São muitos os ingredientes e os trabalhos que entram na fabricação de um livro. Todos – todos mesmo, acreditem – são cruciais para o bom resultado final, ainda que muitos não estejam destinados às luzes da ribalta: alguns dos estágios da lida editorial são discretos por natureza (basta pensar na ficha catalográfica ou no colofão); outros, se bem feitos, devem até ser invisíveis: se o leitor nem notar o trabalho do revisor, ótimo, sinal de revisão bem feita!
Mas a capa, bem, essa nasceu para aparecer – e de fato aparece e rouba a cena nas livrarias, talvez até com alguma dose de injustiça em relação a seus companheiros de ofício. Seja como for, pensar a capa é um momento especialmente delicado na confecção de um livro. Aqui vai o nosso exemplo da vez.
No último dia 27 de novembro, o IMS abriu uma linda exposição em sua sede carioca: “Fotopoesia”, primeira retrospectiva no Brasil do mexicano Manuel Álvarez Bravo, certamente um dos maiores fotógrafos do século XX. A exposição fica em cartaz no Rio de Janeiro até 26 de fevereiro, quando segue para o IMS de São Paulo.
Quebrando de leve a tradição da casa, que sempre editou todos os catálogos das próprias exposições, decidimos desta vez tomar outro caminho: a editora inglesa Thames & Hudson lançou, no final de 2008, a belíssima monografia “Photopoetry”, organizada em parceria com a Associación Manuel Álvarez Bravo, sediada na Cidade do México.
O compêndio era muito bonito, abrangente e bem impresso; percebemos que não era o caso de inventar a roda e logo chegamos a um acordo com a Thames (com a qual, diga-se de passagem, já estávamos trabalhando rumo à edição anglo-americana da monografia “Brasília”, de Marcel Gautherot, que lá ganhou o título de “Building Brasília”).
Com 374 imagens, a monografia não só cobria o conteúdo da nossa exposição como ainda trazia o bônus de algumas tantas imagens que não poderíamos, por uma razão ou por outra, mostrar aos nossos visitantes.
É aí que começa a história da capa. A edição em língua inglesa decidira-se por uma imagem de 1933, “O eclipse”, em que uma mulher vista em perfil, de baixo para cima, protege e volta os olhos para observar alguma coisa ao longe, fora do campo visual do leitor, enquanto seu corpo se confunde com os lençóis brancos que ela estende sobre um varal.
Ótima escolha, tanto pela beleza da imagem como porque põe em evidência, de primeira, o próprio ato de ver, o esforço por ver o que se esconde e só a custo se revela – tema central da obra de Álvarez Bravo.
Ora, o acerto dos nossos colegas ingleses propunha um bom problema para nós: como criar uma nova capa, que ajudasse a distinguir a edição brasileira e ao mesmo tempo evidenciasse as mesmas questões? E como fazê-lo sem fazer uma escolha ditada apenas pelo gosto ou pelo capricho?
Na companhia dos designers Claudia Warrak e Raul Loureiro, começamos a fazer ensaios com diversas imagens do livro em que a visão, o ato de ver ocupava o centro da fotografia. Ao mesmo tempo, começamos a consultar os muitos catálogos, livros e publicações avulsas que saíram em vida de Álvarez Bravo, na esperança de que as duas linhas – a da força visual para o leitor de agora e a da relevância histórica na carreira do fotógrafo – alguma hora se cruzassem.
No começo, nada feito. Os bons estudos de capa iam para um lado, as publicações históricas iam para outro – e assim foi por umas boas semanas, até que a conjunção se produziu. Vínhamos trabalhando, entre outras, com uma foto de 1931, “Menina vendo passarinhos”: um retrato frontal, novamente com ângulo ascendente, de uma garotinha de traços indígenas que faz sombra com o braço esquerdo para olhar alguma coisa ao longe – ao longe e atrás do fotógrafo e portanto, metaforicamente, deste lado da capa, do lado do leitor. O mesmo cruzamento visual de temas que se via na foto de 1933 – com algum ganho dramático até.
Mas a sensação de “eureca” só se produziu quando, no curso das nossas buscas, demos com duas publicações centrais na carreira de Álvarez Bravo. Primeiro, topamos com o breve catálogo da mostra “Mexique”, inaugurada em Paris, em 1939, com curadoria de ninguém menos que André Breton, cabeça de proa do Surrealismo, sempre alerta para as possibilidades renovadoras das artes extra-européias e com particular interesse no México, onde travara relações com o nosso fotógrafo; na capa do catálogo (pouco mais que um folhetinho), a nossa menina olhando passarinhos e interpelando tacitamente os seus leitores naquele último ano antes da guerra!
Depois, o correio nos trouxe um exemplar do catálogo da mostra “Twenty Centuries of Mexican Art”, uma grande exposição que o MoMA de Nova York abriu já em plena guerra, em 1942. A exposição foi um marco nas relações entre os dois países e na difusão do legado cultural mexicano, e não pecava por falta de ambição: começava com esculturas monumentais pré-colombianas e ia até o momento pós-revolucionário.
Entre as obras mais recentes, uma fotografia de Álvarez Bravo, reproduzida na última página do catálogo: justamente a nossa “Menina vendo passarinhos”, de 1931. Pronto, estava decidido – se é que, a essa altura, ainda havia espaço ou necessidade de decisão – e a capa ficou assim, como se vê abaixo, com um toque final de laranja solar no título.