Carta nº 2

Correspondência

19.06.13

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Sandra Bréa

Sandra Bréa

Meu caro e preclaro Marechal de campo, canjebrina e caixa de fósforo, sendo o campo aí o de futebol, por supuesto.

Em tua carta anterior, concedeste-me cavalheiresca barretada ao declarar de público que ias ter que “rebolar, rebolar e rebolar” para, supostamente, ombrear comigo na confecção destas mal traçadas que ora estamos a trançar aqui, tu em teu Rio de Janeiro, que tanto forceja por continuar lindo, eu neste planalto fabril e febril onde há 459 anos os jesuítas lograram erguer o santo madeiro fundando a São Paulo de Piratininga, não sem antes espingardear aos magotes os originários da terra que até então, de arco e flecha na mão, saltitavam nus com desculpabilizada alegria pagã atrás de paca, tatu, cotia não, que cotia não se come, sabe-se lá por quê. Isto, apesar de não estar em Sampa neste momento, como logo explicarei. Mas meu abantesma literário está, e isso é o que conta.

Voltando à sua rebolation, rebolaste foi demais da conta, meu chapa, na tua primorosa carta número um. De descadeirar as mais frenéticas passistas de Salgueiro, Estácio e Mangueira, juntas, e as mais cadeirudas belly dancers sauditas e suaditas das arábias e saaras esturricadas dos orientes profundos. Um rebolado de dar conta de uns dez bambolês simultâneos, eu diria. Ou mais.

(E que tal “Bambolês Simultâneos” pra nome de banda de rock conceitual pós-pink-punk cujo grande hit nas rádios da internet podia ser uma abominação sonora que incluísse versos como estes que me ocorrem agora:

Me passa um fax

me traz um lorax,

me faz um pneumotórax,

na santa pax,

me chama de Asterix,

ou, se preferir,

pra me fazer rir

me chama de Tom Mix.

Não dava o maior pedal, como se dizia outrora agora? Bambolês Simultâneos. A crooner podia ser a tua Missiva Levanta, que, a par de ser também personagem de “romances com mensagem,” como o amigo gargalhofeiramente sugere em sua carta, seria outrossim, o que pouquíssimos sabem, uma autêntica princesa gitana nascida por equívoco em Vilnus, capital da Lituânia, e não na Andaluzia ou na Romênia, como seria apropriado, e que veio dar com seus suaves costados na costa carioca a bordo de um navio pesqueiro, por ser ela um notório peixão, gíria da época do Wilson Batista que tu saborosamente resgataste em tua carta. Fecha parênteses).

Meu altivo Marecha, o elenco de bambolês temáticos que a tua missiva mantém em rotação com o teu já clássico jogo de cintura estilístico (eu avisei que isso aqui ia virar a mais desbragada puxação de saco da literatura epistolar de todos os tempos, excetuando, talvez, o troca-troca postal entre Machado de Assis e Joaquim Nabuco, esse imbatível), seu elenco de mabolês, eu dizia, é de enlever le chapeaux, como diria o grande poeta Rambô das parnasianas Roliúdes mont-parnasianas. Valeria revisitá-los, pelo sabor particular de cada um e pela vertiginosa panóplia cultural que, em conjunto, eles compõem. E também pelo condão que têm de presentificar a tua distante pessoa, de trazê-lo à mesa cá comigo, saboreando esse Corbières de promoção que eu comprei num mercadinho metido a besta de Gonçalves, sul de Minas, nas dobras geológicas da Mantiqueira, onde me acho acoitado, a quase 300 km da Sampa amara, num chalé maneirinho, sem internet, mas também sem choro nem vela, cujo uso e aluguel reparto com o meu dentista – vejas tu, fiquei chapa do temível algoz da broca e do boticão -, de nome André Oppipare, ótimo profissional, aliás, além de simpático e bem-humorado, cozinheiro sofisticado de opíparas iguarias, fazendo jus ao sobrenome, e emérito degustador de vinhos, atributos raros de encontrar num só espécime da humanidade em geral, como bem o sabes, meu desiludido comissivista. E se estou gastando tinta eletrônica falando do meu dileto esculápio bucal é porque graças a ele e sua perícia odontológica ainda consigo encarar com galhardia coxinhas e bifes que me descem mastigadinhos pra usina gástrica e, daí, pros canais competentes e por vezes retumbantes da minha pedestre fisiologia. De quebra, ainda disponho desse pé na roça sul-mineira que ele arrumou, lugar propício a elocubrações metafísicas e à observação de sacis, curupiras e mulas-sem-cabeça, bem como ao consumo imoderado de cachaças e vinhos, e, last but not least, à redação de epístolas vadias.

