Um processo kafkiano está em curso na França, depois de o escritor Édouard Louis (foto) ter sido intimado por “atentar contra a vida privada e a presunção de inocência” do homem que o agrediu e o estuprou, sob a mira de um revólver, há três anos. Em seu segundo romance, História da Violência (ed. Seuil), publicado em janeiro com ampla repercussão de público e de crítica, o escritor de 23 anos narra seu encontro casual, na noite de Natal de 2012, com um homem de origem argelina, de cerca de 30 anos, que se apresenta como “Reda”. Os dois vão ao apartamento do escritor, onde “Reda” o estrangula (por pouco não o mata) e o estupra, antes de desaparecer.
O agressor só foi identificado no início deste ano (três anos depois de o escritor ter prestado queixa e pouco depois da publicação do romance), graças ao cruzamento entre seu DNA, obtido nesse meio-tempo, por ocasião de um roubo, e o DNA colhido nos traços que havia deixado no apartamento da vítima, em 2012. Os advogados, entretanto, insistem que seu cliente foi identificado por causa do livro, por ter sido nomeado e descrito no romance, o que bastaria, segundo eles, para configurar atentado a sua vida privada e à presunção de sua inocência. A ironia é que, além da descrição sumária que Édouard Louis faz de seu agressor, a principal informação que o romance dá sobre sua identidade é o nome (“Reda”). Nos autos do processo, os advogados o chamam Riadh B., entre outras cinco identidades que lhe são atribuídas, por estar em situação ilegal e para poder “escapar à polícia”.
“Será possível identificar por um livro alguém que nem os próprios advogados conseguem identificar?”, o advogado de defesa ironizou à corte, há duas semanas, adicionando um pouco de bom humor e de bom senso ao absurdo. O fato é que, se Édouard Louis for condenado, por mais inverossímil e improvável que seja a acusação, “não será mais possível a um escritor nomear seus personagens. Seria impor o silêncio a toda a literatura francesa”, alerta a advogada da editora Seuil. O veredicto será dado no próximo dia 15.
Para além do fait divers e do horror dos fatos, Édouard Louis se serve no livro de um dispositivo romanesco que lhe permite falar da violência e do racismo ao mesmo tempo que lhe garante a parte da ironia e do humor: é sua irmã, proletária do norte da França, com seus preconceitos e sua linguagem oral e vulgar, quem conta a história do estupro ao marido. A língua da irmã às vezes faz lembrar as narrativas de Thomas Bernhard. Condenado a repetir sem parar seu depoimento do trauma (a narrar sua história no hospital, aos amigos, à irmã, aos policiais, em mais de uma delegacia etc.), o autor acaba usando o romance para escapar à armadilha da vitimização.
O que se espera da vítima é que ela conte o que lhe aconteceu, para que se faça justiça, para que o crime nunca mais se repita. “Ela (a irmã) nunca poderá compreender que a minha história é ao mesmo tempo o mais importante para mim e o que me parece mais distante e estranho ao que eu sou; não poderá compreender que aperto essa história contra o peito, temendo que venham roubá-la, ao mesmo tempo que sinto repulsa, a repulsa mais profunda quando alguém se aproxima para sussurrar que a história me pertence; basta me lembrarem disso para eu ter vontade de jogá-la ao pó e sumir.”
O que se espera da vítima é que ela não deixe o passado desaparecer. “Por que é que se impõe aos perdedores ser testemunha da História – como se ser perdedor já não fosse suficiente, por que é que ainda têm de carregar o testemunho da perda, por que ainda precisam repetir a perda até o esgotamento (?) (…) A única questão consiste em conseguir chegar a uma forma de memória que não repita o passado (…), procuro construir uma memória que me permita desfazer o passado, que o amplifique e o destrua num único gesto, uma memória por meio da qual quanto mais eu me lembrar e quanto mais me dissolver nas imagens que me restam, menos serei o centro.” Essa forma de memória é o romance, obra da imaginação. E, por mais que se atenha aos fatos, “História da Violência” é um romance.
No final, o autor cita Hannah Arendt: “Em outras palavras, a negação deliberada da realidade – a capacidade de mentir – e a possibilidade de negar os fatos – a capacidade de agir – estão intimamente ligadas; ambas provêm da mesma fonte: a imaginação. Porque não é natural que sejamos capazes de dizer que ‘o sol brilha’ quando está chovendo, (…) isso indica que, ainda que estejamos aptos a apreender o mundo pelos sentidos e pela razão, não estamos inseridos nele, ligados a ele, como uma parte inseparável do todo. Estamos livres para mudar o mundo e introduzir a novidade nele”.
É a essa liberdade que Édouard Louis atribui sua cura do trauma. É uma bela defesa da ficção e da literatura.