Comecei a compilar, mentalmente, casos de autores que criticam o mundo acadêmico. O número de escritores que adota esta postura é tão grande que arrisco dizer que isso se tornou uma tendência das letras contemporâneas. Há, por um lado, os casos bastante diretos, como o de Jonathan Franzen, em As correções, e o de Zadie Smith em Sobre a beleza. Ambos os autores praticam um realismo muito próximo do romance de costumes, e suas críticas são sempre através do comportamento de seus personagens. Há outros escritores, no entanto, que passaram por uma mudança de paradigma. Iniciaram suas carreiras fascinados por teoria literária e foram progressivamente abandonando esta paixão, até se tornarem críticos de várias facetas da academia. É o caso, acredito, de David Foster Wallace e J.M. Coetzee.
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O jargão acadêmico está na raiz da obra de David Foster Wallace, seja a ficcional ou a ensaística. Graduado em filosofia e obcecado por lógica, Wallace fez das notas de rodapé peças onipresentes em seu texto. O autor americano também usa vários termos comuns em dissertações e teses, mas que geram estranheza em contos, como “i.e.”, “[sic]”, “ref.” “cf.”.
O primeiro romance de DFW, The broom of the system, foi vítima do fascínio pelo mundo acadêmico, pelo menos na opinião do autor. Na longa entrevista que cedeu a David Lipsky, Wallace conta que o seu editor sugeriu uma mudança no final de The broom of the system, e o escritor respondeu o editor com uma carta de dezessete páginas explicando como aquele final representava uma conversa entre Derrida e Wittgenstein, entre presença e ausência. O editor aceitou a argumentação e não mudou o final. Em 1996, ano da entrevista com Lipsky, Wallace demonstra ter mudado de ideia. “Quer saber? É um documento teórico brilhante, mas um final de merda”. O autor justifica o que considera ser o “fracasso” do livro no fato de que, para escrevê-lo, não conseguiu se soltar de seus laços com a teoria literária: “Eu estava com quatrocentas mil páginas de filosofia continental e teoria literária na cabeça, e eu iria usar isso para provar que era mais inteligente do que ele”. Para encontrar sua voz como ficcionista, Wallace considera que precisou se libertar das amarras acadêmicas – e fez, pelo menos em minha leitura, uma crítica particularmente venenosa à teorização exagerada em seu conto A pessoa deprimida, incluído no livro Breves entrevistas com homens hediondos. Neste conto, a história da pessoa deprimida em questão é progressivamente “dominada” por notas de rodapé, que tomam espaço na página e lotam o texto de um jargão que não consegue dizer nada, de fato, sobre aquela pessoa. Mas é claro: Wallace faz estas críticas “de dentro”. Professor universitário, o autor americano parece sentir, no mesmo nível, atração e repulsa por teoria – seja esta filosófica, psicanalítica ou literária.
Conversando com o escritor Vinicius Castro, especialista em Foster Wallace e interlocutor valioso deste meu texto, ele apresentou o seguinte insight sobre o assunto: “Acho que ele [DFW] tinha uma atração enorme pela academia e pela abstração intelectual sofisticada, mas também um medo enorme de soar pretensioso e de se deixar seduzir pelo jargão automático e o palavrório vazio. Talvez por isso ele equilibrasse os tiques de i.e., e.g. e n.b. com o registro bastante informal e cheio de gírias. Querendo soar como um professor de Oxbridge de boné virado pro lado e skate debaixo do braço. Acho que dá para dizer que ele localizava inautenticidade nesses registros muito pretensiosos e auto-envolvidos (embora tivesse algum gosto por eles), assim como no manuseio retórico da publicidade e na autoconsciência hipertrofiada dos personagens dele. Nada escapava, afinal de contas”.
