A falsificação do inimigo

Literatura

07.03.13

Publicado originalmente em 1959, A morte do inimigo passou cinco décadas arquivado, até seu ressurgimento recente na Europa e em várias traduções ao redor do mundo. Os dois pontos fortes do livro de Hans Keilson são também os pontos que garantem a ambiguidade e a ambivalência da sua história – ingredientes fundamentais para a sobrevivência de uma obra literária (basta pensar em Hamlet ou Dom Casmurro, por exemplo). Mas A morte do inimigo, o livro em questão, é muito mais do que a morte propriamente dita do inimigo; não é aí que reside o enigma de Keilson.

O inimigo recebe o nome de “B” e talvez seja uma espécie de versão ficcional de Hitler. O cenário está todo lá: um líder carismático com ideias radicais que vai, pouco a pouco, galgando os degraus do poder político e instaurando um regime de intolerância e violência. Mas é aí que está o movimento interessante de Keilson, pois ele recusa a proximidade rigorosa com a história e dirige a atenção do leitor em direção ao procedimento de estranhamento que está em ação no romance. Os grandes significantes ficaram de fora – “judeus”, “nazismo”, “Alemanha”, “holocausto”, “testemunho” -, e isso permite o uso do fato histórico como instrumento para a ficção (e não mais aquele tipo de romance histórico escrupulosamente devedor do “real”).

É essa inversão que potencializa os efeitos dos dois pontos fortes do livro de Keilson: a falsificação e a identificação, duas linhas de força que entram em confronto na própria tessitura do romance. O narrador da história, um jovem que cresce sob a sombra do ódio que B., o inimigo, nutre por seu povo, possui o desconfortável dom da perspectiva, da tolerância e da empatia. Essas qualidades ironicamente ganham volume quando ele pensa em B., o tirano:

Quando eu encaro meu inimigo como ele encara a mim, dissimulados na parafernália da nossa inimizade, revela-se a fonte da nossa existência. Que ideia esquisita era aquela que me angustiava? A de ser ele tão inseguro e trôpego quanto eu e, dominado pelo medo de ser um desconhecido para si próprio, desafiar seu inimigo, a mim, e pintá-lo na parede como faziam os pintores antigos, que tanto se afobavam para criar seus ícones quando fustigados pelos demônios. Eu não passava de uma careta, de uma máscara, que B., na sua aflição, tinha plasmado. Mas ela lhe bastava. Era sua contraimagem. (p. 131).

Nessa passagem central para o romance, a identificação se mescla à falsificação no momento em que o narrador se apresenta como a “máscara” de seu inimigo, uma “contraimagem” que B. havia criado – mas que somente o narrador havia decifrado. O que acompanhamos, portanto, não é apenas a ascensão e queda de um ditador, mas a odisseia de uma experiência atípica e oblíqua que traduz a trajetória da figura histórica. É a partir do detalhe que acessamos o sistema geral, e não o contrário (eis o radicalismo da grande ficção).

É preciso prestar atenção a um dos grandes achados técnicos do livro: Keilson costura à narrativa principal (a vida do narrador paralela à progressão do inimigo) uma série de breves parábolas que, simultaneamente, escapam e reforçam o tom do romance. Em uma delas, descobrimos que o pai do narrador foi um fotógrafo, ofício que passou ao filho e que lhe será muito útil adiante. Diante da encomenda para a foto de um cão e um gato, juntos, em seu estúdio, o pai conta ao filho sua engenhosa solução: como os modelos só brigavam, ele fez primeiro a foto do gato e, depois, a foto do cão. As fotos seriam transformadas em uma só a partir de uma montagem feita na câmara escura.

Está tudo aí, sem estar – essa confidência doméstica, aparentemente banal, se espalha pela história como uma profecia, uma promessa e um desafio estético. Como dar conta dessa mistura dos antagonistas sem cair no maniqueísmo, na dicotomia vulgar ou no esquematismo? “Eu sou o outro, e isso é ser eu”, escreve o narrador de Keilson na página 80. E, mais adiante, na página 100, afirma que “nada funciona sem um pouco de trapaça”. Keilson procura investigar o equilíbrio sempre instável dos contrários, procura dissecar aquela zona cinzenta que leva do remédio ao veneno, do prazer à dor e da verdade ao erro. Em sua ousadia ao abolir a síntese, o narrador de Keilson chega a falar em amor:

Quando conquistou tudo e foi vencedor, já lhe faltava onde pisar. O idiota combatia em mim aquilo que não ousava encarar em si próprio. Até o fim ele precisou de mim para insanamente se esconder de si mesmo. Jamais conheceu a si mesmo. Nele eu amava aquilo que eu não conseguia aniquilar em mim. (p. 251).

A profundidade dessas ideias não cabe em um ensaio – há dúvidas de que caiba em uma vida inteira. Mas é possível dizer o seguinte: não há desvio possível diante da ficção de Keilson, o vigor das reflexões presentes em A morte do inimigo repercute muito além dos posicionamentos que o leitor possa ter a respeito da literatura. O narrador afirma que B. “inventou tudo que dizem aqueles que ele mesmo inventara”, e que encantava seus ouvintes “mesmo quando fingia dar a palavra ao oponente” (p. 123). São os mistérios perversos da inclusão, da representação e da invenção. Nessa época medíocre de intolerâncias e ressentimentos que nos coube viver, o livro de Keilson surge como um ataque direto a tudo que surge como automático e “natural”. Condizente com seu espírito ambivalente, contudo, A morte do inimigo é também um ataque aos apelos nostálgicos que encaram o passado como passividade. Uma história coesa, monológica e feita de valores indiscutíveis só pode servir aos tiranos.

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