que se está lidando com uma realidade “em segundo grau”, mediada por décadas de leituras e interpretações. São, ambos, retratos de mitologias. No caso, de mitologias centrais da América moderna.
Pulsação musical
Walter Salles, a meu ver, dribla a contento o risco de resvalar para o maneirismo e o excesso de estetização. Prova disso são as magníficas cenas musicais. Servindo-se de sua experiência como documentarista, o diretor confere às apresentações de jazz e blues um calor e uma pulsação que me parecem mais intensos e menos artificiais do que os do belo Cotton Club, do próprio Coppola. A sequência de Salt peanuts, o clássico bebop de Dizzy Gillespie, é especialmente contagiante. Para o leitor que gosta de jazz, aqui vai, de brinde, uma apresentação da música por seu autor, em 1947:
http://www.youtube.com/watch?v=kOmA8LOw258
Não deixa de ser significativo, aliás, que o último encontro, no filme, de Sal Paradise (Sam Riley) com Dean Moriarty (Neal Cassady) aconteça quando o primeiro, elegantemente vestido, prepara-se para ir a um show de Duke Ellington. Momentaneamente aburguesado, Paradise trocou os inferninhos esfumaçados pelas salas de concerto, e as dissonâncias transgressivas do bebop de Charlie Parker pelo som mais clássico de uma big band da era do swing. Sutilezas, enfim.