A publicação em capa dura de Contos reunidos de João Antônio pela CosacNaify, em edição cuidadosa com apresentação de Rodrigo Lacerda, acrescentada de breve fortuna crítica e alguns textos dispersos, é homenagem e reconhecimento há muito devidos a esse escritor decisivo na literatura urbana brasileira. Ao volume junta-se a edição fac-símile de caderneta de endereços onde João Antônio anotava gírias e expressões populares que ia ouvindo. Algumas já incorporadas ao vocabulário corriqueiro, outras ainda restritas aos diversos espaços em que costumam circular como o salão de sinuca, os botequins ou as prisões, outras poucas já fora de moda. Na verdade, formam mais que um vocabulário das ruas, como é intitulado, mas registro de múltiplas subculturas que circulam pelo Rio de Janeiro e São Paulo. E não há como a edição fac-símile para dar prazer aos que continuam cultuando o livro em papel.
Duas condições especiais contribuem para a seriedade do trabalho: a primeira é o responsável pela apresentação. Até onde minha vista alcança, Rodrigo Lacerda é o mais constante e minucioso pesquisador da obra do nosso contista sem sobrenome. Há anos se ocupa da obra que vem sendo reeditada em volumes separados pela editora desde 2001. A outra condição favorável foi a reunião de todo o material deixado por João Antônio e doado pela família no Centro de Documentação e Apoio à Pesquisa da UNESP-Assis(SP). O CEDAP/UNESP vem cumprindo da melhor forma possível o que deve ser o objetivo de um centro como este: não se limitar a ser um museu ( às vezes são apenas depósitos), biblioteca setorial ou algo assim, mas um polo difusor de pesquisas acadêmicas que vão de monografias de final de curso a teses de doutorado. Além de contribuir e incentivar tais estudos, encarrega-se de divulgá-los em seu site, disponibilizando, inclusive, as teses e dissertações ligadas ao “Acervo João Antônio” em PDF. Exemplo raro que merece ser copiado em outras universidades, muitas delas detentoras de arquivos invejáveis que se transformam, de fato, em “arquivos-mortos”.
É, assim, provocada pela qualidade do trabalho realizado e pela importância da publicação que me vejo instigada ao debate.
Comecemos pelo título: Contos reunidos. Ninguém está dizendo que se trata de obra completa ou de todos os contos do autor, embora o leitor desavisado tenda, à primeira vista, a acreditar que assim seja. Junto com o título da obra (já disse o próprio João Antônio: “Um título…como é difícil e como é fácil. Ou impossível”) há uma decisão autoral do organizador, um critério a determinar a seleção. Não sei se a proposta não está clara ou se simplesmente não concordo os critérios de exclusão que deixam de fora Malhação de Judas Carioca e o que me parece ser o mais original dos livros da fase final de sua obra: Ô Copacabana. Os inéditos ou dispersos pouco acrescentam e parecem ser mais um tributo ao material doado ao centro. Talvez fosse melhor incluir o pouco conhecido Dama do Encantado, obra de formato peculiar.
João Antônio, à direita, durante as filmagens de O jogo da vida,
baseado no livro Malagueta, Perus e Bacanaço
Volto ao critério de inclusão/seleção. O apresentador do volume afirma, enfático, que “foi concebido este volume, no qual, sem medo de errar, pode-se dizer que a produção essencial do escritor ganha um tratamento ainda mais condizente com sua importância”. Caímos então na velha questão do cânone e da consagração da obra literária por instâncias legitimadoras, geralmente acadêmicas. Preferiria que o autor tivesse, sim, medo de errar e determinasse quais as obras a serem incluídas, arbitrariamente, a partir de próprio critério de gosto ou outra qualquer razão que apresentasse claramente ao leitor. O que me incomoda nessa certeza da importância dos textos escolhidos é que, cotejando com a fortuna crítica apresentada, parece ser a avaliação dos (quer se queiram ou não) formadores do cânone sobre a obra que influiu. Assim, Antonio Candido legitima Contos gerais, de Malagueta, Perus e Bacanaço. Tania Macedo atesta a importância de Leão de Chácara. À apresentação de Paulo Rónai publicada na 1ª edição de Dedo duro junta-se o desperdício de talento que pratica Jorge Amado falando do mesmo livro, que não parece ter lido. O texto de Alfredo Bosi, “Um boêmio entre duas cidades”, publicado na 1a edição de Abraçado ao meu rancor, justifica, junto com os prêmios recebidos pela obra, a inclusão deste único livro da fase final de João Antônio nos Contos reunidos. Reconhecendo que o termo “marginal” é fonte de equívocos, Bosi aponta para o que talvez seja uma mudança em torno da figura do escritor que tanto sucesso de vendas e de crítica alcançara. Afirma Bosi:
Abeirar-se do texto ora lancinante ora tristemente prosaico de João Antônio requer (a quem não o faz por natural empatia) todo um empenho de ler nas entrelinhas um campo de existência singular, próprio de um escritor que atingiu o cerne das contradições sociais pelas vias tortas e noturnas da condição marginal.