Teus assuntos, meu doce Alvarenga, bamboleiam instigantes pelo intelecto do leitor, a começar das menções a Wilson Batista e à misteriosa etimologia da palavra canjebrina, temível e assaz palatável infusão de cana braba que levou a pobre Luzia à breca, e passando em seguia à polêmica que WB manteve com Noel por conta da apologia do malandro nos sambas do Wilson, que tanto irritava o grão-poeta da Vila Isabel. O Rosa, como sabemos, preferia descriminalizar a figura do malandro, convertendo-o no pacífico boêmio, visto como um lírico de corte chapliniano, tipo que não era forte, nunca praticou esporte nem conhece futebol, conforme versejou o próprio num samba memorável, nem tem outro uso pra navalha que não o de fazer a barba pra sair bem na foto.

Da canjebrina, com breve menção à prodigiosa “erva do norte”, mui consumida por autores e personagens os mais diversos, em reversa e controversa promiscuidade, o versátil amigo passa à caixinha de fósforo que imortalizou Cyro Monteiro, imortalidade fugaz como um fósforo riscado, sina, aliás,de toda arte, se olharmos a experiência humana na Terra de uma perspectiva paleontológica, digamos assim. Odisseu e Dom Quixote não perdem por esperar: dia virá em que ninguém mais se lembrará deles. É como essas línguas ágrafas em extinção que, no final, são enterradas com seus últimos falantes. Na Polinésia tem uma língua dessas, que só dois caras dominam. Mas como são inimigos figadais e não falam um com o outro, resulta daí que a tal língua não é mais falada de todo, informação que, juro, tirei de uma National Geographic e não posso confirmar agora por falta de internet – abençoada falta, aliás. Quando um morrer, lá nas cucuias polinésias, o outro ruminará um “já vai tarde” na tal língua em extinção, que nunca mais será ouvida. Se tivesse um Google aqui pra chamar de meu sacaria no ato o nome da moribunda língua. Como não tenho, terás que te fiar na minha dúbia palavra e ainda mais inconfiável memória.

Voltando à questão da transitoriedade da arte, mesmo das obras e autores tidas e tidos hoje como imortais – Sic transit gloria mundi (“Assim transa a Glória com todo mundo”) -, e se me permites mais uma ligeira digressão, é um tanto aflitivo imaginar que não haverá mais os adjetivos quixotesco ou homérico nos dicionários, não achas? E que talvez nem haja mais dicionários ou estantes para depositá-los. Na sinistra verdade verdadeira, talvez não haja nem mais a Terra num futuro já vislumbrável. Pelo menos, não como a vejo agora da varandinha da minha choupana mata adentro: araucárias erguendo os braços em prece aos céus e pedindo pra não virar lenha de lareira, uma cerejeira que deu de florir em pleno inverno quase ao alcance da minha mão e morros e mais morros verdejantes em todos os horizontes disponíveis, estando eu próprio encarapitado num deles.

A propósito: faz 7 graus lá fora, sensação térmica de zero grau quando bate o vento a espalhar pinhões pra todo lado. (Daí, talvez, venha a desusada expressão “Ora, pinhões!”, que, na acepção original, equivalia a dizer “Que puta frio!”)

Digressão devidamente digredida, volto aos teus bamboleantes temas que me fazem rebolar sem bambolê no meio da gafieira, como diria o grande Billy Blanco, único sambista notório nascido no Pará, que eu saiba. Ó alvaríssimo cumpadre que da costa avistas a selva dos morros cariocas, dono desse belo nome de senador, Alvaro Costa e Silva, feito de encomenda pra figurar em placa de rua. Tua enumeração das mazelas urbanas do teu Rio de Janeiro, entregue a empreiteiros gentrificadores e a um alcaide se-achão, oportunista como todo político e ridículo, é de chorar de raiva e de rir, acho que na ordem inversa. Mas não vou me deter nisso que é pra não me sentir tentado a sentar a pua na minha sofrida cidade, que, afinal de contas, e ao fim e ao cabo, me dá tanto desalento quanto sustento. O melhor de São Paulo, à parte os amigos e os amores, mais alguns comedouros, botecos, cinemas e teatros, ainda é cair fora de lá, como atestam as felizes araucárias que ora velam por mim aqui nas Mantiquêra.