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Mais interessante e complexo é o caso do sul-africano J.M. Coetzee. Em seu fascinante livro de ensaios Doubling the point (1992, infelizmente nunca lançado no Brasil), diz não ser um filósofo “treinado”, e que sente maior liberdade procurando respostas teóricas na ficção do que na crítica. Ainda assim, os ensaios de Doubling the point estão mergulhados em teoria pesada. Um exemplo é o caso do ensaio sobre The burrow, de Kafka, um artigo excelente no qual o autor sul-africano analisa os tempos verbais empregados pelo escritor tcheco para tentar compreender como funciona o tempo na obra de Kafka. É curioso observar que a compilação de ensaios que Coetzee lançou quinze anos depois, Mecanismos internos, não tem quase nada de teórico. O autor sul-africano era muito mais fascinado por teoria pesada, acadêmica, forrada de referências a Derrida e Foucault, no início de sua carreira.
Também precisa ser analisado o fato de que o primeiríssimo livro de Coetzee, Dusklands, já começa com um jogo metaficcional – e a metaficção (o artifício de expor que certo texto é ficcional, o que pode se dar de várias formas, geralmente colocando um “livro dentro do livro”) tem profunda ligação com o pensamento acadêmico. Coetzee, em Doubling the point comentará que “a metaficção logo perde sua atração” e que “escrever sobre escrever não oferece muito prazer narrativo (e não sou ascético ao ponto de renegar o prazer narrativo)”. No entanto, apesar deste comentário, o autor sul-africano nunca abandonou este dispositivo literário, e continuou utilizando-o (e revolucionando-o) até em seus livros mais recentes, como Diário de um ano ruim.
Ainda assim, sinto que Coetzee passou por uma mudança de paradigma, no sentido de que começou a carreira como um entusiasta do mundo acadêmico tendo, depois, abandonado esta perspectiva. Como possível prova para a hipótese que levantei, apresento o caso de Foe/Elizabeth Costello.
Em Foe (1986), Coetzee reconta a história de Robinson Crusoé do ponto de vista de uma mulher, que teria sido excluída da história por Daniel Foe (que ainda não se chamava Defoe). Foe, em inglês, significa inimigo, e aqui teríamos um caso exemplar de um narrador masculino que, ao contar a história, apaga traços e constrói a sua versão da história, que passará a ser encarada como “oficial”.
Porém, em Elizabeth Costello, de 2003, Coetzee nos apresenta sua alter ego, Elizabeth Costello, que escreveu um livro onde conta a história de Ulisses do ponto de vista da mulher, isto é, de Molly Bloom. A ligação deste livro fictício com Foe é bastante óbvia. O detalhe é que em Elizabeth Costello a personagem-título se vê perseguida no primeiro capítulo por acadêmicos que tentam extrair dela opiniões acadêmicas e posições políticas que ela, autora, não é capaz de oferecer. A narradora descreve toda a cena na Universidade com uma ironia brutal, especialmente ao falar sobre uma professora feminista que diz ser sua admiradora. Costello ainda faz uma declaração radical, que serve de crítica ao seu próprio passado (e, por consequência, ao de Coetzee e seu Foe): “Não podemos parasitar os clássicos para sempre. Precisamos inventar algumas coisas nossas também”. Já no segundo capítulo, Coetzee apresenta através de Costello uma crítica aos estudos literários focados na identidade nacional, ao mostrar uma Costello que não se sente à vontade ao falar sobre “nós, os africanos”, quando ela escreve sobre assuntos ocidentais (como Joyce) e não trabalha diretamente com estes temas.
Isso não quer dizer, claro, que Coetzee seja um antiacadêmico, muito menos que esteja em uma campanha contra os estudos culturais ou algo assim. O que faz o autor sul-africano tão fascinante de ler é o fato de que ele apresenta uma crítica “de dentro”. Assim como Wallace, é fascinado por muitos aspectos da teoria acadêmica, mas se revela crítico a diversas facetas deste universo. E, como em todos os textos de Coetzee, não há uma mensagem clara ou uma resposta, apenas ambivalência, dúvida e muitas, muitas perguntas.