A tempestade de Bob Dylan

Literatura

12.09.12

A carreira de Bob Dylan, 71 anos, pode ser vista como uma montanha russa de reviravoltas musicais e estéticas, com uma trajetória que vê seu protagonista sair do papel de enfant terrible da folk music nova-iorquina e se tornar a lenda viva da cultura do século 20. Neste percurso, reúne fãs e desafetos, seguidores e devotos, adjetivos e epítetos que o tornam uma figura dúbia e contraditória.

Mas esta versão é a de quem acompanhou sua biografia de perto, vendo-o converter-se ao Cristianismo para cantar gospel com propriedade, virando-se de costas para o movimento pelos direitos civis com uma guitarra elétrica em riste, trancando-se com a The Band em busca das raízes dos Estados Unidos. Mas se sua produção cultural for analisada como uma só – discos, singles, shows, filmes, livros e até telas -, percebemos que, em vez de capítulos isolados em determinados arcos ou períodos da carreira, temos um artista contando o impacto do século norte-americano no próprio país.

Ao perceber-se velho, à entrada dos anos 1990, passou a dedicar-se a standards da música dos EUA, resgatando pérolas folk por dois discos consecutivos, Good as I Been to You (de 1992) e World Gone Wrong (de 1993), antes de colocar-se ele mesmo nesse panteão, gravando seu Unplugged da MTV em 1994. Ao mesmo tempo, começa a abrir seu arquivo de gravações piratas, com a Bootleg Series (que hoje já chegou ao décimo volume). Passa quatro anos sem gravar e, em 1997, começa a fase final de sua carreira, na qual se volta para a música produzida nos EUA desde que começou-se a gravar música no país. Time Out of Mind dá início a um lento retrocesso histórico que o coloca musicalmente exatamente no meio do século XX, quando a cultura de massas levou a cultura dos EUA para o resto do planeta. Não por acaso o disco mais emblemático desta nova safra chama-se Modern Times (de 2006), pois Dylan se enxerga como um artista de época – de quando ser moderno era o ápice de uma cultura.

Tempest, seu recém-lançado disco de 2012, segue a mesma linha destes álbuns anteriores e amassa blues, country, folk e gospel numa mesma toada pesarosa de guitarra. O tom das canções soa ainda mais fúnebre pelo atual estado da voz de Dylan, tão grave quanto há dez anos, mas rachando na garganta, numa mistura de Tom Waits com Vincent Price. Mas o clima não é de luto, como muitos acharam, quando ele anunciou que seu novo disco teria o mesmo título da última peça de Shakespeare. “O nome da última peça de Shakespeare é A tempestade. Não se chamava apenas Tempestade. O nome do meu disco é apenas Tempestade. São dois títulos diferentes”, disse em entrevista à revista Rolling Stone.

O clima apocalíptico parece ser desfeito nas primeiras faixas do disco. O primeiro single – “Duquesne Whistle”, que abre o disco – é quase um ragtime tocado por uma banda de Nashville. O disco segue elétrico atravessando o blues (“Soon After Midnight”), o boogie elétrico à John Lee Hooker (“Narrow Way”, com mais de sete minutos) e “Long Wasted Years” chega a citar um verso inteiro de “Twist and Shout”, mas começa já começa a anoitecer o clima do disco. O blues oitentista “Pay in Blood” até parece desviar o caminho, mas a partir de “Scarlet Town” – com outros sete minutos rumo ao século 19 – o céu escurece e a tempestade do título começa a ficar mais fácil de ser percebida.

http://www.youtube.com/watch?v=mns9VeRguys

A primeira faixa do disco, “Duquesne Whistle”

“Early Roman Kings” é o clássico blues de Chicago e a letra é o clássico Dylan, enfileirando referências obscuras e jogos de palavras ao descrever uma parada que pode ser o próprio século 21, ostensivo e implacável, com suas celebridades e novos ricos sem misericórdia – “eu não morri ainda”, esbraveja, “ainda toco meu sino”. E depois dela chegamos à melhor parte do disco – os nove minutos em que Dylan descreve em grande forma o romance de um casal em “Tin Angel”, os quase quatorze minutos da faixa-título que, sem refrão, conta a tragédia do Titanic como um bardo, e “Roll On John”, em que canta a história de John Lennon por mais de sete minutos, com referências literais a “A Day in the Life”, “Slow Down” e “Come Together” – todas cantadas por John nos Beatles – e o transforma no “Tyger tyger” do poema de William Blake no refrão.

Um final atordoante para um disco que começa pouco promissor, quase trivial, mas que cresce em estatura e importância na medida em que suas músicas vão avançando. Prova de que Dylan é um dos artistas mais importantes do mundo hoje – e não apenas um velho museu dedicado a si mesmo, como boa parte de seus companheiros de geração.

* Alexandre Matias é jornalista, editor do caderno Link e dono do site Trabalho Sujo.

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