Ou seja, João Antônio vai passando de intérprete (privilegiado, é verdade, porque próximo ao seu objeto pela sua origem na classe operária de São Paulo) da marginalidade a um marginalizado ele próprio. Em minha leitura, isso se dá a partir do momento em que publica Ô Copacabana. Apesar de dedicar-se a “retratos” em Dama do Encantado, seu último livro, o mais expressivo nas últimas obras, em Abraçado ao meu rancor deixa de lado os personagens humanos, especialmente os que o celebrizaram, como o malandro, o jogador de sinuca, os moleques pobres, para se focar no espaço. É o narrador que está na cidade que “redói”, que “deu em outra”, e são os espaços da cidade que determinam a sorte dos personagens. Em contos como “Guardador”, de Abraçado ao meu rancor, onde ao “velho cachaça” da Praça Serzedelo Correia, restou apenas o oco de uma árvore como moradia, as falas minguam, fica o cenário. Não importa que seja Rio de Janeiro ou São Paulo: “essa briguinha ranheta nos aporrinha por repetição monocórdia”, como diz em no mesmo livro: “para o carioca, paulista é um chato engalochado. Grave, afobadinho, de ginga pouca e duro nas juntas. E, para paulista, carioca descansado é marrom de sol, parece viver em férias”.
Rodrigo Lacerda nos dá uma explicação bastante lógica e racional para o que considera a diminuição do fôlego criativo do escritor:
Recusando-se a sacrificar seu estilo de vida, boêmio e independente de vínculos profissionais, João Antônio acabou sacrificando projetos literários que exigissem um tempo de maturação mais longo.
Essa degradação do autor irá, para o pesquisador, levar também aos textos produzidos consequências enfraquecedoras, especialmente um acorrentar-se de vez ao real extraído do cotidiano da cidade e os excessos estilísticos, numa “verborragia preciosa, uma espécie de parnasianismo ao avesso”, o mesmo que o crítico Léo Gilson Ribeiro viu com “defeito grave”: prender-se num “cipoal de palavras que quase sufoca o relato” num deslumbramento pelos vocábulos e expressões por ele criados ou forjados pelo povo.
Como diria Guimarães Rosa, pão ou pães é questão de opiniães. São justamente esses dois fatores, um mergulho mais pessoal, mais inclusivo, na lama das cidades e o cipoal de palavras que me encantam, sobretudo em Ô Copacabana. O fortalecimento de tais recursos que, de alguma forma já existiam, é que me parece dar um novo rumo à sua literatura que, pelo meio do caminho da trajetória criadora, caíra em queixas ideológicas um tanto lamurientas e na defesa de um proletariado utópico. Foram esses quase cacoetes que, se o tornaram um autor com grande receptividade sobretudo entre os leitores de esquerda durante os anos do regime, também o incluíram no debate que surgiu no final dos anos 70 sobre um “neopopulismo emergente”.
No estudo “A ficção da realidade brasileira”, de Heloisa Buarque de Hollanda e Marcos Augusto Gonçalves, parte da coleção de cinco livrinhos organizados por Adauto Novaes na coleção Anos 70, os autores, após reconhecerem a importância da ficção de um “artesão aprimorado na construção de tipos”, questionam a maneira como João Antônio tira de sua galeria de personagens um sabor renovado e pitoresco, sem “nada que problematize sua prática, que marginalize sua ficção repleta de marginais”. Simplificando, chegou um momento em que faltava marginalidade ao intérprete dos marginais.
