Do rancho-escola ao ‘Professor’ Paulo

Séries

07.01.13

Escolas e samba: Crônica de um divórcio anunciado

Parte 1: Do rancho-escola ao “Professor” Paulo

Certamente, a mais antiga referência a um dos elementos que viriam a constituir o que mais tarde se chamou “escola de samba” está no romance Memórias de um sargento de milícias, em que é destacada, numa procissão católica, a presença de um “rancho das Baianas”, integrado por “negras vestidas à moda da província da Bahia” que “dançavam no intervalo do Deo gratias, uma dança lá a seu capricho”.

Baiana desfila nos anos 1960: ecos das origens (Marcel Gautherot/Acervo IMS)

O autor do romance é Manuel Antonio de Almeida, carioca da Gamboa, cuja vida transcorreu entre 1831 e 61; já fora, portanto, do “tempo do rei” em que situa sua narrativa.  Entretanto, embora a historiadora Mary Karasch, no livro A vida dos escravos no Rio de Janeiro, reproduza, nas paginas 326-27 da edição de 2000, a descrição de um grande batuque de africanos bantos no Campo de Santana em 1808, preferimos a referência de Macedo.

Observemos a menção a um “rancho” de baianas feita no Sargento de milícias. Analisando-a, vamos ver que o termo, nessa acepção (da qual derivaram as outras: abrigo, alimentação), segundo os dicionários, designa qualquer “grupo de pessoas, andando”.  Da mesma forma, “cordão” é um grupo de pessoas movendo-se em linha; e “bloco”, um grupo compacto.

Os “ranchos (no sentido estrito) carnavalescos” surgem, no carnaval carioca, ainda no século XIX. E chegam para se contrapor aos “horríveis, bárbaros e tidos cordões”, assim qualificados pela imprensa da época, segundo Maria Clementina Pereira da Cunha, no livro Ecos da folia (Companhia das Letras, 2001).  Os cordões eram, de um modo geral, resíduos dos cucumbis, manifestação de rua marcadamente africana; enquanto os ranchos carnavalescos ansiavam por mostrar-se como ópera ambulante.

O mais famoso dentre os ranchos cariocas foi o Ameno Resedá. Fundado em 1907, ele desde logo deixou claros seus objetivos; e, assim, divulgou-se como o “rancho-escola”. Com todo o respeito pela versão difundida pelo saudoso compositor Ismael Silva, para nós, do “rancho-escola” foi que nasceu a denominação “escola de samba”.

O nome “resedá” designa um grupo de ervas no qual se destaca principalmente a chamada “resedá-de-cheiro” de flores amarelas e suave aroma, usadas em perfumaria e notáveis também pelo uso terapêutico, como calmante.   E nada mais apropriado para um rancho que não exalava catinga (“transpiração fétida, bodum dos negros”, cf. Macedo Soares, Dicionário brasileiro da língua portuguesa, Rio, 1954) e que pontificou como uma escola de socialização e convivência, em relação ao vezo anárquico dos cordões. E isto, embora seus integrantes, aí compreendido o núcleo familiar da legendária Tia Ciata, também participassem de blocos de sujo, quase cordões, como o Macaco é o Outro.

Foi assim, então, que o Ameno, tendo como sua referência os desfiles das sociedades carnavalescas da burguesia – mas como fundadores e impulsionadores pessoas majoritariamente negras – acabou por fornecer o mo­de­lo no ­qual se ins­pi­ra­ram as pri­meiras agremiações do sam­ba.  Modelo esse que incluía também uma programação extra-carnavalesca: piqueniques, recepções sociais (como a oferecida ao escritor Coelho Neto e sua família, em 1919), visitas de cortesia, aulas e canto coral etc.

Legatária do rancho-escola, a escola de samba, como já dissemos em outras oportunidades, nasceu principalmente para legitimar a arte musical cultivada pelas comunidades negras de seu tempo, nela ganhando proeminência o recém-nascido samba urbano carioca.

Essa legitimação passava, então, obrigatoriamente, pelo carnaval, o qual, para o povo negro, tinha como epicentro a Praça Onze de Junho (assim chamada desde 1875, mas popularizada como “Praça Onze”), cujo papel social pode ser comparado a outros núcleos de “cidades negras” das Américas, locais tanto de celebração quanto de confronto, como, por exemplo, a Congo Square, na norte-americana Nova Orleans.

