Narrativas depois do fim do mundo

Literatura

23.04.14

Cena do filme The Road, baseado no livro homônimo de Cormac McCarthy

Por que tantos filmes de apocalipse, tantos seriados e jogos sobre epidemias zumbi, tantos livros retratando o fim do mundo? O que será que arte está tentando formular com a repetição desse reset mundial? No livro “The Already Dead”, Eric Cazdyn tenta amarrar essas obsessões por dar cabo das coisas em um tratado de teoria da cultura que usa conceitos do materialismo cultural para explicar o momento atual. Sua ideia principal é de que em um mundo tido como unitário, em que as pessoas não enxergam possibilidades reais de mudanças radicais em seu modo de vida, os artistas e intelectuais carecem de um lugar externo de onde possam fazer a crítica desse mundo. Para Cazdyn, esse universo unitário teria se concretizado sobretudo após a queda do muro de Berlim, quando o capitalismo e a globalização, que é a intensificação de seu modo de vida, passaram a ser vistos como inevitáveis, como o fim da história, e não como um modelo finito, fruto de condições históricas específicas e com tendência ao desgaste e encerramento.

Como fazer a crítica desse mundo se os próprios artistas e críticos estão tomados por ele e não enxergam possibilidades fora do capitalismo? Seria preciso forjar um lugar externo a esse mundo unitário. Em sua “Palestra sobre crítica e sociedade”, Adorno explica como a lírica representava um recuo do sujeito para sua interioridade como forma de se contrapor à realidade mercantilizada do início do capitalismo. Se naquele contexto a interioridade do sujeito e sua subjetividade representavam um “fora” de onde seria possível emitir uma crítica à sociedade, para Cazdyn esse “fora” hoje é representado pela condição da “doença”. A interioridade do sujeito não mais seria um local de resistência à realidade comodificada, pois estaríamos em uma fase do capitalismo em que as estruturas de poder já foram internalizadas pelo sujeito. Isto é: o poder é exercido hoje dentro de cada indivíduo, não apenas como uma instância externa que o oprime ou, como disse Cazdyn, os seres humanos já não são objetos do poder político e sim seus sujeitos.

Nessa visão, livros que se passam em cenários apocalípticos como “The Road”, de Cormac McCarthy, e “World War Z”, de Max Brooks — ambos transformados em filmes de Hollywood —, seriam uma tentativa de elaboração dessa crítica em um contexto em que “é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo”, como disse Slavoj Žižek referindo-se à crescente oferta de produtos culturais que abordam o fim do mundo. O zumbi, a explosão, o fim do mundo seriam tentativas de construir um “fora”.

Cazdyn reflete sobre como a medicina contemporânea, a globalização e as atuais práticas culturais e políticas formam o que ele chama de “o novo crônico”, um estado permanente de exceção e de administração de uma crise que não se sabe de onde veio nem se tem uma vontade real de superar. Na medicina moderna, por exemplo, esse crônico se materializa no uso de drogas e terapias que visam o gerenciamento e não a cura das doenças. De modo semelhante, o capitalismo global visa hoje o gerenciamento das crises e não sua resolução. Esse estado de doença literal e social é o próprio modo de funcionamento da sociedade capitalista contemporânea, é o modo que o capitalismo encontrou de sobreviver na doença. O que interessa a Cazdyn é explorar as complexidades dessa crise permanente e observar como ela afeta negativamente nossa percepção do tempo e mina formas alternativas de pensamento criando o chamado “abismo global”.

Nesse sentido, o livro de McCarthy ilustra bem algumas das ideias de Cazdyn. No livro (teremos alguns spoilers a partir daqui), temos acesso a um pai e um filho andando a esmo em um mundo pós-apocalíptico. Quando a narrativa se inicia, a explosão — ou o que quer que tenha encerrado a vida como eles conheciam — já havia acontecido há dez anos, antes mesmo de o garoto nascer. O livro não procura examinar as causas desse apocalipse: é como se o motivo que gerou aquela situação não importasse, como se aquilo tivesse sido um evento autônomo e sem agentes. Ou seja: os personagens (sobretudo o pai) parecem não ter a capacidade de historicizar as coisas, eles apenas sobrevivem em um presente congelado sem um entendimento do passado ou um projeto de futuro. Eles, de certo modo, já estão mortos. Uma das características do sujeito pós-moderno, segundo Stuart Hall, é justamente sua dificuldade em diferenciar passado, presente e futuro, vivendo em um limbo ahistórico completamente internalizado pelos personagens de “The Road”.