Quanto ao cipoal de palavras que sufoca o relato, encontro em Vilma Arêas uma parceira no gosto pelo efeito palavra-puxa-palavra como recurso poético. Falando de A dama do Encantado, de 1996, em “Chorinho de um retratista (improviso)”, ensaio publicado em número da revista Remate de Males dedicado ao autor, Vilma aponta como virtude das narrativas do livro “ritmo, metro e rima escorando uma prosa vigorosa e redefinindo ou situando na modernidade a antiquada prosa poética”.
Rodrigo Lacerda, na conclusão de sua tese de doutorado, João Antônio, uma biografia literária, disponível no seu site pessoal, nos conta:
Em outubro de 1996, como todos os que acompanharam o noticiário, fiquei chocado com as circunstâncias da morte do escritor: abandonado em sua cobertura decadente no mais decadente dos bairros da Zona Sul carioca (sendo o Rio talvez a capital mais decadente do país), apodrecendo durante semanas até que as moscas denunciassem a “presença do cadáver”.
Este espaço de decadência é a Copacabana do final do século XX, o mesmo século que vira surgir o Hotel Copacabana Palace na Avenida Atlântica e que a cantara como “Princesinha do mar”. Qualquer decadência, porém, só é constatada a partir de um ponto de vista comparativo. Copacabana perdera o brilho dos anos dourados, das boates elegantes, dos salões de beleza de grã-finas, dos apartamentos amplos com dois quartos de empregada. Mas como cidades são seres vivos em mutação permanente, dessa mesma decadência foi surgindo uma Copacabana que voltava a motivar a literatura, justamente por seu espaço de mistura, do ninguém tem nada a ver com a vida do outro que traz solidão, mas também tolerância. E é justamente o livro de João Antônio que, a meu ver, aparece como um importante turning point na constituição de um imaginário artístico que fecha o foco, seja como for, no bairro de Copacabana. A este livro irão se suceder vários outros, de Sônia Coutinho a João Paulo Cuenca, a se ocuparem do bairro que junta culturas e comportamentos diversos lado a lado, numa proximidade tão excessiva que é necessário ignorar o vizinho para sobreviver. É da dureza das cidades modernas, da mixórdia e da sedução que tem saído o melhor das literaturas dos grandes centros e de suas periferias.
Na contramão das lástimas e saudades pela elegante Copacabana que se fora, a que interessa ao contista não são as saudades. “Os antigos são uns chatos. Ficam falando uma porção de bagulhos que não tem nada a ver”. E logo adiante: “Nosso bairro mantém certas manias ridículas, como conservar a Confeitaria Colombo, da rua Barão de Ipanema ou A Marisqueira, da Barata Ribeiro (…) Nenhum desses lugares tem a vida, a confusão e a badalação de uma Adega Pérola”.
Em certo momento, falando da Praça dos Paraíbas, João Antônio nos exibe os dois problemas apontados pelo organizador: olhando a praça do alto de sua cobertura decadente diante dela ou andando pelas ruas de sua vizinhança, revela sua própria decadência, incluindo-se na mesma condição do espaço do “nosso” bairro. Nessa mistura, misturam-se também as palavras que se acumulam como a população do bairro. O cipoal.
Não um chão só de pobres amantes, a Serzedelo Correia abriga, aninha, suporta, agasalha, motiva, anima, consola, acoita, remende, incrementa, fervilham transaciona, compreende, exalta, desmitifica ternuras e sonhos das gentes do bairro. Do amolador de facas e tesouras à babá, do vendedor de produtos farmacêuticos aos laboratoristas, e até escrevedores de jogo do bicho.
Que ela também é Rio de Janeiro, além de norte, sul, nordeste do país e estranjas. E é Copacabana.
Rio puro? Isso ainda tem? Tem misturado. Mas Rio.
Se a decadência da vida pessoal de João Antônio nos últimos anos, convivendo com os merdunchos do bairro, não lhe salvou a vida, ao contrário, abreviou-a, inscreveu-o, no entanto, dolorosamente, de uma forma diferente, na galeria de “marginais” da literatura brasileira. Quando o organizador menciona os “porres e vexames homéricos” além do calote frequente nos amigos que ainda lhe emprestavam algum dinheiro, parece que nos transportamos para o universo tão bem descrito pelo próprio João Antônio em seu Calvário e porres do pingente Afonso Henriques de Lima Barreto. O livro, vale lembrar, é a reunião extremamente bem selecionada de textos da ficção e dos diários de Lima, acrescidos de breves depoimentos ou correspondência, revelando cuidadoso trabalho de pesquisa.
