Dias de fogo

Cinema

19.11.12

Diretor (com Haskell Wexler) de Brazil: a report on torture (1971), Saul Landau (1936-2013) foi jornalista, autor de inúmeros livros de reportagem (como o que escreveu com Paul Jacobs, To serve the devil, 1971, ou o que escreveu com John Dinges, Assassination on embassy row, 2013, sobre o assassinato do ex-ministro das relações exteriores do Chile, Orlando Letelier), fotógrafo (The sheriff of Hollywood Hills e Here we are, séries de televisão da década de 1970), produtor e principalmente realizador de documentários.

Seu primeiro filme foi uma ficção filmada no Chile em 1970,¡Que hacer!. Depois, documentários para televisão e cinema – dentre eles Fidel (1971), Conversation with Allende (co-direção com Haskell Wexler, 1971); Robert Wall: Ex-FBI agent (1972), A song of dead warriors (1973), Paul Jacobs and the nuclear gang, codireção com Jack Willis, 1979), Report from Beirut (1982), Target Nicaragua. Inside a covert war (1983), The sixth sun: Mayan uprising in Chiapas (1995), Syria: between Iraq and a hard place (2004), We don’t play golf here, and other stories of globalization (2007) e Will the real terrorist please stand up? (2012).

Talvez seja necessário durante a projeção de Brasil: um relato de tortura, a primeira no Brasil em salas de cinema, uma operação dupla – sem sair do cinema ir até o cinema de há quarenta anos. Ver no filme tal como ele aparece agora também como ele apareceu no tempo em que foi realizado.

As circunstâncias que cercaram as filmagens são conhecidas: em janeiro de 1971, Haskell Wexler e Saul Landau estavam no Chile para entrevistar o presidente Salvador Allende. Com a chegada de presos políticos brasileiros libertados com o sequestro do embaixador Giovanni Bucher, decidiram dedicar-se a um outro projeto, entre o urgente, o jornalístico e o militante, registrar depoimentos dos que haviam acabado de deixar a prisão antes que eles conseguissem efetivamente sair da prisão, ali, enquanto a brutalidade da tortura continuava a torturar. An Interview with President Allende seria retomado adiante e finalizado também em 1971. Mas ali, naquele instante, o trabalho foi interrompido para Landau e Wexler se dedicaram, quase sem um planejamento preliminar, surpreendidos pelo acontecimento, aos presos políticos brasileiros, poucos dias depois da chegada deles a Santiago.

As circunstâncias cinematográficas propriamente ditas talvez sejam menos conhecidas. Brasil: um relato de tortura se insere no quadro de um cinema militante, herança direta do maio de 68, de certo modo nada muito diferente dos hoje incontáveis registros feitos em câmeras de celulares, modo indignado e urgente de denunciar e reagir ao estado de coisas. Parte do cinema militante resultava de partidos ou sindicatos, parte de uma vontade como a que gerou na Itália a série de Cinejornais livres (Cinegornali liberi) coordenada por Cesare Zavattini no final da década de 1960 e a grande onda de cinema político (não apenas mas principalmente) na Europa ao longo década seguinte.

Em dezembro de 1970, bem no período do sequestro do embaixador suíço Giovanni Enrico Bucher (ele foi sequestrado em 7 de dezembro e liberado em 16 de janeiro de 1971), foi lançado no Rio o primeiro filme de ficção dirigido por Haskell Wexler Dias de fogo (Medium Cool, 1969). Ele era então conhecido do espectador brasileiro especialmente pela fotografia de América América (de Elia Kazan, 1963) e de Quem tem medo de Virginia Woolf? (Mike Nichols, 1963) – e ainda por ter fotografado uma produção norte-americana ambientada no Brasil, O pescador e sua alma (The Fisherman and His Soul, de Charles Guggenheim, 1961). Em janeiro de 1971, no Chile com os presos políticos brasileiros recém-chegados (as filmagens começaram no dia 20 de janeiro), Wexler trazia na memória muito provavelmente a lembrança do filme realizado pouco antes (Interview with My Lay Veterans, codireção de Joseph Strick, Oscar de documentário 1970) e a questão que discute em Medium Cool, a responsabilidade do fotógrafo frente à realidade que fotografa.

Imaginemos, Brasil: um relato de tortura pode ter partido de um impulso semelhante ao que leva o protagonista de Medium Cool, fotógrafo de um noticiário de televisão, a dizer que é “impossível esconder-se na técnica, o engajamento é inevitável” e a se perguntar “até quando as pessoas continuarão a se afastar de suas responsabilidades perante outras pessoas em nome do perfeito desempenho de uma função técnica qualquer?” Os sinais desta vontade se encontram (visíveis num segundo plano) num certo jeito de que filma quase assim como se não soubesse filmar o que está diante da câmera e como quem fala como se não soubesse falar. Como filmar o impossível? Como dizer o indizível? Como explicar que a luz, o quadro e o foco, certos aqui parecem um desacerto adiante, como evitar que o relato indignado e denso aqui seja cortado por um riso inesperado adiante? Como, a não ser pelo fato de que a responsabilidade perante as pessoas se sobrepõe, aqui, à boa execução técnica? Como, a não ser pelo fato de que o cinema, aqui, se fazia como expressão urgente e inacabada. Discurso ainda não de todo articulada, o cinema militante é pouco mais que uma ideia que vai sendo pensada em voz alta em busca da ordem em que poderá finalmente se expressar. E assim como o cinema de um modo geral aprendeu muito com o filme militante, sem repetir as soluções propostas por ele mas inventando novas formas a partir das propostas deles, talvez seja possível compreender melhor o que vivemos agora por meio de uma operação dupla que cole sobre o presente, como numa fusão, a imagem do passado recente.

Bem entendido, em primeiro plano, o que se impõe mesmo é o que se relata. Ou, talvez, o que se impõe hoje em especial é ver, por exemplo, os relatos de Frei Tito e de Maria Auxiliadora com o conhecimento de suas mortes trágicas poucos anos depois. Mas empreender esta operação dupla, ver na imagem de hoje, nessa imagem que nos chega quase como um relato retrospectivo,  aquela do momento em que se projetou pela primeira vez, longe de nós, como denúncia, como indignação, como revolta diante da tortura, revela que, numa outra dimensão, continuamos a enfrentar uma semelhante dificuldade de relatar ou enfrentar o relato da brutalidade da tortura.

José Carlos Avellar é coordenador de cinema do Instituto Moreira Salles

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