Causos em meio ao caos

Miscelânea

21.10.13
"Mina R" e o autor, Roberto de Mello e Souza

Mina R e o autor, Roberto de Mello e Souza (1921-2007)

A força centrípeta da linguagem ordena mesmo o caos. Os relatos históricos explicam o que é essencialmente inexplicável, dispondo-o em confortáveis causas e efeitos. Os livros de memórias e de ficção também organizam o que é intrinsecamente desorganizado, instaurando sentido onde sentido não há. No caso da guerra, mãe de todos os caos, esse paradoxo se faz sentir de modo ainda mais forte. Apenas pequena parte da ficção produzida sobre o assunto consegue amenizar tal força, refletindo no próprio coração das palavras o desamparo da soldadesca. Mina R, de Roberto de Mello e Souza (Ouro sobre Azul, 236 páginas, R$ 44), é um desses raros livros.

Trata-se da terceira edição do romance do carioca amineirado falecido em 2007, aos 85 anos. A primeira foi lançada em 1973 pela Duas Cidades; a segunda em 1995, pela Record. O presente volume em capa dura torna a história do cabo Lourenço – alter ego ora narrador em primeira pessoa, ora personagem em terceira pessoa de um narrador onisciente – ainda mais caótica ao suprimir os espaços entre parágrafos ou blocos de parágrafos que marcavam a edição anterior. Agora, mais do que antes, as histórias se atropelam, uma cortando abruptamente para a outra, fazendo pensar em Waly Salomão: “A memória é uma ilha de edição.” No centro das narrativas está a tal da mina R, tão perigosa que os superiores do cabo Lourenço proíbem as tentativas de desarme. Certa madrugada, porém, ele decide se atracar com uma. Cria-se um eixo de tensão.

Até mesmo quando a história se afasta do campo de batalha – a Linha Gótica, a oeste da ferrovia Florença-Bolonha, onde a Força Expedicionária brasileira lutou na Segunda Guerra Mundial – para os pequenos prazeres da retaguarda, logo dá um jeito de voltar à mina R. Numa determinada página, parece que o artefato alemão explodiu. O narrador nos conta que o cabo Lourenço “passou a mão por aquele trecho de barriga da mina e aí gritou alto, apavorado, porque o seu braço estava começando a explodir a mão se desligando do pulso os ossos se abrindo para fora aos pedaços os dedos fugindo para longe da palma as veias e os nervos espirrando moles os músculos se alastrando dilacerados como uma grande flor de carne tudo se desintegrando junto com a schu que arrebentava, o vizinho de cama chamou e Lourenço ficou sentado no escuro (…) reconheceu o pavilhão de otorrino onde estava baixado com uma dor de garganta muito sem graça.” A cena do pesadelo ilustra à perfeição a linguagem de Mello e Souza em Mina R, a destruição das vírgulas acelerando a ação, uma ação se fundido noutra.

Não é apenas nas cenas de ação, ou no sonho ruim com ela, que a linguagem cria novas regras para uma nova situação, tão distante dos entes queridos no Brasil. Mello e Souza serviu na FEB exatamente como Lourenço: cabo líder de esquadrão antiminas terrestres. Era irmão do crítico literário Antonio Candido (hoje com 95 anos) e seus livros são mais comuns nas estantes de Recursos Humanos, do qual foi um dos pioneiros no país. Também nas cenas de repouso o autor cria cenas sôfregas, como se os personagens vivessem rápido demais. É assim no lindo encontro com a italiana Milena, “loura de louro-ouro-velho”, os olhos castanhos muito, muito claros. É assim em Nápoles, transformada num imenso bordel para a tropa multinacional que por lá desembarcava.

Como a presença da FEB em combate na Península Italiana durou de meados de setembro de 1944 (perto de Lucca) até o começo de maio de 1945 (quando chegou a Turim), isso significa que os soldados brasileiros tiveram de combater os “tedescos” e o frio. O inverno de 1944-1945 foi um dos mais rigorosos da História. Tropas mais bem-equipadas e mais acostumadas com a estação, como os americanos sitiados por um contra-ataque alemão em Bastogne, na Bélgica, passaram maus bocados. Natural, então, que a narrativa de Mina R esteja salpicada pelo algodão da neve, registrando tanto as agruras quanto o deslumbramento da “praçaria” brasileira com ela. Certa noite, enquanto aguardam para emboscar uma patrulha alemã, Lourenço e três companheiros têm de superar as dores causadas pelo frio extremo, ainda maiores ao ar livre e em inatividade forçada. Na maior parte do tempo, contudo, estão mesmo é às voltas com minas terrestres de todos os tipos e graus de periculosidade, que descrevem como se descrevessem suas conquistas amorosas. Daí o desafio oferecido pela mina R.

A bibliografia brasileira sobre a atuação da FEB – formada por 27.500 homens e mulheres que compunham uma das divisões do 5º Exército americano, comandado pelo general Mark Clark – é escassa e esparsa. Seus representantes mais conhecidos são os cronistas Joel Silveira e Rubem Braga, ambos correspondentes de guerra. Difícil entender por que o Brasil age como se se envergonhasse de ter lutado, e do lado certo. (Efeito colateral do embaraço com a ditadura militar que se instauraria no país quase vinte anos depois?) A FEB comportou-se com bravura, sendo a tomada de Monte Castelo o seu feito mais glorioso. No caso da ficção autobiográfica, há apenas dois relatos que “sobreviveram” até a segunda década do século XXI: Mina R e Guerra em surdina, de Boris Schnaiderman, cuja orelha para a edição da Record foi transformada no primeiro dos cinco pequenos apêndices do presente volume.

O protagonista de Schnaiderman, sargento João Afonso, difere do cabo Lourenço sobretudo pela narrativa cartesiana do professor e tradutor ucraniano naturalizado brasileiro, outro veterano de guerra, como sargento de artilharia. O herói de Mello e Souza é menos racional e mais emocional. Suas histórias se sucedem em Mina R como se estivéssemos ouvindo um mineiro – sem trocadilho – cantando seus causos, mais ou menos saborosos, mais ou menos melancólicos, quase sempre os dois ao mesmo tempo, numa reunião de família no imediato pós-guerra, os fatos se agrupando e se separando, sem ordem cronológica, de acordo com os caprichos da memória.

MAIS

Mina R na Rádio Batuta – no programa Prefácio, Rodrigo Lacerda comenta o livro de Roberto de Mello e Souza.

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