Diversos de seus livros são dedicados ao romancista carioca a que chama mestre e pioneiro:
Tudo de Lima é atual, de uma atualidade alarmante. (…) sua obra até hoje é uma porrada, seca e rente, na nossa apatia, malemolência, calhordice, omissão, indiferença, farisaísmo, relapsia e macaqueação dos modelos estrangeiros. Qualidades igualmente pungentes.
Lima Barreto morreu mais cedo, vencido provavelmente pela bebida, mas a descrição que faz de si mesmo não difere muito das últimas imagens de João Antônio. Lima registra em certo momento de seu diário: “Tinha levado todo o mês a beber, sobretudo parati. Bebedeira sobre bebedeira, declarada ou não. Comendo pouco e dormindo sabe Deus como. Andei porco, imundo”. Assim ia o genial cronista do Rio, andando pelas ruas em seu ?esbodegado vestuário”, sem poupar, pelo caminho, os amigos de suas eventuais facadas.
Chego assim ao último ponto da organização dos Contos reunidos que gostaria de colocar em discussão. Por pautar-se pela recepção canônica das obras de João Antônio, por limitar a fortuna crítica aos escritos consagrados da academia, o organizador parece olhar para a literatura de João Antônio com admiração, mas pelo retrovisor. Desse modo, quando diz que “ele está de volta” parece se referir à importância (enorme, certamente) da reedição, da generosa entrega que faz aos leitores de hoje de uma edição finalmente cuidadosa, bonita, esclarecedora por suas notas e indicações. Nem por isso, porém, recoloca João Antônio na cena da criação literária contemporânea ou de uma crítica renovada que busque outros pontos de vista, acene com outras leituras. As mudanças apontadas por Rodrigo na recepção da obra do escritor são importantíssimas: a cessão dos arquivos para o Departamento de Literatura da UNESP e a republicação pela CosacNaify de suas obras.
Se olharmos, porém, para frente, poderemos vislumbrar o aparecimento de outro aspecto decisivo que tem trazido o nome do contista à baila: a reconfiguração do termo literatura marginal e a instituição de uma espécie de linhagem que vem de Lima Barreto, passa por João Antônio e Plínio Marcos e chega a Ferréz com seus companheiros.
Quando Ferréz (Reginaldo Ferreira da Silva), já reconhecido como escritor e liderança cultural, organiza em 2001 o primeiro da série de três números da revista Caros Amigos dedicados à cultura da periferia, introduz a edição com o “Manifesto e abertura: literatura marginal” e homenageia João Antônio afirmando que têm “a honra de citá-lo como a mídia o eternizou, um autor da literatura marginal”. Deste volume chamado Ato I, fazem parte textos apresentados como ?faces da caneta que se manifesta na favela”, dentre esses Paulo Lins, Sérgio Vaz e outros. No Ato II, é incluído um texto desconhecido de João Antônio, “Convite à vida’, carta do escritor ao amigo Miltainho, de 1994. Os três números foram reunidos posteriormente no volume Literatura marginal, talentos da escrita periférica e antecedidos pelo prefácio, assinado por Ferréz, “Terrorismo literário”. O texto procura definir o sentido que o grupo de autores da periferia de São Paulo, especialmente da comunidade do Capão Redondo, entende por cultura e literatura periférica, afirmando a intenção dos autores de falar por suas próprias vozes:
Quem inventou o barato não separou entre literatura boa/feita com caneta de ouro e literatura ruim/escrita com carvão, a regra é uma só, mostrar as caras. Não somos o retrato, pelo contrário, mudamos o foco e tiramos nós mesmos a nossa foto.
O manifesto termina com longa citação de João Antônio em Abraçado ao meu rancor:
Evitem certos tipos, certos ambientes. Evitem a fala do povo, que vocês nem sabem onde mora e como. Não reportem o povo, que ele fede. Não contem ruas, vidas, paixões violentas. Não se metam com o restolho que vocês não vêem humanidade ali. Que vocês não percebem vida ali. E vocês não sabem escrever essas coisas. Não podem sentir certas emoções, como o ouvido humano não percebe ultra-sons.
