A hora da vergonha – quatro perguntas para Yves de La Taille

Quatro perguntas

17.07.14

Yves de La Taille é professor titular do Instituto de Psicologia USP e especialista em psicologia moral. Recebeu um Prêmio Jabuti em 2007 (categoria educação, psicologia e psicanálise) por Moral e ética: dimensões intelectuais e afetivas. E lança ainda este ano Humor e tristeza: o direito de rir.

Um de seus principais temas é a vergonha, sentimento que tomou conta de jogadores e torcedores com as derrotas para Alemanha e Holanda nas partidas finais do Brasil na Copa do Mundo.

Segundo ele, sentir vergonha é perceber-se inferior ao que se pensava ou se queria ser, quebrando a chamada “boa imagem” que a pessoa tem de si. É algo que os jogadores já teriam começado a se dar conta no primeiro jogo e que veio à tona no desespero demonstrado contra o Chile.

“Quando a comissão técnica falou em ‘apagão’ após o jogo contra a Alemanha, era uma maneira de preservar a ‘boa imagem’. Porém, a derrota de 3 a 0 diante da Holanda desmentiu a hipótese do ‘apagão’, e, então, somente ficou a vergonha”, diz Yves de La Taille em entrevista por e-mail ao Blog do IMS.

“Espero sinceramente que vários jogadores da seleção brasileira se recomponham desse severo desmentido que a realidade lhes impôs e resgatem um pouco de humildade. Que fujam dos holofotes e cultivem a arte da discrição”, afirma.

1. A seleção brasileira perdeu de 7 a 1 para a Alemanha na Copa do Mundo. Enquanto os gols se sucediam, portais na internet do Brasil estampavam, em letras garrafais (algo pouco usual na internet, mas comum nos jornais impressos) que se tratava de um vexame histórico e uma completa humilhação. Isso se deu mesmo dentro e fora de campo ou isso é também uma construção por parte da mídia do que devemos sentir em casos como esses?

Não creio que seja construção da mídia. O sentimento de humilhação é perfeitamente compreensível numa situação desta. A humilhação é um sentimento negativo decorrente do fato de ser fortemente inferiorizado por alguém (pessoa ou grupo). A própria palavra vem de húmus, que significa terra. A humilhação pode ser decorrência de uma agressão voluntária, como nos casos de bullying, ou pode decorrer, como é freqüente em situações de competição, da vitória inconteste e acachapante do oponente. Ora, foi o que aconteceu no jogo entre Brasil e Alemanha. Os jogadores e a comissão técnica foram fortemente inferiorizados, ou seja, humilhados pelo brilhantismo da equipe alemã. Em relação à torcida brasileira, eu diria que ela foi indiretamente humilhada: o orgulho de pertencer ao chamado “país do futebol” foi ferido pela óbvia superioridade do adversário. Mas é evidente que a humilhação sofrida pelos membros da seleção foi infinitamente maior do que aquela experimentada pelos torcedores, pois foram eles os responsáveis pela derrota.

Falou-se também em outro sentimento no episódio: a vergonha. Este sentimento também faz sentido neste contexto. Mas aparece de forma bem diferente para jogadores e para torcedores. O que é a vergonha? Trata-se de um sentimento, que pode às vezes ser muito penoso, decorrente da tomada de consciência (que pode até ser enganosa) por parte do envergonhado de que a “boa imagem” à qual ele pensava corresponder ou à qual queria corresponder está distante. Logo, sentir vergonha é sentir-se inferior ao que se pensava ou se queria ser. No caso dos jogadores, a severa derrota, que escancarou sua condição de jogadores inferiores aos padrões de excelência necessários à conquista de um título importante, deve ter tido o efeito de causar neles vergonha. Pelo menos, assim se espera, porque se não sentiram vergonha significa que, para eles, serem grandes jogadores não corresponde a uma “boa imagem” de si almejada. Insisto: nós somente sentimos vergonha se um valor que queríamos associados ao nosso “eu” mostrou-se dele dissociado. É por isto que alguém que por ventura sinta vergonha de se achar “feio” valoriza a beleza física. Se não a valorizasse, não sentiria vergonha.

Como a vergonha é um sentimento penoso, às vezes acontece de procurarmos afastá-la arranjando explicações para negar a dissociação com a “boa imagem” que falhamos em alcançar ou manter. Parece-me que foi isso que aconteceu quando a comissão técnica falou em “apagão”: era uma maneira de preservar a “boa imagem” dando uma explicação para a derrota que não fira o valor dos jogadores, do time e da comissão técnica. Porém, a derrota de 3 a 0 diante da Holanda desmentiu a hipótese do “apagão”, e, então, somente ficou a vergonha.