O pai representaria, então, um “crônico” perfeito. Uma das cenas do livro em que isso fica claro é no momento em que ele abandona um homem que tentou assaltá-lo sozinho e sem nada no meio de um descampado. Ou seja: ele rouba o homem que tentou roubá-lo e comete um ato de violência contra ele. O filho chama atenção para uma obviedade: deixar o sujeito sozinho e sem nada naquele lugar é o mesmo que matá-lo, mas o pai diz que não há outra opção. Quando o menino demonstra o desejo de salvar uma criança que eles encontram pelo caminho, o pai repete essa fala de que o ideal seria X, mas que eles agirão da forma Y, pois não têm opção. A repetição do argumento “não há outra opção” diante de atitudes que o próprio sujeito considera erradas ou antiéticas é a forma como o pai aplica a lógica do “estado de exceção” à sua vida prática. Ele sempre reconhece que suas atitudes não são as ideais, mas argumenta que só poderia agir corretamente se as condições fossem ideais. Como elas não são e provavelmente jamais serão uma vez que a crise que eles vivem é permanente e sem perspectiva de melhora, então o comportamento de “exceção” transforma-se em regra e molda sua existência. Como disse Cazdyn, “a crise pressupõe que talvez possamos suspender nossas regras e parâmetros éticos usuais porque precisamos ?agir imediatamente'”, ainda que esse “imediatamente” se prolongue indefinidamente em um mundo pautado por crises que se intercalam.

O garoto, em oposição ao pai, ainda consegue elaborar melhor sobre o mundo ao seu redor. Ele percebe, por exemplo, como as coisas tidas como úteis — pontes, viadutos, casas, carros — foram as que perderam sua razão de ser mais cedo. Por não compartilhar da mesma estrutura de sentimentos em o pai foi criado, ele consegue perceber melhor as contradições do mundo “de antes” que podem ter gerado seu fim. O medo que o garoto tem de que seu boneco em forma de pinguim se mova parece ser um medo da automização da mercadoria, o medo de um mundo (o mundo de seu pai, dos cartazes de propaganda que ele vê abandonados nas ruas, o mundo pré-apocalipse) em que as mercadorias têm vida própria. Segundo Cazdyn, o pressuposto ideológico mais importante de nosso momento atual é o de que as coisas, os eventos e as pessoas possam ter uma existência autônoma. Pois essa é justamente a lógica do pai ao não tentar historicizar as causas do apocalipse, por exemplo.

O ponto mais problemático do romance é sua incapacidade de desnaturalizar determinados comportamentos. Em diversas passagens a imaginação do autor não é suficiente para romper o substrato ideológico de seu tempo. Por exemplo: há uma cena em que o garoto experimenta coca-cola pela primeira vez e esse é um momento mágico. Será que experimentar uma coca-cola quente e fora da validade quando não se teve acesso ao imaginário publicitário formado em torno desse refrigerante seria mesmo uma experiência prazerosa, quanto mais mágica?

Essa limitação do romance — algo que talvez se explique justamente pelo fato de que o artista e o crítico já não possuem um “fora” de onde possam emitir suas críticas; aquele que critica é ele mesmo cindido pelo poder que se exerce dentro de sua própria subjetividade — se dá de modo mais explícito no final. Depois de toda uma saga niilista, focada apenas em uma sobrevivência quase insustentável, o pai está prestes a morrer. Assim que ele morre, no entanto, seu filho é acolhido por uma família inverossimilmente nuclear, inverossimilmente calorosa e disposta a receber um novo membro que será, na verdade, um estorvo por ser uma criança a mais para ser alimentada e protegida. O próprio pai do menino deixou claro ao longo do romance que eles não tinham como sobreviver se acolhessem mais uma pessoa, que sua sobrevivência era baseada no egoísmo. O surgimento da família perfeita — pai, mãe, um menino e uma menina de idades semelhantes à do protagonista — aponta para uma possibilidade de reconstituição acrítica do mundo como ele era antes do apocalipse, com instâncias baseadas no conceito de família. Aquilo que a mãe diz no começo do livro, que eles devem desistir e se matar, pois é isso que todas as famílias estão fazendo já que não há espaço para elas nesse novo mundo, é relido em uma chave conservadora no fim do romance: será que essa é a hora da reconstituição familiar? O romance não é capaz de enxergar relações humanas legítimas fora da família tradicional. Isso se reflete, por exemplo, na forma como outros agrupamentos humanos costumam ser retratados: sempre como gangues, canibais, pessoas sem nenhum vínculo de solidariedade e afeto entre si. O único laço humano possível parece ser a família.