Segundo Paulo Roberto Tonani do Patrocínio, em trabalho bastante original apresentado como tese de doutorado: Escritos à margem: a presença de escritores de periferia na cena literária contemporânea, a argumentação de João Antônio se aproxima à dos autores da Literatura marginal quando consideram que melhor representam os personagens da periferia aqueles que não apenas percorrem tais territórios, mas que possuem uma relação embrionária com estes. Mais adiante, falando no que considera um “cânone imaginário e próprio da Literatura Marginal”, Tonani do Patrocínio afirma que
Ao resgatarem tais escritores, a Literatura Marginal enumera na série literária hegemônica uma filiação própria, selecionando seus pares a partir de critérios não apenas literários.
No livro Vozes marginais na literatura, de 2009, prefaciado por Ferréz, Érika Peçanha do Nascimento, paulista do Bairro do Jaraguá, estuda minuciosamente a apropriação recente da expressão “literatura marginal” por escritores da periferia, apresenta os autores e as suas ações coletivas e investiga o sentido cultural e político que estes movimentos vêm adquirindo. Como parte da pesquisa, Érika procura investigar que autores esta nova geração apresenta como influência em sua formação. Ferréz é enfático em sua admiração por João Antônio. O contista Sacolinha aponta como decisivo ter sido apresentado às obras de Carolina Maria de Jesus e de João Antônio.
Voltemos, ainda, ao misturado de que fala João Antônio no texto que já foi citado. Em recente ensaio, ainda não publicado, sobre literatura e cultura da periferia, Heloisa Buarque de Hollanda comenta o livro de Ferréz, Manual prático do ódio, e observa:
O texto corre embolado, nítido, cheio de perspectivas prismáticas, tentando registrar ora o sentimento, ora a agressividade, ora a nostalgia, ora a gratuidade explosiva, enfim as várias faces e dimensões dessas vidas visceralmente ligadas entre si.
Lembra, então, o cumprimento fraterno que trocam os manos da periferia: “Tamo junto e misturado”, vendo nessas falas “O eu e o nós embaralhados, identificados, numa referência bem mais forte do que a ação que se segue”.
O manifesto de Ferréz, ao falar que não são mais o retrato, tiram eles mesmos suas fotos, parece, à primeira leitura, entrar em contradição com o ensaio de Antonio Candido incluído no volume, A noite enxovalhada. Candido, refere-se, com a acuidade de sempre, a João Antonio como “um narrador culto que usa sua cultura para diminuir distâncias” e segue:
Uma das coisas mais importantes da ficção literária é a possibilidade de ?dar voz’. De mostrar em pé de igualdade os indivíduos de todas as classes e grupos, permitindo aos excluídos exprimirem o teor de da sua humanidade, que de outro modo não poderia ser verificada.
Tal função da arte de ?dar voz’ parece opor-se à afirmação que Sartre fizera em 1961, e se tornou marco de novos tempos na afirmação das subjetividades ao apresentar o livro de Franz Fanon Os condenados da terra. No prefácio o filósofo aponta para o final da era em que os intelectuais ou os artistas falariam pelos subalternos, pois chegara o momento em que as “vozes negras e amarelas” passavam a falar por elas mesmas.
Mas Antonio Candido já resolvera o impasse um pouco, antes, no mesmo texto, quando diz que João Antônio irmana a sua voz “à dos marginais que povoam a noite cheia de angústias e transgressão, numa cidade documentariamente real, e que, no entanto, ganha uma segunda natureza no reino da transfiguração criadora“.
O grifo é meu e a expressão transfiguração criadora fica como o desafio que João Antônio tentou, como indica o apresentador do volume com “pontos altos e baixos, forças e fraquezas”, enfrentar. Continua sendo o desafio que vozes contemporâneas, como as da nova literatura marginal e outras, enfrentam.
Buscar novas perspectivas críticas, novas formas de recepção, de leitura, de contaminação e misturá-las às anteriores me parece ser a melhor maneira de assegurar a importância da volta de João Antônio.
* Beatriz Resende é crítica literária e professora da UFRJ.