Pensando agora dos torcedores, para alguns pode ter havido o sentimento de vergonha: estou me referindo àqueles que, entre as “boas imagens” que têm de si, está aquela de pertencer a um país eternamente presente na elite do futebol. Para estes, a referida boa imagem foi, pelo menos momentaneamente, desfeita e disto pode decorrer o sentimento de inferioridade que causa vergonha. Em compensação, creio que para a maioria dos brasileiros tal avaliação de si mesmo como “brasileiros de chuteiras” é  fraca ou até inexistente. Logo, sentiram pouca ou nenhuma vergonha. Para eles, a referência a esse termo é essencialmente avaliativo: o que aconteceu foi uma vergonha, mas isso não implica que eles mesmos tenham saído envergonhados. Saíram mais indignados e tristes do que envergonhados. Acabaria dizendo que, como no caso da humilhação, a vergonha sentida por jogadores e comissão técnica certamente foi infinitamente maior que a de certos torcedores. Ser jogador e ser torcedor não é a mesma coisa.

 

2. Como uma torcida que cantava o hino nacional à capela e não se cansava de repetir que era brasileira com muito orgulho e muito amor passa de uma condição eufórica para a de humilhada em tão pouco tempo?

Aqui creio que temos dois problemas. O primeiro é o da superficialidade: ser brasileiro com muito orgulho evidentemente não pode se resumir à associação com o futebol. Logo, cantar o hino com muita vontade apenas na hora de um jogo, por mais importante que ele seja, é dar provas de superficialidade. Mas acredito que, para a maioria dos torcedores, tal superficialidade não ocorreu: a força ao cantar o hino era mais sinal de euforia e festa do que demonstração de amor ao país. Diferentemente, aliás, do que aconteceu na Copa das Confederações: por uma coincidência, as manifestações do ano passado nos estádios foram eco daquelas que aconteceram nas ruas. Cantar o hino à capela foi, em 2013, realmente um brado de patriotismo, pois transcendeu o futebol. Na Copa de 2014, foi diferente: a presença nos estádios e o cantar o hino foram apenas para o futebol, não pelo país como um todo. Não creio que havia tanto orgulho assim de ser brasileiro nesses hinos à capela. O segundo problema é o da esperança que, segundo o filósofo francês Comte-Sponville, é “querer sem poder”. Este é o problema do torcedor: coloca sua alegria e felicidade nas mãos dos outros, que, assim, dominam o seu destino. A euforia que precedeu o jogo era movida à esperança de ganhar, e a tristeza que logo se verificou foi decorrente da esperança desiludida.

3. A presença de uma psicóloga entre os jogadores foi apontada como um sinal de que os jogadores estavam descontrolados emocionalmente. Vários caíram em prantos após uma sofrida vitória nas oitavas de final contra o Chile. Essa dificuldade em processar emoções que envolvem uma partida de futebol, tanto para quem a joga quanto para quem a assiste, está relacionada com o pânico de sentir vergonha, com o temor do vexame?

Qualquer jogador de qualquer seleção teme, é obvio, jogar mal, cometer um pênalti, tomar um frango, errar um gol cara a cara com o goleiro etc. Enfim, teme sentir vergonha. Sendo assim, deveríamos verificar a dificuldade de processar emoções em todas as seleções, o que nunca se verificou. É preciso, portanto, analisar o caso brasileiro. Mas não é fácil fazê-lo, pois carecemos de informações do que aconteceu nos bastidores. Mas, façamos hipóteses, começando por lembrar que vários jogadores da seleção brasileira jogam em grandes clubes e participam de jogos importantes para os quais, que se saiba, mostram-se controlados emocionalmente. Não creio, portanto, que seja um problema psicológico individual. Penso que houve um efeito coletivo. Duas coisas me chamaram a atenção. A primeira foi o fato de o treinador dizer que a seleção tinha a obrigação de ganhar o título. Que absurdo! No esporte ninguém tem obrigação de ganhar nada. Existe a obrigação de jogar da melhor forma possível, mas a obrigação de ganhar implicaria negar e desvalorizar o adversário. Então, à pressão natural de jogar no próprio país a comissão técnica fez o “favor” de aumentá-la, como se ganhar a Copa em casa fosse uma missão moral ou política. A segunda coisa que me chamou a atenção foi justamente esse cantar o hino à capela do qual já falei. Como disse, tal canto foi um brado de genuíno patriotismo no ano passado. Este ano não! E foram os próprios jogadores que forçaram este “à capela”. Para quê? Essa referência ao passado aumentou a pressão, pois colocou em campo uma dimensão moral e política que já não existia mais na realidade. Eu terminaria com outra hipótese mais simples: creio que os jogadores (como muitos espectadores e comentaristas, aliás) desde a primeira partida começaram a perceber que a seleção não estava no nível necessário, já começaram a antever a derrota e o fato de ela quase acontecer nas oitavas de final acabou de abalar o time.

