Fez dois anos outro dia que uma das histórias definidoras do nosso tempo veio à tona num pequeno jornal do interior dos Estados Unidos – e a partir dali correu mundo, causando um furor poucas vezes visto. Quase simultaneamente à publicação da matéria na qual o obscuro Coeur D’Alene Press revirava o passado de uma líder do movimento negro e ativista pelos direitos humanos chamada Rachel Dolezal, um pequeno canal de televisão procurou a moça para uma entrevista. A conversa, garantiu o repórter, nada teria a ver com a história publicada no jornal – a tevê pedia uma declaração da ativista sobre uma denúncia de ódio racial investigada pela polícia local. Dolezal caiu na armadilha.
O que se seguiu, disparando a mencionada reação devastadora em escala planetária, ainda pode ser assistido no YouTube. A versão integral, com cerca de nove minutos, mostra o repórter rondando a presa com perguntas inócuas – e o próprio microfone desligado, o que é revelador – até os segundos finais, quando, agora em tom audivelmente agressivo, dá o bote fatal. “A senhora é afro-americana?”, ataca. O efeito produzido pela pergunta que não só destruiu uma reputação como, num sentido um pouco além do metafórico, acabou com uma vida, é quase doloroso demais de se ver reprisado na tela. Três segundos de um pânico mudo, a expressão do rosto congelada num esgar, e a entrevistada abandona a cena. Era o seu fim, e ela sabia disso.
Se uma vida terminava ali, entende-se por que Dolezal, antes de completar 40 anos, tenha decidido publicar um precoce livro de memórias, In Full Color: Finding My Way in a Black and White World. Em coautoria com Storms Reback, oferece sua versão da fatídica entrevista – reproduzida cuidadosamente, passo a passo e com transcrição precisa dos trechos relevantes, além de contextualizada pelos acontecimentos dos dias imediatamente anteriores (sempre segundo a parte interessada, claro) –, mas também passa em revista toda a acidentada história de vida que a levou a se apresentar ao mundo como aquela ativista que desmoronou diante da câmera e da pergunta fatal de um repórter provinciano.
Em resumo, e para quem ainda não se lembrou do caso: Rachel Dolezal é a jovem americana branca que cruzou a fronteira de raça adotando cultura e visual negros, e com isso alcançando certa proeminência como presidente de uma seção local da mítica Associação para o Progresso das Pessoas de Cor (NAACP, na sigla em inglês) e integrante do movimento Black Lives Matter, até ser “desmascarada” e passar à condição de pária, tanto nas comunidades onde atuava quanto entre familiares e no lugar de onde saíra – uma localidade rural no estado de Montana.
Nascida numa família ultrarreligiosa, Dolezal foi criada por pais severos que, convictos de que o mundo moderno do consumo era o mal encarnado, só admitiam produzir para a própria subsistência – e empregando na pequena propriedade familiar a mão-de-obra dos filhos. No livro que acaba de publicar, a ex-ativista, que recentemente mudou seu nome legal para Nkechi Diallo, desfia um rosário de horrores sobre sua infância e adolescência – são tantos que, segundo a observação certeira do jornal inglês The Guardian, chega a hora em que o leitor passa da empatia à desconfiança.
Os detalhes todos do calvário não podem ser reproduzidos na imprensa, tampouco aqui, por constituírem uma história de um lado só, e contada por uma pessoa condenada como fraudadora contumaz. Tendo participado da operação de “desmascaramento”, fornecendo inclusive fotos de uma jovem Rachel em sua versão loira e sardenta de olhos claros, os pais da moça dizem que só aceitam discutir nos tribunais a questão de como criaram a filha – com ela ou qualquer um que espalhe as, segundo eles, calúnias contadas no livro recém-lançado.
Mas é irônico que o ponto de virada na trajetória de Dolezal só tenha acontecido por uma decisão inusitada desses mesmos pais, ao longo do livro retratados como dois fanáticos religiosos, ignorantes e cruéis. É quando a família decide adotar quase que de uma só vez quatro crianças negras que Rachel, então entrando na adolescência, parece despertar para o que seria sua “essência”. (Na autobiografia, o gesto da adoção é descrito como um caso de patologia missionária, os pais tentando alardear o quanto eram “bonzinhos”, e em seguida acusados pela autora de supostos maus-tratos aos quais as crianças teriam sido submetidas.)
