Ródtchenko visto

serrote

13.01.11

Aleksandr Ródtchenko foi uma das figuras centrais do movimento artístico no período da Revolução Russa. Bem criança, vivi aqueles anos, e seu nome logo me traz à lembrança o espírito de uma época. Para começar, o sobrenome Ródtchenko é bem ucraniano e, embora de formação russa, vivi meus primeiros anos na Ucrânia.

Aliás, de modo geral, acho que geralmente se comete em relação a ele uma injustiça: costuma-se lembrá-lo como extraordinário fotógrafo ou, no máximo, como autor também de fotomontagens, sobretudo as que acompanham o poema de Maiakóvski “Sobre isso” (Pro eto), que é de 1923. É verdade que a contribuição para esse livro é simplesmente genial, com aquela visão deslumbrante da figura de Lília (ou Lili) Brik, a grande paixão de Maiakóvski, mas, assim mesmo, há certa injustiça em reduzir sua contribuição às artes a esses trabalhos incomuns.

Aleksandr Ródtchenko Retrato da mãe, 1924 Coleção particular © A. Ródtchenko - V. Stepanova Archive © Moscow House of Photography Museum

Aleksandr Ródtchenko Retrato da mãe, 1924 Coleção particular © A. Ródtchenko – V. Stepanova Archive © Moscow House of Photography Museum

Basta lembrar, neste sentido, que, ao consagrar-se como fotógrafo, um verdadeiro revolucionário da fotografia, como afirma o título desta exposição, ele já era famoso entre os artistas da época. Pintor e desenhista, tornou-se uma das figuras mais centrais do construtivismo, um movimento surgido na Rússia e que fazia ênfase na construção de objetos. Na realidade, ao consagrar-se como fotógrafo, ele trazia para a fotografia a sua grande experiência com os efeitos de luz e sombra, que assimilara como artista criador. Devo esta observação principalmente aos materiais sobre Ródtchenko incluídos no riquíssimo álbum Paris – Moscou 1900-1930, publicado pelo Centre Georges Pompidou (Paris, 1979), mas também a um álbum brasileiro, aliás excelente, Gráfica utópica – Arte Gráfica Russa, 1904-1942 (CCBB, Rio de Janeiro, São Paulo, Brasília, 2001). Estes livros são acrescidos do álbum recém-publicado pelo Instituto Moreira Sales, Aleksandr Ródtchenko, revolução na fotografia.

A simples menção de seu nome evoca os tempos tumultuosos da Revolução Russa. Quando ela ocorreu (refiro-me à segunda Revolução, isto é, a tomada do poder pelos bolcheviques), foi saudada principalmente pelos então chamados na Rússia de artistas de esquerda, isto é, os seguidores da arte moderna. Os outros, os artistas tradicionais, ficaram, de modo geral, no campo oposto e, na maioria, fugiram para o exterior.

O novo poder foi saudado pelos modernistas das mais variadas correntes. Para eles, foi o tempo das grandes esperanças e transformações.

Os operários que investiam contra o Palácio de Inverno em Petrogrado estavam gritando o dístico incisivo de Maiakóvski (tradução de Augusto de Campos): “Come ananás, mastiga perdiz, /Teu dia está prestes, burguês!”.

Instaurado o novo regime, ele foi saudado pelos que se opunham à tradição. “Troa na praça o tumulto, /Altivos píncaros-testas, /Águas de um novo dilúvio /Varrendo os confins da terra” – clamava Maiakóvski (desta vez traduzido por Haroldo de Campos), dando ao acontecimento dimensões ciclópicas e de espaço cósmico. Parecia até que havia voltado o tempo das profecias bíblicas.

“Cristo ressuscitou!” – proclamava o título de um poema de Andréi Biéli, outro grande nome da época, unindo espírito religioso e vibração revolucionária.

Ainda naqueles dias, o maior dos simbolistas russos, Aleksandr Blok, em seu poema “Os doze”, vê Jesus Cristo à frente de uma patrulha do Exército Vermelho. (Ele está traduzido para o português por Augusto de Campos).

Mas, na mesma época, a cúpula partidária tinha um gosto muito mais tradicional. Todavia, o jornal do Comissariado da Instrução Pública, encabeçado por Lunatchárski, era redigido pelos futuristas. O próprio comissário (evitava-se o nome de ministro, devido a conotações indesejáveis no antigo regime) publicou nesse jornal uma declaração em que afirmava ser o Comissariado receptivo às mais diversas correntes artísticas e que seria esta a tônica da publicação.