Agora, faça-se justiça. Mesmo perdendo de goleada contra a Alemanha, os jogadores permaneceram jogando, se esforçando e também não partiram para a violência, o que não raramente acontece nessas horas de desespero. Mesmo quadro se verificou contra a Holanda. Ora, isso é prova de controle emocional. Ou seja, não dá para dizer que perderam totalmente esse controle.

4. Discussões posteriores na impressa tentam justificar a derrota brasileira alegando que jogaram a responsabilidade de vencer o campeonato em cima de “garotos”, apesar da idade média da seleção ter sido de 27,7 anos. O jogador mais velho era o goleiro Julio César, de 34 anos, um dos mais emotivos. E coube justamente ao mais jovem, Bernard, de 21 anos, a tarefa de substituir Neymar. Pelé disputou sua primeira Copa com 17 anos, em 1958, e aguentou o tranco. A argentina Beatriz Sarlo diz em seu livro Cenas da vida pós-moderna que “a juventude não é uma idade e sim uma estética da vida cotidiana”… Agora, infantilizar os jogadores antes e ainda mais após a derrota também diz alguma coisa sobre a nossa sociedade?

Como eu disse anteriormente, não creio que o problema emocional tenha raízes individuais, e também lembrei que, nas derrotas para Alemanha e Holanda, os jogadores demonstraram dignidade mesmo nesse momento para eles terrível (na frente de milhões de telespectadores). Eu veria elementos da pós-modernidade em dois aspectos. Um já foi apontado na pergunta: procura-se “psicologizar” (a “infantilização” referida não deixa de ser uma “psicologização”) e “patologizar” tudo. Por exemplo, se uma pessoa é violenta é porque ela “tem problemas”. Outro exemplo, uma pessoa triste é logo diagnosticada de “depressiva”. Enfim, individualizam-se os problemas negando as suas causas culturais. O destaque dado aos “danos emocionais” dos jogadores segue essa linha. O segundo elemento da pós-modernidade que eu sublinharia, e que nos leva de volta ao tema da vergonha, é o culto pelas “celebridades”. Como escreveu Jurandir Freire Costa, “o lugar da autoridade foi tomado pela celebridade”. Então, fabricam-se artificialmente celebridades, notadamente jovens (pois existe também um culto da juventude). Assim, no caso do futebol, jovens jogadores, sem dúvida talentosos, são alçados rapidamente ao patamar de “craques”, de ídolos, de ícones. E eles mesmos acabam acreditando que, apesar de ainda poucos resultados efetivos, já alcançaram um lugar no panteão onde ficam jogadores como Fontaine, Pelé, Maradona, Zidane e alguns poucos outros. Aí chega uma Copa do Mundo, aí chega uma Alemanha, uma Holanda, e a realidade se impõe. O tombo é grande e a vergonha também, pois muitos jogadores nutriam uma imagem positiva precoce de si mesmos muito além do seu real valor atual. E a “massa”, que precisa de celebridades e que as criou do nada, rapidamente vira as costas às suas mirabolantes “criaturas”, daí das vaias aos jogadores adorados momentos antes e os gritos de “olé” em favor do adversário. Espero sinceramente que vários jogadores da seleção brasileira se recomponham desse severo desmentido que a realidade lhes impôs e resgatem um pouco de humildade. Que fujam dos holofotes e cultivem a arte da discrição. Daria esse conselho com particular carinho ao Neymar: ele de fato é jogador bem acima da média, mas a sua fama (uma espécie de Elvis Presley do futebol atual) ainda é maior do que ele realmente teve tempo de apresentar. Ele tem tudo para ser uma “autoridade” no futebol, como o foram Platini, Sócrates, Tostão etc. Que a celebridade venha depois. Ou melhor, como ela já veio (e com que força!), que ele a coloque um pouco de lado.

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