A morte e as mortes de Barthes

Literatura

13.12.15

Companheiro de viagem de Philippe Sollers, mestre e amigo de Antoine Compagnon e mito para Laurent Binet, Roland Barthes marcou decisiva e diferentemente suas vidas. Nascidos entre as décadas de 1930 e 1970, os três espelham em suas biografias o que Barthes representou para a vida intelectual francesa desde o lançamento de O grau zero da escrita, em 1953, até sua morte, em 1980. Na avalanche de lançamentos que comemora o centenário de nascimento de um dos mais influentes pensadores franceses do século 20 e que inclui o inédito sobre Flaubert publicado na serrote 21, os três dão suas versões, muito particulares, daquele que decretou a morte do autor e que hoje não raramente é celebrado mais por sua persona do que por sua obra.

Roland Barthes (1915 – 1980)

A começar pelo título, L’amitié de Roland Barthes é, dos três, o que mais promete e menos entrega – em poucas palavras, um truque editorial daqueles. Philippe Sollers (1936) evoca o amigo de forma preguiçosa, fazendo seguir um texto laudatório inédito de outros já publicados como introdução a cartas e cartões de Barthes. Talvez porque o assunto principal do livro seja menos o autor de O prazer do texto do que o próprio Sollers. Por sua autorreferência, me lembra sempre a anedota do célebre publicitário brasileiro que, tendo passado metade de um jantar em torno de seu próximo umbigo, diz ao interlocutor: “Já falei muito de mim. Agora fala você de mim.”

Os dois se conheceram no tempo heróico do estruturalismo. Autor do surpreendente Mitologias, Barthes era estrela em ascensão. Sollers, protótipo de enfant gâté no competitivo meio intelectual parisiense, trabalhava na Seuil e criou, na editora, a Tel Quel, revista porta-voz da turma, especializada nos textos voltados sobre si próprios, esfuziantes em volutas retóricas que pretendiam refundar a língua. Naquela altura, ambos comungaram utopias e dividiram combates, apesar do perfil pouco militante de Barthes.

Ainda que o título sugira a homenagem de um amigo a outro, o livro é, na verdade, a descrição da amizade e da admiração que Barthes nutria por ele, Sollers, e por sua mulher, Julia Kristeva – com quem lançou este ano Du mariage considéré comme un des beaux-arts, um inqualificável livro de “conversas” dos dois sobre sua longeva relação. Mas L’amitié… entrará para as antologias como peça clássica da autorreferência, que se torna ainda mais escandalosa pela dissimetria com Sollers escritor, livro generoso que Barthes lançou em 1978, contribuindo decisivamente para firmá-lo como o grande nome que nunca foi na literatura francesa.

A avareza afetiva de Sollers vai de par com a intelectual. É exemplo da primeira este trecho sobre sua ascendência sobre Barthes: “Eu sou, no fundo, o único heterossexual que teve, neste ponto, o benefício de representar alguma coisa para Barthes.” Da segunda, basta a incontinência superlativa para definir todos o livros de Barthes, muitos dos quais ele, Sollers, foi o primeiro a ler e a perceber a genialidade, claro. Não falta ainda o clichê mais clichê de Montaigne sobre a amizade (“porque era ele, porque era eu”) e a cena dramática em que, ao telefone, recebe a esperada notícia da morte do amigo – Barthes foi atropelado e agonizou por um mês no hospital.

Em L’âge des lettres, Antoine Compagnon (1950) mostra um real esforço de reminiscência, incorporando à narrativa as necessárias lacunas, hesitações e contradições implicadas no perfil de alguém tão próximo. Em 1974, ele era um jovem e promissor engenheiro quando começa a frequentar os seminários de Barthes na École Pratique des Hautes Études. As discussões, naquela altura em torno dos temas que resultariam em Fragmentos de um discurso amoroso, só aceleraram a mudança de rumos de sua vida. Em pouco tempo ele publicava O trabalho da citação, originalmente a tese de doutorado orientada por Kristeva, e tinha Barthes como um de seus amigos mais próximos.

Construído romanescamente, o relato de Compagnon se passa entre a lembrança de uma caixa com as cartas que Barthes lhe endereçou – daí o título A época das cartas – e a decisão de doá-las à Biblioteca Nacional, estimulado precisamente pelas comemorações do centenário. O tempo é o da memória, e a admiração que expressa não é incondicional – como, aliás, não o são as admirações sinceras. Compagnon é um aluno que segue seu mestre divergindo dele, é aquele que não esconde o desconforto quando, na célebre Aula, que marcou a posse de Barthes no Collège de France, Barthes declara, um tanto para épater a plateia, que a língua “é fascista” – “ela [a frase] me surpreende porque contraria tudo o que aprendi com ele”, escreve.

Companheiro de infalíveis jantares semanais, nomeado pelo próprio Barthes organizador do célebre Colóquio de Cerisy em sua homenagem, Compagnon traça um retrato desta amizade num ponto bem demarcado entre a cumplicidade intelectual e afetiva, ponto este que eventualmente excluía a intimidade. Desconhecia, por exemplo, que depois de deixar Barthes em casa, à noite, depois de seus encontros, o amigo voltava a sair em busca dos michês de Saint Germain. Só o soube com a publicação de Incidentes, livro póstumo e polêmico, em que Compagnon vê como “vagamente medíocre” a revelação do segredo de polichinelo que era a homossexualidade do amigo. Não o aflige, e isso fica claro, qualquer componente moral e tampouco a “revelação em si, mas a qualidade dos relatos”.

