Talvez pudéssemos definir Alexandre Eulalio com as palavras com que ele descreveu Jorge Luis Borges: “ecumênico, eruditíssimo, intoxicado por uma cultura vivida até a exaustão”. Era um escritor e crítico formado nos parâmetros de uma outra época, quando o exercício da liberdade era possível no trabalho acadêmico. Dificilmente poderíamos hoje definir um livro nosso, como ele definiu seu belo livro sobre Blaise Cendrars, republicado de forma notável pelo Carlos Augusto Calil: reportagem, crônica, ensaio, álbum, seleta, registo de gravações, livro de figuras, roteiro de filme, documentário…
Outra coisa hoje impossível seria não publicar. Alexandre não publicava, não fazia questão disso. (Um dos volumes organizados por Carlos Augusto Calil e Maria Eugênia Boaventura se intitula significativamente O livro involuntário). Nem mesmo publicou o extraordinário e premiado ensaio sobre o ensaio literário no Brasil. O pseudônimo escolhido por ele quando concorreu ao prêmio foi capangueiro, esse homem que ia percorrendo as lavras, em busca do melhor diamante ou pepita de ouro, para guardar em sua bolsa, a capanga. É interessante lembrar que Augusto Monterroso, o genial guatemalteco, intitulou sua autobiografia de Los buscadores de oro. Ele e Alexandre sabiam do que estavam falando. (Estou aqui seguindo a obsessão relacional de nosso amigo. O problema é que na busca do ouro vem o cascalho que talvez seja preciso atravessar, avaliar, pesar. Pode ser que dessa compreensão advenha o desvelo analítico de Alexandre por obras menores, a que podemos acrescentar a lição aprendida com Brito Broca.)
Ao mesmo tempo, nosso crítico é capaz de painéis iluminadores como encontramos no primeiro ensaio, “O século XIX: tradição e ruptura”. Síntese de arte e cultura brasileira (1816-1910), em que ele examina de perto e avalia as transformações no Brasil, principalmente na esfera do aprendizado das artes plásticas, com a vinda da corte portuguesa. “As peculiaridades históricas e sociais do país, extremamente complexas” – diz ele – “nesses 100 anos de transição acelerada (…). Região periférica dos centros emissores de padrões estéticos, imemorialmente sustentada pelo regime escravista, em breves anos passa o Brasil de mero empório colonial a sede provisório de um defasado império mercantilista”.
Compreendendo Alexandre Eulalio atento à lição dos modernistas, Mário e Oswald, Calil sugere também que ao afirmar que era preciso olhar a pintura ruim, Alexandre esboça um gesto paralelo ao de Paulo Emílio, que mandava os alunos aos cinemas da Boca do Lixo para uma compreensão do Brasil, distante de uma crítica bem pensante e supostamente aristocrática compondo o que ele chamava de “aristocracia do nada” (Cinema: trajetória do subdesenvolvimento).
Enfim, acho que todos nós reunidos aqui concordamos que a publicação de um novo livro de Alexandre seja um acontecimento. Porque todos os ensaios parecem inéditos, pois quase sempre são inéditos em livros. Mas juntos, segundo o agrupamento, eles se iluminam mutuamente, ganham tonalidades outras.
É o que acontece com este Tempo reencontrado: os três ensaios centrais formam um eixo que dão o tom e movimentam coerentemente os outros sete. Calil explica na introdução (“Conversa com o passado”) que esse núcleo “representa o ponto de inflexão de uma trajetória intelectual que, partindo da vertente literária, logo manifestou vocação pela abertura às outras artes- pintura, arquitetura, música, teatro, cinema – e, sobretudo, pela representação visual em contexto, situada num determinado tempo histórico”. Nesse texto, toda a linha do percurso de Alexandre Eulalio é percorrida: a combinatória analítica de análise estilística, morfologia do texto escrito ou visual, a referência histórica, a obsessão relacional, a erudição iconográfica.
Convido também os presentes a lerem atentamente as palavras de Antonio Candido na orelha do volume, pois são muito esclarecedoras. Ele interpreta com finura a inserção da atividade intelectual de Alexandre Eulalio em sua obsessão pelo Brasil e o arrojo de combinar o rigor com a fantasia. Basta recordar a trama tecida com a maior ousadia e talento entre o livro de Machado (Esaú e Jacó), cujos personagens vão ao baile da Ilha Fiscal, e a leitura de Alexandre supondo – acho que com toda a probabilidade – que Aurélio de Figueiredo, pintor mas também poeta e ficcionista, tenha lido o livro, desejando “consolidar os nexos narrativos e o complexo encadear da ação através dos espaços pictóricos que dispôs e definiu na ordem ideal que o espectador deveria seguir”.
Candido também observa o desvelo analítico de Alexandre por obras de valor desigual. O que é surpreendente é que tal nivelamento seja também revelador. E cita Saintsbury, crítico do século XIX: “Há escritores menores que nos dão, com maior segurança do que os grandes, a chave de uma literatura”.
Mas o que verdadeiramente acho é que, melhor que ninguém, Alexandre Eulalio cumpre o convite que Antonio Candido nos fez no prefácio da Formação da literatura brasileira. Comentando o acanhamento de nossa literatura na época, mesmo assim nos anima a lê-la; e cita Guerra e paz, no momento em que Tolstoi fala nos ombros e braços de Helena, sobre os quais se estendia o polimento que haviam deixado milhares de olhos fascinados por sua beleza. E finaliza – poderia ser o Alexandre – afirmando que a leitura produz efeito parecido em relação às obras que anima.
Desejo terminar essas palavras com um trecho do Zuca Sardan, em “Alexandre Eulalio, ou, o Coelho Branco” . Vocês poderão lê-lo inteiro – vale a pena – em Novos Estudos Cebrap nº 42: “Alexandre era um bizantino em Veneza. Uma finesse mais rara, uma inteligência mais labiríntica que a do próprio Doge. E de uma tão disfarçada modéstia, que era esta invisível (…). Tinha um pouco do Borges disfarçado no Coelho Branco de Alice, e um pouco do Coelho Branco disfarçado em Jorge Luis Borges. E tinha muito do Borges. E muito mais do Coelho Branco. E muito do Alexandre disfarçado no próprio Alexandre. (…) Mas não conseguia enganar os amigos. Ou, pelo menos, nem todos. Tanto que deixou uma legião de amigos. Mas todos muito selecionados, uma espécie de tropa de Brancaleone de poetas, reitores, condessas italianas, intelectuais em segundo grau, alquimistas em quinta essência, livreiros, professores… Alexandre era – e é – uma figura caleidoscópica”.
* Vilma Arêas é professora de literatura brasileira na Unicamp. O texto acima foi lido durante o lançamento do livro de ensaios de Alexandre Eulalio, Tempo reencontrado, organizado por Carlos Augusto Calil.
* Na imagem que ilustra a o home do post: foto do evento de lançamento de Tempo reencontrado. Foto que ilustra o post: detalhe do quadro “O último baile da monarquia”, de Francisco Aurélio de Figueiredo, capa do livro Tempo reencontrado.