De escritores, livros e viagens

Correspondência

25.07.11

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Puxa, que mancada, Zé, eu ter me esquecido de que você havia mencionado Jung a propósito da filha de Joyce. Peço mil desculpas. Adorei a sua história de Piglia e até senti inveja de seu contato com ele, que admiro tanto. Quanto à bagunça do escritório dele, senti-me absolvido da bagunça no meu. Acho Buenos Aires uma cidade fantástica, um pedaço da Europa encravado na América do Sul.

Dos escritores portenhos, conheço pessoalmente César Aira, que me deu a honra de traduzir meu Um crime delicado para o castelhano. O livro foi publicado pela editora Beatriz Viterbo, uma homenagem à amada do narrador de O Aleph, que você deve conhecer muito bem. Uma das tantas coisas interessantes, para o dizer o mínimo, em O Aleph, é que pode ser lido também como uma história de amor, este conto que toca o infinito.

Já de Aira pode-se dizer que é um tanto excêntrico e na Argentina é tido como uma pessoa difícil, que não dá entrevistas aos jornais locais. Mas, por alguma razão, gosta do Brasil e dos brasileiros e, quando estive em BA para uma feira do livro, convidou-me para almoçar e tudo. Foi uma tarde prazerosa. Entre os seus livros, gosto particularmente do incrível, desde o título, Como me hice monja. Aos jornais brasileiros Aira não nega entrevistas e é grande admirador de Dalton Trevisan.

Adorei, Zé, suas histórias de computadores que falham. Mas, continuando com os livros, atualmente estou me perdendo em Sangue errante, de James Ellroy, que acaba por ser prolixo e nos confunde com tantos personagens que vão e vêm. É interessante notar como ele pega pesado com altas figuras como Richard Nixon, John e Robert Kennedy. Isso para não falar em Fidel Castro, em anticastristas e castristas sobre os quais Ellroy distribui bordoadas a torto e a direito. Vão dizer que é paródia, mas acho Sangue errante também um livro racista. Como é um tijolaço, comecei a ler também Guerra aérea e literatura, de W. G. Sebald, um livro de ensaios sobre a tragédia dos civis alemães durante a guerra, portanto a história da perspectiva dos vencidos, um livro raro e que nos faz pensar no horror dos bombardeios maciços sobre as cidades alemães. Às vezes leio mais de um livro ao mesmo tempo, do mesmo modo que rascunho simultaneamente mais de um conto.

Estou com 69 anos, Zé Geraldo, e, em 1953, meu pai estudou na Inglaterra levando toda a família. Em Londres ainda havia muitos vestígios da guerra, às vezes um quarteirão inteiro arrasado, a comida era racionada, mas adorei a cidade com sua inacreditável neblina, o fog. Mas nenhuma devastação podia se comparar à da Alemanha, onde estivemos, visitando Colônia e Munique, como seu povo soturno por causa dos traumas e dificuldades, gente morando em escombros em pleno inverno, embora já houvesse tido início a ajuda do Plano Marshall.

Meu pai gostava de conhecer tudo e, entre as viagens que fiz na vida, a que mais me ensinou foi esta de 53/54. Tenho uma memória nítida de todos os lugares e sinto saudades de meu pai nos levando a Stratford, para ver e conhecer de perto o passado elisabetano e Shakespeare. Meu pai era um cara que esquadrinhava Londres. Um dia nos levou a um cemitério para nos mostrar o túmulo de Karl Marx e nos explicou quem era o homem e o que era o marxismo, naquela época dominando uma parte imensa da Europa.

Chegamos a estudar, eu e meu irmão, num colégio – católico, minha mãe fazia questão -, durante um ano letivo. A disciplina era rígida e quem aprontava alguma era punido com palmatória. Para nós, brasileiros, isso era inacreditável. Nossa forra era no futebol, duas vezes por semana, nos meses mais frios, e nossos colegas eram pernas de pau.

Um assunto puxa outro e volto ao nome Fidel para contar que já estive em Cuba, como jurado do Prêmio Casa das Américas. Você já esteve lá, José Geraldo? É impressionante como os cubanos se viram na precariedade, e há um charme inquestionável da Ilha.

Quando terminamos de julgar o concurso, fomos recebidos por Fidel no palácio. Uma loucura, porque estava trabalhando até tarde, e quando nos recebeu era mais de onze horas da noite e havia um bufê fartíssimo de comidas e bebidas. Ele próprio não comeu nem bebeu nada, mas, de pé, conversou conosco umas duas horas. É um homem que procura cativar e tratava cada um de nós como uma pessoa importantíssima e falou sobre todos os assuntos e, por duas vezes, tocou em meu ombro. Um político.

Eu tinha aqui na sala uma foto cumprimentando Fidel, afinal não é todo dia que você conhece alguém que é parte da história e tem o carisma de Castro. Mas duvido que você espere o que direi. Em toda a gestualidade e empostação de Fidel, eu vi um quê de mussolinesco. E, aos poucos, diante de certas atitudes mais ditatoriais dele fui pensando que não queria mais expô-lo comigo. E tirei a foto da minha sala, embora não a tenha jogado fora.

Lembro-me da sua carta em que você menciona os livros que um dia levaria para a prisão. Também tenho um passado esquerdista e cheguei a ser processado pela ditatura, num inquérito policial militar que nunca teve um desfecho, tal a quantidade de réus. Eu trabalhava na Petrobras e fui demitido e depois anistiado, mas não recebi aquela tal grana muito questionada. Mas as ilusões se foram como as de quase todo mundo e não troco a democracia plena por nada, apesar da repulsa que me causam, e a tanta gente, os corruptos e demagogos políticos brasileiros. Mas me desculpe se manifesto opiniões políticas nesta carta, ela foi saindo deste modo, mas fico curioso de saber o que você pensa dessas coisas.

E não vou economizar um elogio. Você é um homem, José Geraldo, com um notável conhecimento de literatura, cinema, futebol, história, e fala dessas coisas com invejável naturalidade, sem faltar o senso de humor. Tem sido para mim um prazer esta nossa correspondência.

Um grande abraço. Sérgio.

* Na imagem da home que ilustra este post: o escritor argentino César Aira

 

 

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