O físico italiano Carlo Rovelli

O físico italiano Carlo Rovelli

Beleza não pragmática

Ciência

20.03.17

Do que é feito o mundo – o universo, os planetas, eu, você, essa cadeira onde estou sentado? A pergunta exige uma resposta complexa, tão complexa que a cada ano novos livros são lançados tentando explicar as questões mais básicas da matéria para pessoas comuns. São os chamados “livros de divulgação científica”, que buscam saltar o abismo criado na sociedade contemporânea entre o ensino de exatas e o de humanas. Na época da especialização desmedida, é perfeitamente possível alguém ser um dos maiores intelectuais em história da arte e ainda assim não ter a menor noção do que existe dentro de um átomo para além do modelo aprendido na escola, no qual um elétron orbitava um núcleo como um pequeno satélite ao redor da Terra. Assim, quando um brasileiro ganha o prêmio mais importante na área da matemática, explicar seu trabalho é uma tarefa infinitamente mais difícil para um jornalista do que mostrar o valor da poesia de Ferreira Gullar.

Acaba de ser lançado no Brasil o mais recente fenômeno editorial deste meio de divulgação científica, A realidade não é o que parece (Objetiva, tradução de Silvana Cobucci), um best-seller inesperado até pelo próprio autor, o italiano Carlo Rovelli, especialista no tema da gravidade quântica. No livro, o físico reconstrói toda a história dos grandes avanços na maneira de pensar a estrutura básica do universo, da filosofia de Demócrito e sua visão atômica, passando por Newton, Faraday, Einstein e Feynman, até as teorias mais recentes e ainda não comprovadas, área na qual o próprio Rovelli é um expoente.

A pergunta que um leitor deve fazer é: certo, mas o que torna um livro de divulgação científica melhor do que a média? Por que ler Rovelli e não qualquer outro na estante da livraria?

O modelo máximo – penso – do sucesso da divulgação científica é Cosmos, o programa de 1980 de Carl Sagan, que se tornou a série de televisão pública mais assistida da história dos Estados Unidos, e que recentemente recebeu uma nova versão coordenada por Neil DeGrasse Tyson. Na série – e no livro subsequente – Sagan mostrou em imagens coloridas e com a psicodelia soturna dos anos 1980 visões de galáxias distantes, nebulosas e buracos negros. Com isso capturou a imaginação de telespectadores de todas as idades, despertando um fascínio pela ciência. De repente, astronomia e cosmologia se tornaram cool.

Mas o que fazer com o tema de Rovelli, que não tem imagens lindas? O que fazer com os quarks, os campos de Higgs, as ondas gravitacionais? Como fascinar alguém falando de partículas subatômicas que jamais serão vistas pelo microscópio mais potente? Na biografia The Strangest Man, sobre Paul Dirac, um dos mais importantes cientistas da primeira metade do século XX, o autor Graham Farmelo comenta que o físico “rejeitava todos os pedidos de descrever em imagens o mundo quântico (…) para ele, não havia sentido nisso – as partículas quânticas só podiam ser descritas na linguagem precisa e rarefeita da matemática”. Nas palavras do próprio Dirac, “fazer um desenho é como um imaginar um cego apalpando um floco de neve. Basta um toque e desaparece.”

Rovelli desobedece como pode o pensamento de Dirac. A realidade não é o que parece está recheado de imagens: sejam fotos dos cientistas citados, sejam tabelas mostrando como cada cientista em sua época enxergava o mundo, sejam gráficos e representações computadorizadas de algumas teorias. Mais do que isso, Rovelli passa o livro inteiro tentando traçar paralelos entre os avanços científicos e o pensamento de filósofo e poetas, especialmente seu conterrâneo Dante Alighieri. Em alguns momentos, a busca obsessiva por encontrar um equivalente na filosofia grega parece forçada. Apesar disso, o livro triunfa na maior parte do tempo, em especial na insistência em explicar algumas fórmulas matemáticas – como se Rovelli admitisse que, por mais que se cite a Divina Comédia, cedo ou tarde vamos ter que incluir algumas variáveis na história.

Para um livro tão preocupado com a natureza do universo, Rovelli passa um tanto batido pelas descobertas do CERN e o chamado Modelo Padrão. Nesse sentido, um outro livro de divulgação científica recente parece formar o complemento perfeito. Estou falando de O cerne da matéria (Companhia das Letras, 2013), do brasileiro Rogério Rosenfeld, que traça uma pequena história dos aceleradores de partículas até o CERN e a descoberta do bóson de Higgs (o cientista estava presente no dia em que esta foi anunciada). Se Rovelli se preocupa com o que há na ausência de matéria, nos interstícios do espaço, Rosenfeld quer mostrar todas as pequenas forças e partículas que compõem os átomos.

Ao falar de livros de divulgação científica, sempre aparece também a questão da relevância: qual a utilidade para uma pessoa de humanas ler um livro desses? Entender por que gastam bilhões de dólares com o CERN? Nenhum dos dois livros citados fingem que a coisa que o mundo mais precisa hoje em dia é a mecânica quântica. A dificuldade em conseguir investimentos, explica Rosenfeld, é justamente convencer governos a botar dinheiro em algo que não vai melhorar a sociedade nem ser utilizado em armas superpoderosas (houve uma época, logo após a bomba atômica, em que o investimento em física teórica parecia rentável militarmente).

No início dos anos 2000 vários filmes tentaram, calcados na má-fé, converter a física quântica em uma doutrina new age espiritualista. Lixos fumegantes (não há outro termo para eles) como O segredo e What the Bleep Do We Know? sequestravam noções vagas de física teórica e as utilizavam como prova milagrosa do poder do pensamento positivo. Com isso, obtiveram um sucesso de público gigantesco para o mercado de documentários.

Rovelli e Rosenfeld, por outro lado, mantêm a dignidade: escrevem livros para serem consumidos pelo público comum sem prometer nenhuma função prática, nenhuma lição de vida. No fim das contas, contemplar a granularidade da matéria ou a estrutura de um átomo pode ser como admirar uma paisagem bonita. O que está em jogo é o mesmo que a série Cosmos pretende promover com suas imagens fulgurantes: o fascínio com a ciência e a natureza.

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