Titular de Literatura Francesa Moderna e Contemporânea no Collège desde 2006, tendo hoje a mesma idade que o amigo ao morrer, Compagnon se pinta demasiadamente humano. Conta ter se “vingado” de Cioran, numa resenha, pela revolta que o tomava com a morte do amigo e diz de sua vergonha com a publicação de Diário de luto, em que Barthes, referindo-se a ele como A.C., observa suas tentativas de amenizar pela palavra “luto” a dor profunda que sentia com a morte da mãe.

São especialmente comoventes, narradas com mão de escritor, as visitas a Barthes no mês de agonia que se sucedeu ao até hoje misterioso atropelamento, perto do Collège de France, que terminou por matá-lo. “Ele de forma alguma renunciou à sua recuperação”, afirma Compagnon, afastando a hipótese de que ele teria se deixado atropelar em meio a uma depressão profunda. No último encontro, entubado, Barthes apenas chorava, “lágrimas de criança, lágrimas de criança doente, de criança perdida, de criança que, acho, não queria morrer, mas tinha se conformado em não viver mais”.

É quando termina essa história que começa La septième fonction du langage, romance de Laurent Binet (1972) que não deixa dúvidas da provocação numa espécie de “chamada” acrescentada à sobrecapa da edição francesa: “Quem matou Roland Barthes?”. Binet parte da mesma ideia que lhe rendeu o Goncourt de 2010 com “HHhH”, a narrativa ficcional de um fato real (naquele caso, o assassinato do líder nazista  Reihard Heydrich, neste, a morte de Barthes). Em vez de fazer um romance histórico clássico, de pura reconstituição e potencialmente kitsch, em ambos os livros ele cria um narrador autoconsciente que, pela ironia impiedosa, propõe um jogo divertido e inteligente.

A partir do atropelamento de Barthes, o policial Jacques Bayard, que não faz a menor ideia de quem seja o morto e tampouco de que se trata a tal semiologia que o fez famoso, recruta um professor de Nanterre, Simon Herzog, como uma espécie de consultor que vai guiá-lo pelo mundo intelectual francês. A hipótese que logo se aventa é que Barthes foi assassinado por ter consigo uma cópia da “sétima função da linguagem”, que vai além das seis estabelecidas pelo linguista Roman Jakobson e que consistiria na capacidade ilimitada de persuasão. A trama, já suficientemente mirabolante, ganha tintas políticas pelo fato de, antes do atropelamento, Barthes ter realmente almoçado com o então candidato socialista à presidência da França, François Mitterrand.

Philippe Sollers e Julia Kristeva, personagens já conhecidos de nossa resenha, são também estrelas no elenco inventado por Binet: são vaidosos (mais ele do que ela), sedentos de poder (mais ela do que ele) e abertamente ridículos (ambos).  Sartre faz uma ponta, velho e desligado do mundo, num canto do Café de Flore, meio gagá como Lacan, que entra mudo e sai calado de um jantar ao lado de sua jovem namorada. Abordado nas investigações, Foucault reage foucaultianamente – “Me recuso a ser localizado pelo poder!” – antes de protagonizar uma cena em uma sauna gay. Cercado por uma coleção de chapéus, Deleuze fala deleuzianamente sobre… tênis. Para se disfarçar, Bernard-Henri Lévy, o BHL, usa camisa preta (ele sempre está de branco) e, em Bolonha, Umberto Eco come e bebe como um sátiro. Mas há também Tzvetan Todorov, Jacques Derrida, Hélène Cixous, Camille Paglia (segundo o narrador, uma mistura de Cruela Cruel com Vanessa Redgrave) e até Louis Althusser com Helène, sua mulher, pouco antes de estrangulá-la (e uma hipótese ficcional de mau gosto para o crime, na única escorregada do autor).

Por um lado, trata-se da mais longa piada interna que já li nos últimos tempos – e que realmente diverte quem já se aventurou, como este que vos digita, por estes autores e nestas águas. Por outro, faz um bom e irreverente retrato de toda uma geração intelectual, acerto de contas sempre necessário e saudável de uma tradição intelectual com ela mesma. O diabo é que a grande maioria dos que conhecem as referências de Binet raramente tem o humor necessário para divertir-se com seus retratos impiedosos. Há, por exemplo, uma transa deleuziana impagável: em meio a descrições, digamos, minuciosas, o casal troca considerações sobre “corpos sem órgãos”, “rizomas”, “agenciamentos” e “máquinas de guerra”, num pastiche de conceitos de chorar de rir.

La septième fonction du langage não é antiintelectualista como pode parecer. De alguma forma, presta um tributo às dimensões do que, nos meios universitários internacionais, passou a ser conhecido como a French Theory, denominação que tem o seu quê de produto, puro e simples. Mas Laurent Binet dissocia, como deve ser, homenagem de vassalagem e, com seu humor anárquico, diz a dimensão de seus personagens e sua importância para ele. Mais do que um pretexto, a morte de Barthes é uma espécie de senha para desmistificar uma geração cuja importância se reitera até mesmo em um livro como esse – livro inimaginável no Brasil intelectual, tão restrito e cioso que é de suas paróquias.

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