No entanto, já naqueles dias a situação não permanecia tão idílica e equilibrada. Basta lembrar neste sentido a amargura com que Maiakóvski se refere àqueles dias em sua autobiografia sucinta, Eu mesmo. Pouco depois, o próprio Lênin mandaria a Lunatchárski um bilhete desaforado porque o Comissariado havia publicado com tiragem de 1.5 mil exemplares o poema de Maiakóvski “150.000.000”, quando teriam bastado, segundo o chefe de governo, escassos exemplares para uns poucos leitores excêntricos.

Ainda não eram as grandes perseguições à arte moderna que viriam, mas já prenunciavam uma situação difícil, o que não tolhia assim mesmo os artistas de vanguarda.

Na verdade, os russos estavam então com o que havia de mais avançado em termos de arte.

O grupo dos pintores construtivistas emitiu em 1921 um manifesto declarando sua recusa da pintura de cavalete e a defesa de uma arte de produção. Muitos passaram a dedicar-se então à produção de objetos, isto é, algo que se aproximava do que hoje nós chamamos design.

Ródtchenko seguiu com empenho esta orientação. Ficaram famosos, por exemplo, os móveis que projetou, bem como inúmeros outros tipos de objeto. Há um retrato seu tirado na época, onde aparece de cabeça raspada, envergando um traje por ele criado, e que aproveitava ao máximo os parcos materiais então disponíveis em termos de tecidos.

Aliás, foi a época da grande colaboração de Maiakóvski e Ródtchenko. Ambos trabalharam dia e noite na confecção de cartazes para a Rosta, sigla da Agência Telegráfica Russa (Rossíiskoie Tielegráfnoie Aguientstvo). O poeta, muito ligado às artes plásticas e, na época, um entusiasta do construtivismo, teve então longas conversas com seu companheiro de trabalho.

Ródtchenko opunha-se frontalmente ao suprematismo de Casímir Malévitch, apesar do que eles tinham em comum. Há elementos para se supor que esta oposição tivesse fundamento ideológico. Malévitch havia publicado um trabalho extenso em que procurava demonstrar que a crença em Deus não tinha nada de contra-revolucionário e propunha uma espécie de prenúncio da Teologia da Libertação.

Em 1925, os russos causaram sensação em Paris, na Exposição das Artes Decorativas e Industriais Modernas, cujo pavilhão soviético foi organizado por Ródtchenko. Ele mandou de Paris cartas para a revista LEF (sigla de Lévi Front, isto é, Frente de Esquerda), fundada e dirigida por Maiakóvski, onde se voltava contra os trabalhos franceses então expostos. Tendo visitado, na mesma ocasião, o Salão dos Independentes, escreveu (desculpem, minha tradução, neste caso, é indireta): “Os franceses realmente já se esgotaram. Há milhares de telas, todas insignificantes e apenas provincianas; realmente, eu não esperava isso. Depois de Picasso, Braque e Léger, não há absolutamente nada, a não ser o vácuo…”.

É no próprio álbum lançado agora que encontro alguns dados sobre como viveu os anos de regime stalinista, pois morreria em 1956. Sabe-se, por exemplo, que trabalhou bastante para cinema e que elaborou cenários para teatro, mas o álbum nos dá também fotos que expressam o triunfalismo do regime, com aqueles desfiles espetaculares de esportistas vindos de todos os cantos da União Soviética. Mas, embora colaborasse com esse triunfalismo, Ródtchenko teve os seus momentos amargos.

Sabe-se, por exemplo, que sofreu uma crítica violenta depois de publicar com sua mulher, a pintora e fotógrafa Stiepânova, a foto de um pioneiro, isto é, membro da organização juvenil que precedia o ingresso no Partido Comunista. O jovem aparecia ali parado e com os olhos dirigidos para cima, o que foi interpretado como uma atitude religiosa, de misticismo barato.

Em 1951, foi excluído da União dos Artistas Soviéticos devido a acusação de formalismo, sendo readmitido somente em 1955.

Uma das expressões máximas de um período riquíssimo, a arte de Aleksandr Ródtchenko nos desafia até hoje com seu vigor expressivo. Já se afirmou, por exemplo, que nossa visão de Maiakóvski, hoje, se deve à impressão causada por sua obra e pelas fotos de Ródtchenko. E o mesmo se pode dizer de inúmeros fatos e homens daquele período. Enfim, toda a nossa visão da época está marcada por esse artista excepcional.?

, ,