A falta que nos faz

Cinema

02.07.12

O que Bertolucci disse em Cannes, em maio último, sobre seu novo filme, Io e te (Eu e você, 2012) pode ser retomado na memória como se fosse uma imagem formulada para falar do cinema de Carlos Reichenbach. Preso a uma cadeira de rodas desde pouco depois de Os sonhadores (The Dreamers / I sognatori, 2003), “condenado a viver todo o tempo num travelling, talvez por ter filmado demasiados travellings“, ele imaginou que nunca mais voltaria a fazer cinema. No começo do ano passado, diz, sentiu que era chegada a hora de fazer de sua condição física não uma limitação, mas como uma condição de trabalho e voltou a ir ao cinema, pois ver filmes é o que estimula a fazer filmes. Em diversas ocasiões, disse que decidiu fazer cinema porque viu os filmes de Fellini, em especial La Dolce Vita (1960), e de Kurosawa, em especial Rashomon (1950); e que antes de filmar, vê tantos filmes quanto possíveis para aumentar a vontade de fazer cinema, para dialogar com os filmes de outros diretores. Agora, entre os filmes que influenciaram seu retorno ao cinema, Pina, de Wim Wenders, inspiração para filmar, inicialmente em 3D, o romance de Niccolò Ammaniti Io e te. O projeto, finalmente, não se fez em terceira dimensão porque “o longo tempo exigido para preparar a câmera para uma nova tomada atrapalhava o rendimento da cena”, explicou, “gosto de filmar um plano estimulado pelo plano que acabei de filmar, e o tempo necessário para montar a câmera e as lentes para o 3D não me permitia trabalhar à vontade. Entre um plano e outro os atores saíam do clima, eu também. A técnica nos atrapalhava, desisti”.

 

Cena de Io e te

Tomada como uma imagem, como uma metáfora – como ideia de um cinema feito por quem está quase imobilizado, como ideia de um cinema estimulado por outros filmes e feito para conversar com eles, como ideia de um cinema em que a sofisticação técnica seja prejudicial à expressão – vista como uma imagem, a observação acima pode ser usada para apontar o que há de mais vivo no cinema de Reichenbach. Num contexto que o condenava a uma espécie de cadeira sem rodas, ele conseguiu, bem de acordo com o título de seu depoimento para a revista Cinemais, em julho de 1999, transformar a falta de condições em instrumento de criação:

“É só você conseguir se libertar das amarras do ?se não tiver isso eu não filmo’ e partir para o contrário: se não tiver isso eu filmo melhor (…) Este era o conceito que o Roberto Santos tentava passar, e talvez seja o grande mérito, o melhor do cinema brasileiro (…) Durante a filmagem de Dois córregos eu dei um esporro: Dez obras-primas do cinema brasileiro, diga aí. Diziam: ?Limite! Deus e o diabo na terra do sol! O bandido da luz vermelha!‘ Pois muito bem, respondia, todos esses filmes foram feitos com equipamento deficiente, com a câmera amarrada com arame, entendeu? Quer dizer, um filme não está no seu espelho técnico e sim na ideia. Se ele tem o que dizer, diz, senão… não é o preciosismo técnico que faz um bom filme. Aliás, costuma fazer um mal filme”.

Para fazer-se pela falta, primeiro, usar o cinema como estímulo para fazer cinema. Em geral, com facilidade e entusiasmo, Reichenbach falava mais dos cineastas que admirava do que de seus próprios trabalhos: “Acho que os primeiros grandes filmes que provocaram minha paixão pelo cinema foram os do Shoei Imamura: Todos porcos (Buta to Gunkan, 1961) e O segredo de uma esposa (Akai Satsui, 1964)”.

Quando se referia a seus filmes procurava defini-los como resultados do estímulo recebido de outro cineasta: “Anjos do arrabalde, Alma corsária e Dois córregos, são um tributo à obra do Valerio Zurlini. Tenho cópias dos filmes dele em casa, comprei tudo o que pude conseguir. A moça com a valise (La Ragazza con la Valiglia,1960), para mim, é um dos maiores filmes já feitos. Sistematicamente venho tentando conseguir a depuração do cinema de sentimentos alcançada pelo Zurlini em Dois destinos (Cronaca familiare, 1962), Verão violento (Estate Violenta, 1959) e A primeira noite de tranquilidade (La Prima Notte di Quiete, 1972)“.

Ou então, falava de seus filmes como invenções feitas a partir de uma força impeditiva ou pelo menos limitadora. Filmar não com o que se tem, mas com a falta: para realizar seu primeiro longa-metragem pessoal, Lilian M, relatório confidencial (1974) parou de fazer publicidade, juntou “a sucata do estúdio, equipamento, uma sobra de negativo e uma sobra de herança familiar”. Para realizar A ilha dos prazeres proibidos, partiu de uma imposição do produtor, que não gostara nada de Lilian M: “Eu quero filme com 100 sequências. Filme com menos de 100 sequências é chato. Você consegue fazer um filme com 20 latas de 300 metros e com 100 sequências?”

Ou ainda, quando falava de seus filmes falava mesmo era do cinema brasileiro. Dizia de sua admiração por Lang, Dreyer, Godard, Eizo Sugawa, Yasuzo Masumura, mas insistia: “meu cinema é influenciado por um fascínio muito grande pelo cinema brasileiro como um todo. Sempre fui apaixonado pelo cinema brasileiro. Eu vi praticamente tudo quanto é filme brasileiro. Difícil ter um filme brasileiro que eu não tenha visto”.

 

Cena de Falsa loura

Nada, ou quase nada, em comum entre Reichenbach e Bertolucci. Mas um possível paralelo aqui vai um pouco além do fato do cinema resultar do diálogo ou desafio de filmes bem diferentes uns dos outros,  um pouco além do fato de um filme natural e espontaneamente estimular outro, explicar outro, provocar outro ou provocar o entendimento de outro.  Assim, uma frase que Olivia diz a certa altura de Io e te – “para entender o que sou seria necessário que eu saísse de dentro de mim e pudesse me ver como se eu fosse ao mesmo tempo eu e você” –  tem algo a ver com o cinema feito por Reichenbach em torno de suas personagens femininas, entre a Maria de Lilian M – relatório confidencial e a Silmara de Falsa loura. Não só porque esse é o drama que elas vivem sem conseguir sequer formular a questão, mas igualmente porque esse foi o gesto na base de seus filmes: sair de dentro de si mesmo para se ver como parte do cinema brasileiro (como parte da parte a quem faltava tudo), para entender-se como produtor de imagens em movimentos.

Agora, o cinema brasileiro terá que se fazer com a falta dele.

* José Carlos Avellar é coordenador de cinema do Instituto Moreira Salles

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