Vale a pena reconstruir o mundo a partir dos moldes pré-apocalipticos ou a insistência no tema do apocalipse seria uma tentativa da arte de capturar um desejo difuso por mudança em um mundo em que a mudança já não é vista como possível? Em mundo assim, um fator externo que viesse e mudasse as coisas à revelia dos seres humanos e não a partir da ação humana não seria uma espécie de desejo inconfessável da sociedade? Segundo Cazdyn, uma revolução acontece “no momento em que um novo conjunto de relações se estabelece no seio de um novo sistema”. “The Road”, assim como tantos outros livros recentes que tematizam o apocalipse, apresenta um acontecimento inesperado — o próprio fim do mundo como o conhecemos — mas não consegue dar o passo adiante, isto é, estabelecer novas relações e um novo sistema que paute a existência humana. O livro passa da falta de rumo do pai e do filho ao retrocesso ao antigo rumo tomado pelas sociedades ocidentais industrializadas, representado pela família nuclear.

Enquanto “The Road” foca em um pequeno núcleo de sobreviventes e não explora diretamente os motivos que levaram o mundo ao colapso, “World War Z” subverte convenções do gênero das “narrativas apocalípticas” ao retratar diversos grupos de sobreviventes em diversos pontos do globo e retirar a possibilidade de suspense: não se trata de uma luta pela sobrevivência em que o leitor se mantém preso ao livro para saber se os personagens vão conseguir sobreviver. Como a narrativa não é linear, sabemos desde o início que a humanidade sobrevive. O que importa aqui é entender o processo, não acompanhar destinos individuais.

O livro gira em torno de um repórter tentando escrever uma matéria sobre a guerra contra os zumbis (que já aconteceu há dez anos). A história de como a humanidade sobreviveu e se transformou ao longo daquilo que é descrito como sendo a “pior guerra já enfrentada” é contada em flashbacks, através de diferentes personagens em vários momentos. Esses flashbacks são parte de uma série de entrevistas (cada entrevista corresponde a um capítulo) com os sobreviventes, desde o começo da epidemia até as batalhas finais, passando pela reorganização e reestruturação da sociedade. Os personagens explicam os erros que foram cometidos, a falta de estratégia contra uma ameaça inesperada, os erros propositais criados por corporações e pessoas que viram uma oportunidade de “lucro na crise”, o racismo etc.

Esses relatos, no entanto, não são puramente ficcionais, eles fazem referência a dados da realidade como a desinformação sobre o vírus da gripe, os documentos falsificados para justificar a invasão americana no Iraque, o filtro da imprensa que decide o que será veiculado segundo seus próprios interesses e até o fato de um país esconder uma epidemia para não ser comercialmente prejudicado, como fez a China em 2002, com a Síndrome Respiratória Aguda Grave. A narrativa repleta de relatos e entrevistas remete ao gênero jornalístico e dá verossimilhança ao livro. Uma vez que o leitor aceita a existência daquela guerra ficcional, o resto do livro passa a ser lido como um material jornalístico bastante verossímil. Segundo Books, o único elemento fantasioso do livro são os zumbis em si, embora Cazdyn pudesse discordar e achar que também os zumbis são reais. Irônico é ver a adaptação cinematográfica do livro e notar como ela vira tudo isso de ponta-cabeça para incluir cenas de ideologia explícita como aquela em que Israel é invadido pelos zumbis por culpa dos palestinos.

Em linguagem de em dia-de-semana, o crônico, o zumbi e o “já morto” que surgem nesses livros são representações do sujeito contemporâneo, marcado pelo imobilismo de um momento em que as pessoas não se sentem capazes de empreender mudanças radicais e torcem para que a mudança caia dos céus, como no poema “À espera dos bárbaros”, de Konstantinos Kaváfis, em que os bárbaros, avós dos zumbis, seriam uma solução, mas infelizmente não chegam.

Juliana Cunha é redatora do IMS.

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