O fato é que, cá em Gonçalves, meu atual e transitório paradeiro, ninguém está construindo prédios em volta. Por aqui só as coníferas constroem-se a si mesmas, apesar de que a fatalidade do progresso também anda rondando esse éden natureba. Hoje à tarde, por exemplo, caminhando por uma singela estradinha de terra cercada de um exagero de verde e margeada por rios e córgos de águas claras a rumorejar por entre as pedras que alguma reviravolta sísmica jogou ali há milênios, tive os tímpanos atacados por uma potente motosserra que, na mão de um peão sem coração, reduzia troncos de árvores a lenha e pau pra cerca na grande área ajardinada de um sítio de turista. A estradinha contornava em curva fechada a propriedade onde a motosserra alardeava sua prepotência em estourantes decibéis. Pensei: tô ferrado. Se vier carro de um dos dois lados dessa curva, ou dos dois ao mesmo tempo, não vou ouvir a aproximação do ou dos motores, o que vai ser um problema, pois não poderei me posicionar na via estreita e lamacenta de modo a não ser surpreendido pelo veículo.

Benedito e feito: veio uma moto, inaudível sob a zoeira da motosserra, e deu de cara comigo. Quase me atropelou. O motociclista teve a gentileza de confinar ao ambiente privê do capacete os impropérios que me endereçou. Afinal, o cara quase caiu da moto ao desviar de mim. Foi por pouco, pra mim e pra ele. Quase passo da epístola pro epitáfio. Voltei aqui pro meu ecológico tugúrio pensando em escrever um opúsculo intitulado: “Os perigos ocultos do bucolismo hodierno”.

Pra encerrar essa ociosa parolagem, cito um último bambolê temático que fizeste girar com galhardia em tua lustrosa missiva: a Rose di Primo, deliciosa pin-up do passado que, avara, se recusou a te ofertar o copinho de mate que ela acabara de levar à boca, deixando o jovem fetichista com a vara a ver navios. Mas esse é o destino das musas: deixar à míngua de afetos concretos esses moços, pobres moços, que fomos um dia.

Sua reverência à antiga gostosona me remeteu, por incrível que te pareça, ao Chico Alvim, poeta de truz e diplomata hoje aposentado, que era chegado em outra boazuda da mesma época que La di Primo, a já falecida Sandra Bréa, figurinha fácil das capas de revistas masculinas dos anos 70/80. Conto-lhe agora, a propósito, uma história que me foi relatada por minha arquissaudosa amiga Ana Cristina Cesar, grande amiga do Chico Alvim também, história essa que lhe foi, por sua vez, confidenciada pela mulher do poeta, a Clara Alvim. Nâo sei se quem contou o conto aumentou um ponto, mas aí vai a história.

Consta que o Chico Alvim, lá nos anos 70, lotado em nossa representação diplomática em Paris, estava de mudança para Brasília, para onde despachou antes a Clara e os filhos, de modo a já irem cavando um bom lugar pra morar na árida capital federal, algo complicado na época. Todos os dias Chico e Clara se falavam ao telefone, via DDI, de modo a trocar notícias e matar saudades. Num desses telefonemas, Chico Alvim, que recebia as principais revistas do Brasil na embaixada, disse à mulher: “Clara, compre já a Playboy desse mês, que tem a Sandra Bréa na capa. Além das fotos da moça pelada, tem uma entrevista com ela onde a fofa diz que é minha fã de carteirinha e que eu sou o maior poeta vivo do país! Li ontem à noite, antes de dormir. Fantástico, né mesmo?”

No telefonema do dia seguinte, a boa Clara, depois da troca de carinhos e informações práticas com o maridão, lembrou-se de lhe comunicar: “Amor, você pirou. Comprei a Playboy com a Sandra Bréa, li a entrevista dela uma, duas, dez vezes, e não vi a menor menção a você. Nada. Nem uma palavrinha. A Sandra Bréa simplesmente não fala de você, Chico. De onde você tirou isso?!”

Só aí caiu a ficha broxante: aquilo tinha sido uma espécie de delírio onano-hipnagógico do poeta, que, sozinho na cama de casal, depois de encher as retinas com a nudez da Sandra Bréa, pegou no sono e sonhou que a beldade declarava-se rendida ao seu talento poético.

É isso por ora, meu bravo Marecha. Fique bem aí no Rio, na canja e na canjebrina, e revonguem-se as disposições em contrário.

Um saudável abraço montês e cortês do seu friorento amigo,

Reinaldo Moraes

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