A verdade inelutável das azeitonas

Miscelânea

26.08.13

(colaboração de Fernando Krieger)

Azeitonas inelutáveis

Vira e mexe e eu não resisto: volto ao arquivo Paulo Mendes Campos, ainda que deixando para amanhã a revisão do orçamento de julho, a programação de 2014 ou a resposta a um e-mail que chegou de Lisboa. E se me bate a culpa, depois de ler vários textos do autor em  recortes de jornais que ele guardou com criativo talento arquivístico, rapidamente me justifico lembrando Oscar Wilde: “posso resistir a tudo, menos à tentação”. Assim escreveu o irlandês, que, como o cronista de O amor acaba, deixou aforismos insuperáveis.

Os dois, de maneira bem diferente, eram comandados por forte espírito dionisíaco. Viveram, cada um a seu modo, os desregramentos, mas Paulo, irredutível devoto das mulheres, além de boêmio veterano, conseguiu a façanha de ter emprego fixo e construir uma família harmoniosa, que não só o amou até a morte mas o ama além dela.

Wilde esbanjou talento nos salões ingleses. Espalhou aos quatro ventos seu amor por lorde Alfred Douglas numa época em que a homossexualidade era assunto proibido, mas morreu sozinho, em Paris, depois de ter amargado a prisão em Readings, onde escreveu o extraordinário De profundis.

A essa altura o leitor já tem todo o direito de se perguntar: e as azeitonas? Ao que eu responderia que programara entrar direto no assunto, que não tinha a menor intenção de falar em Oscar Wilde quando comecei a escrever, mas como os dois além de prosadores e poetas foram também frasistas, fui deixando os frutos para depois. Afinal, “posso resistir a tudo, …”

Pretendia começar contando que numa recente e indisciplinada incursão ao arquivo de PMCampos, encontrei, num de seus cadernos, vestígios de uma fase contemplativa de sua vida. Não que tenha chegado a viver em meditação, embora prezasse muito o silêncio. Pisava leve, fechava portas com respeito – é ele quem conta -, acrescentando que a primeira coisa que reparava numa mulher “depois da qualidade de expressão, era a tonalidade da voz”. Apreciava tanto essa qualidade que adorava reler a fala do rei Lear, no momento em que, chorando a morte da filha querida, Cornélia, lembrava seu tom de voz baixo e delicado: “Her voice was ever soft, gentle, and low – an excellent thing in a woman“.

O que é certo – provam as muitas páginas do caderno – é que Paulo estudou zen-budismo, técnicas meditativas, sabedoria do Oriente, e se deu ao trabalho de traduzir muitos textos sobre esses temas. Da leitura e da tradução passou à prática, ou pelo menos mudou o modo de observar o que aparecia à sua frente. Diante de um prato de azeitonas, refletiu sobre o ritmo nervoso do cotidiano moderno e escreveu a maravilha que transcrevo a seguir, publicada na Manchete de 4 de setembro de 1971.

Mais de 40 anos depois, o texto tem redobrado sentido. E acredito que, por si só, se renovará a cada ano, até que em 2070 seja transmitido, palavra por palavra, nos olhares dos humanos, que não terão mais cadernos, nem canetas, nem lápis, nem computadores, e talvez nem precisem falar, mas espero que não percam os olhos:

Olho para uma vasilha cheia de azeitonas e sinto res­peito. Vivemos habitualmente, todos nós, sobre os nervos, em ritmo mais acelerado que a percepção. Essa nervosidade é um sucedâneo: substitui a vida, não é a vitalidade. Vivendo com a velocidade dos nervos, a im­portância de uma azeitona me escapa. A própria presteza de minha percepção nervosa me impede de ver o que é lento dentro e fora de mim. Só posso ver o que possui a velocidade aproximada à dos meus nervos. Daí, habitualmente, nada exis­tir mais estranho ao homem do que uma azeitona, um monge do Tibete, um pedaço de ma­deira ? identidades antípodas ao ritmo de nossos nervos. Mas a contemplação descobre a vida sem os nervos, libertando-se do desacerto fundamental de dois ritmos. A contemplação é o espírito devolvido ao ritmo do universo, e o ritmo do universo é um movimento que é ao mesmo tempo imobilidade ou quietude. Agora, por exemplo, o pequeno fruto movimenta-se na sua quietude. Sinto suas fibras consagradas ao ritmo de existir: o pedúnculo que se oferece com dignidade; a inelutávelverdade da azeitona. A azeitona não está sozinha no universo; só o homem tem a capacidade de estar sozinho no universo. Mas neste momento também eu não estou só, pois estou surpreendendo o ritmo da azeitona, pois acerto meu modo de existir ao compasso do universo, ao consentimento das coisas.

Mas comecei este texto com “vira e mexe…”, e agora lembrei de pedir a meu colega Fernando Krieger, que trabalha no IMS sob a batuta de Bia Paes Leme e sabe tudo de música, para contar a história, não da expressão, que não é da área dele, mas da canção de Luiz Gonzaga que tem esse título e mudou a vida do sanfoneiro de Exu. Com a palavra, o  Fernando:

Na Lapa, em 1940, havia uma pensão que se tornara uma espécie de república de estudantes do Ceará. Esses jovens costumavam frequentar os bares onde Luiz Gonzaga, nordestino como eles, tocava valsas, polcas, mazurcas. Um dia lançaram um desafio: que ele mostrasse alguma música lá da terrinha, com sotaque e sabor de Nordeste. Tanto insistiram que Gonzaga ficou de pensar.

Em casa, mexendo na sanfona, procurava lembrar as músicas que tocava com o velho Januário, seu pai. Preparou duas: “Pé de serra” (não confundir com o xote “No meu pé de serra”, que ele e Humberto Teixeira compuseram anos depois, em 1945) e “Vira e mexe”. E ficou esperando a trupe do Ceará aparecer novamente.

Quando os estudantes voltaram ao bar, o sanfoneiro caprichou e atacou o “Pé de serra”. Foi um acontecimento: pessoas do lado de dentro gritando e pedindo bis, outras que aplaudiam do lado de fora… Respirou fundo, agradeceu e atacou de “Vira e mexe”. Foi uma ovação! Naquela noite, ganhou bastante dinheiro.

“Vira e mexe” foi uma das quatro músicas registradas por ele no dia 14 de março de 1941, na primeira sessão de gravação como sanfoneiro da RCA Victor. O disco foi lançado em junho daquele ano. Essa versão recebeu o auxílio luxuoso, não creditado no disco, do violonista Garoto. Pelas mãos do primeiro parceiro de peso, Miguel Lima, a composição ganhou letra, ainda no início dos anos 1940, e mudou de nome para “Xamego”.

* Elvia Bezerra é coordenadora de literatura do IMS.

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