Até chegar a esse momento do percurso, In Full Color se detém em alegados sinais precoces de que a pequena Rachel talvez fosse um indivíduo “trans” – alguém que se percebe como tendo nascido no corpo “errado”, por assim dizer: há capítulos sobre sua insistência, na infância, em se desenhar como uma menina negra, ou sobre a procura de um “novo pai” à medida que crescia – sempre na figura de homens afro-americanos –, ou ainda sobre a obsessão por mudar o cabelo para mostrar sua identificação com a cultura à qual sonhava pertencer. (Depois que assumiu sua identidade negra, Dolezal manteve meticulosamente o novo visual à base de penteados afro, nos quais se especializou, bronzeamento e maquiagem.)
No entanto, é a chegada daquelas quatro crianças, três meninos e uma menina que Dolezal (sempre segundo a própria) acabou por criar grande parte do tempo, que parece desatar um processo sem volta: a saída da casa dos pais rumo ao sul dos Estados Unidos, onde ela frequentou uma faculdade com tradição em pesquisa e militância voltadas às relações raciais; o casamento com um afro-americano, pai de seu primeiro filho; o envolvimento inicial com o movimento de minorias, seguido de um mestrado em artes na majoritariamente negra universidade Howard, em Washington D.C., e o começo da carreira acadêmica como professora de estudos africanos; a acolhida a um dos irmãos adotivos, que se desentendera com os pais e Dolezal passou a apresentar como seu filho; por fim, no auge da reputação entre os pares e de alguma harmonia familiar, a queda.
Em muitas passagens, In Full Color pode soar insuportavelmente autoindulgente, quando não resvala para a autoajuda, como seria previsível. Sempre parece caber um pouquinho mais de sofrimento na história de Dolezal, embora muitas vezes a má fortuna seja real e até exasperante: em meio ao turbilhão das revelações sobre seu passado, por exemplo, a autora descobre que está grávida do segundo filho. O livro então inclui um capítulo intitulado “Renascimento”, o qual termina com uma espécie de mensagem de vida para a criança: “Siga sempre em frente e nunca desista”. Em outros momentos, por cima da percepção generalizada de que há muito passou de todos os limites aceitáveis em termos de autoidentificação racial, Dolezal aplica ainda mais uma camada de – diriam alguns – estudada ingenuidade, uma espécie de idealismo insano: “Se todos os estudantes fossem obrigados a assistir a essas aulas [de “conscientização” sobre o “conceito” de raça], a injustiça racial que existe na nossa sociedade poderia ser erradicada no espaço de uma ou duas gerações”.
Ao mesmo tempo, porém, não há como negar que a ex-ativista tocou em contradições sensíveis das políticas de inclusão ditas progressistas. Afinal, não são estranhos aos defensores dessas políticas argumentos condenatórios do que Dolezal, em seu livro, chama de “categorias raciais arcaicas da sociedade”, ou sua angustiada confissão sobre “não se encaixar numa só das opções [de raça] de um formulário do censo, mas em algum ponto intermediário do espectro da identificação racial” – o que poderia ser alegado igualmente acerca das dificuldades quanto à definição de gênero. (A condenação dos ativistas transgênero a Dolezal foi, a propósito, total e implacável.)
Quem lê a história contada em In Full Color se depara com um flagrante caso omisso no código de conduta otimista do multiculturalismo, essa interpretação por vezes autoindulgente ela própria, quando não francamente delirante, segundo a qual haveria uma suposta receita universal para a coabitação pacífica da diferença – paradoxal receita, pois prega a inclusão pela discriminação. Dolezal é o ponto cego das guerras culturais, nas quais há deserções esperadas e até coerentes – brancos ricos lutando por direitos de minorias, negros (ou gays) que se tornam politicamente conservadores – mas cuja lógica interna parece ter colapsado diante desse inesperado cruzamento da fronteira de raça na direção contrária daquela convencionalmente tomada por indivíduos de ascendência parcialmente negra que tentam se apresentar como brancos.