Nascidas, então, dentro de um propósito de recreação e sociabilidade, já na década de 1930 as escolas de samba foram incentivadas a competir entre si. Assim, desceram dos mor­ros pró­xi­mos ao Cen­tro (Favela, Estácio, Salgueiro, Mangueira) ou vieram, de trem, dos su­búr­bios (Oswaldo Cruz, Irajá, Ramos) pa­ra o carnaval da Praça Onze. Em 1935 acon­te­cia o pri­mei­ro des­fi­le “ofi­cial”, in­cen­ti­va­do e orientado pelo governo da República. A partir daí, instituíram-se os “enredos”, baseados em te­mas de exal­ta­ção aos he­róis con­sa­gra­dos pe­la clas­se di­ri­gen­te e de mo­ti­va­ção do ufa­nis­mo na­cio­nal.

Nesse momento, o processo de industrialização e comercialização do samba, em discos e outros suportes, já estava em curso, desde os anos 1910.  E sua difusão através dos meios de comunicação, a partir da década seguinte, fez com que o gênero fosse se transformando e diversificando.

O registro autoral do Pelo Telefone impulsionou a popularização dos sambas de tipo maxixe de compositores como Sinhô e Caninha, entre outros, na década seguinte. Então, nascem, no período de 1928 a 1931, os “sambas do Estácio”, gênese do samba urbano, conjunto em que se pode incluir parte da obra de Noel Rosa.

Entretanto, na área especifica das escolas de samba, um nome maior se destaca: Paulo da Portela.

Paulo da Portela, o líder maior das escolas (Acervo Tinhorão)

Nascido de uma modesta família da Saúde, centro do Rio, em 1901, Paulo Benjamim de Oliveira foi uma das maiores personalidades do mundo do samba em todos os tempos. Como compositor e dirigente, destacou-se um dos grandes defensores e propagadores da cultura do povo negro. Movimentando-se entre as fronteiras que separavam as classes mais favorecidas da sua e, assim, levando políticos, artistas e intelectuais burgueses até o mundo do samba e conduzindo as escolas até as proximidades do poder, foi um dos maiores alavancadores do processo de aceitação do samba pela cultura dominante.

Em 45, “Seu Paulo” ou “o Professor” – como era reverentemente tratado – engajou-se na política, participando de comícios do Partido Comunista e candidatando-se a vereador pelo Partido Trabalhista Nacional, com apoio do jornal Diário Trabalhista e de entidades carnavalescas, sendo entretanto derrotado.  Não obstante, continua a tocar sua vida artística, até que morre subitamente, às vésperas do carnaval, no domingo 30 de janeiro de 1949, na vila em Osvaldo Cruz onde morava com D. Elisa, sua mulher.

Os jornais não noticiaram logo o falecimento. Mas, boca a boca a notícia andou pelos subúrbios, pela zona norte, pela zona rural, pela Baixada, pela Central e chegou até a Praia do Pinto, no Leblon.  Onde houvesse reduto de samba, a tristeza era uma só: “Morreu Paulo da Portela!”.  E, na hora do enterro, na tarde do dia 31, todos queriam levar seu adeus ao grande líder.  O féretro saiu de Osvaldo Cruz, parou na sede da estrada do Portela, chegou a Madureira e tomou o rumo do cemitério de Irajá. Nesse trajeto, que durou cerca de cinco horas, foi acompanhado por gente de carro, de caminhão, de lotação, de caminhão, somando perto de 10 mil pessoas. Mas a maioria ia mesmo a pé.

“O comércio, lojas e bares fecharam suas portas em sinal de doloroso pesar; as famílias acorriam aos portões, atapetavam-se as sacadas, as colchas mais bonitas vieram às janelas (…), pessoas trepavam nos muros, penduravam-se nas árvores para o último adeus ao sambista (…). Setenta e tantas escolas com seus pavilhões enlutados, com suas pastoras e seus menestréis, faziam a guarda de honra ao maioral que partia; as cuícas gemiam tristes, os surdos marcavam dolorosamente a caminhada fúnebre”, noticiava o jornal O Radical, em sua edição de 1º de fevereiro.

Paulo da Portela, falecido aos 48 anos de idade e com uma trajetória artística de apenas duas décadas, deixou obra musical pequena e pouco expressiva.

O “Professor” morreu pobre; num momento em que grandes sambistas como Cartola, Ismael, Bide, Marçal etc. “viravam-se” como podiam. Entretanto, a comoção popular causada por seu falecimento foi o maior tributo até hoje prestado a um artista e líder; que lutou pela dignidade do samba e do sambista e pelo respeito que merecem. Dignidade, no seu dia a dia, destacando-se no amplo e colorido leque da cultura brasileira, e não apenas na escola de samba e no carnaval.  Dignificado pela cidadania, conquistada graças aos laços de solidariedade comunitária que uniam seu povo.

* Clique aqui para ler a segunda parte da série Escolas e samba: Crônica de um divórcio anunciado.

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