Quem duvidar de que nos rodeia o enigma ou de que somos nós mesmos o enigma, uma vez que feitos de corpo, tempo e desejo, basta olhar para este quadro de Ismael Nery.
Artífice contumaz de figuras repetidas que se identificam, superpõem e confundem no perpetuum mobile do jogo amoroso no qual se fundem e dissolvem os indivíduos em algo maior que os próprios amantes, Ismael é o mais misterioso de nossos pintores. Quis ou podia ter sido muitos: o pintor nele se casava ao filósofo, ao arquiteto, ao bailarino, ao militante, ao poeta. E de fato pintava com partes de todos eles, exprimindo em suas telas sua extraordinária e complexa personalidade, numa atmosfera visionária de recorrências assinaladas pela mística do encontro e da iluminação. O surrealismo e Chagall, assim como os recortes geométricos do cubismo, o sopro poético do expressionismo ou os espaços à maneira de Chirico e da pintura metafísica, não bastam para explicar o notável legado de sua curta existência. Morreu de tuberculose pulmonar, sem completar os 34 anos, em 6 de abril de 1934 (a noite espantosa de seu velório, quando se deu a conversão de Murilo Mendes ao catolicismo, foi admiravelmente descrita por Pedro Nava em suas Memórias ). Mas a obra que restou dessa vida intensa e luminosa, quebrada tão cedo, continua um aberto desafio.
Tão diverso da pintura modernista com as marcas do nacionalismo dos anos de 1920 e 30, elaborou, na verdade, uma síntese pictórica singular, com sua mistura convulsiva de catolicismo, erotismo e reforma social, e sua obsessão pelo corpo, dissecado até as entranhas e transfigurado em ideia e sonho. Seu sentido da transcendência parece brotar natural e sensualmente de formas concretas de nosso mundo, tocado, no entanto, pelo insólito, no limiar de estranha revelação. Para Ismael, o estranhamento do artista parecia análogo ao do cristão que se sente um estranho no mundo e podia funcionar, da mesma forma que o amor e o sonho, como abalos da individualidade, à maneira de uma embriaguez propícia à revelação. Assemelha-se, portanto, em parte, às iluminações profanas dos surrealistas, projetando-se, porém, como uma inspiração de base materialista e antropológica às maiores abstrações e à mais alta esfera espiritual. Suas figuras deslizantes, a labilidade dos sexos, seu erotismo de base são talvez menos índices de um gozo sensível, que rastilhos de uma iluminação transcendente, sem esmaecer seu poder de assombro e seu chão histórico. Assim neste quadro à vista, mais uma vez nos desconcerta, pondo-nos a olho desarmado diante de sua secreta e insinuante poesia, que nasce do encontro de imagens concretas do mundo, mas que parecem transidas por um fulgurante mistério.
Duas mulheres nos contemplam, tendo ao fundo e mais alto, à direita, em formas curvas e generosas, a imagem horizontal do nu, natural e sem qualquer pudor, mulher com o sexo exposto, recostada na mancha rubra que é própria sensualidade encarnada na arte, em destaque no quadro sobre a parede escura da casa, multiplicada, por sua vez, à esquerda, nessa arquitetura vertical de nosso desejo que é a cidade, em cores vivas, projetada contra o céu negro.
São duas figuras geométricas, severas e hirtas em contraste com o repousado abandono do corpo nu do quadro detrás. Mas contrastam também em seu interior pela oposição de luz e sombra, contrapondo-se ainda entre si, pela altura, pelas cores, pela idade, pelos gestos, como duas gerações de mulheres em parceria e sucessão, como mãe e filha ou quem sabe duas amantes, que a mão acolhedora da figura mais alta e escura parece indiciar, ao envolver num abraço a moça aloirada do primeiro plano, deixando-lhe apenas um seio esférico à mostra. Essa figura superior, com cabelos curtos à la garçonne , de ar dúbio entre o feminino e o masculino, partida pela sombra, é a única que tem os olhos visíveis – as pupilas negras contra o fundo claro se opõem às órbitas pretas e vazias da mais jovem. Parece possuir um conhecimento que o livro ou o quadro negro que sustenta com a mão direita corrobora. Talvez esteja prestes a nos comunicar o que resguarda em silêncio ou a nos interrogar com o saber que esconde na impassibilidade hierática de estranha vidente.
Os olhos de verruma que um dia Murilo Mendes atribuiu ao estado permanente de pesquisa de seu grande amigo Ismael continuam nos mirando de dentro dessa mulher, vertiginosa e terrível como a esfinge. Mas, ao contrário daquele monstro grego, somos nós que mergulhamos perplexos no abismo, ao tentar entender o que dizem os seus olhos.