A ousadia de Dolezal não chega a ser caso único, mas não há registro anterior de conversão tão convicta e militante – o que nos últimos meses emprestou proeminência, em discussões acadêmicas e no debate público em geral, à ideia de “transrracialidade”. O professor Rogers Brubaker, da Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA), pensador que já havia argumentado consistentemente acerca do fenômeno cada vez mais comum das identidades nacionais sem raízes étnicas, ampliou a discussão em torno do affair Dolezal com um livro que já nasce influente: Trans: Race and Gender in an Age of Unsettled Identities. “A ancestralidade, cada vez mais entendida como misturada”, argumenta o professor, “foi perdendo influência quando se trata de identidade. E raça e etnia, assim como gênero, passaram a ser vistos como alguma coisa que praticamos, não que possuímos.” Mas Brubaker não deixa de enfatizar o dilema intrínseco à autoidentificação racial: “Claro, raça é também – e de forma crucial – alguma coisa que outros nos atribuem, e as oportunidades de reposicionamento étnico-racial continuam desigualmente distribuídas tanto entre os grupos raciais como no interior deles.”
Em outras palavras, raça, gostemos ou não disso, é algo que se define também (senão principalmente) pelo olhar implacável do outro. O Brasil, como de hábito, percorre caminhos tortuosos nessa questão: enquanto os Estados Unidos ensaiam timidamente a flexibilização da histórica divisão binária entre negros e brancos, medidas supostamente voltadas à maior equidade de “oportunidades de reposicionamento étnico-racial” têm se ressentido, por aqui, da ausência do binarismo tipicamente norte-americano como ponto de partida. As infindáveis polêmicas em torno da autoidentificação racial para acesso a cotas em instituições públicas brasileiras dão prova dessa dificuldade, num país em que o outro de olhar mais implacável tem sido, desde sempre, a polícia – árbitro violento da definição de raça.
Essa mediação não se resolve por decreto, infelizmente. (Também não ajuda muito que o maior ídolo do esporte mais popular do país tenha, quando perguntado certa vez sobre racismo, se saído com a histórica frase: “Nunca [sofri]. Até porque não sou preto, né?”, como declarou alegremente Neymar.) E se tornou um dilema visível para outras minorias no Brasil.
Num dos artigos mais instigantes de uma coletânea recém-lançada, The Crisis of Multiculturalism in Latin America, a antropóloga Véronique Boyer destaca um conflito no país entre o que chama de “populações frágeis” – as que não encontram um marcador étnico-racial a que se agarrar, como os chamados ribeirinhos ou caboclos da Amazônia, região de estudo da pesquisadora francesa – e as minorias cuja identidade étnico-racial é reconhecida, senão com facilidade, ao menos em princípio: caso dos índios e dos quilombolas, cuja reivindicação é territorial, além de identitária. Já o movimento negro – nem puramente étnico-racial, nem de luta pela terra – assume feição mais cultural, na falta de melhor definição; e, com sua atuação concentrada fundamentalmente nas cidades, permite a adesão de indivíduos de (quase) todos os matizes, basicamente pela via da autoidentificação.
O caso Dolezal ganha, portanto, inesperada ressonância na complexa discussão racial brasileira, o que não escapou à historiadora Maria Lúcia Pallares-Burke, biógrafa de Gilberto Freyre, em debate recente na Universidade de Cambridge: “Talvez pudéssemos especular sobre a possibilidade de os brasileiros claros que se querem provar negros no Brasil de hoje – a fim de receberem os benefícios que as novas políticas afirmativas asseguram – estarem subvertendo um sistema centenário injusto que tradicionalmente valorizou a branquitude”. O problema é definir o que sejam esses brasileiros (ou norte-americanos) “claros”, em oposição aos simplesmente “brancos”.
Muitas vezes desprezada como mera bizarrice, a história de Rachel Dolezal desafiou todo bom senso – e o pouquíssimo consenso – nessa discussão. Seu livro de memórias, ainda que careça de predicados literários, dá mais uma volta ao parafuso. Resta saber se, diante da intolerância emergente por toda parte – o caso da ex-ativista, é bom lembrar, veio à tona no que hoje parece outra era, ainda sob Obama –, um dia não será lembrado também como o último prego no caixão do multiculturalismo.