Epitáfio

Colunistas

11.02.15

Alguns amigos me disseram que Birdman, de Alejandro Iñárritu, era “contra tudo isso que está aí”. Birdman concorre aos Oscars de melhor filme, melhor roteiro e melhor diretor, entre outros. Por “tudo isso que está aí”, meus amigos entendiam o mundo das celebridades, das mídias sociais, da frivolidade e da superficialidade. O que meus amigos não entenderam (e talvez já não tenham os instrumentos nem o repertório para entender, porque vivem nesse mundo) é que Birdman é “tudo isso que está aí”.

Cena do filme Birdman

No filme, um astro de Hollywood, consagrado como super-herói de um desses blockbusters de ação, decide fazer teatro sério (na Broadway!) e adaptar o conto já clássico de Raymond Carver, “Do que estamos falando quando falamos de amor”.  Carver faz parte da melhor tradição do realismo americano, que tem em Tchekhov seu modelo originário, mas que, nesse meio-tempo (e no meio disso tudo que está aí), acabou reduzida a algumas regras mercadológicas tão absolutas quanto primárias e obtusas, como a que diz que literatura só é boa quando os personagens têm credibilidade psicológica e parecem de carne e osso.

Daí ser tão curioso que os personagens de Birdman sejam todos postiços. Eles correm, gritam, choram, têm crises existenciais e profissionais (sobretudo profissionais) numa velocidade histérica e num embate de falas afiadas que mais parecem ter saído de algum curso básico de retórica, ao ritmo de uma sonoplastia jazzística incessante, que por sua vez não deixa nenhum tempo morto, nenhum vazio, nenhum espaço para a reflexão (como já escreveu José Geraldo Couto neste mesmo blog). Porque se parássemos pra pensar, poderíamos perceber que Birdman é muito menos autêntico do que os blockbusters hollywoodianos de super-heróis que ele pretende criticar. 

Embora pareça estar falando de morte, ali a morte (assim como a vida) não entra, não cabe. Quando precisa afinal encará-la, Iñárritu recorre à fórmula surrada de um realismo mágico que suas origens latinas autorizam aos olhos americanos. Mas o que Birdman tem a contrapor aos super-heróis de Hollywood são apenas autômatos que se expressam por tiradas espertas (ou grotescas, dependendo do ponto de vista), com a frequência de quem está condenado à velocidade dos filmes de ação. Não adianta dizer que o filme é crítico a tudo o que está aí, porque no fundo, assim como os personagens, o cineasta já não consegue se diferenciar do que o cerca. Por mais desesperado que ele esteja ao se dar conta de que o verdadeiro cinema de autor está vivo e pulsante em outro lugar, e por mais que gritem e se debatam seus personagens, “Birdman” ainda é parte de tudo o que está aí, com a desvantagem da impostura, de querer passar pelo que não é. Quem estiver à procura de um filme crítico e inteligente sobre o mundo das celebridades, das mídias sociais, da frivolidade e da superficialidade tem muito mais chances de encontrá-lo em Acima das nuvens, de Olivier Assayas. 

Poucos dias depois de ver o filme de Iñárritu, de passagem por Nova York, fui à Broadway assistir à remontagem de Um equilíbrio delicado (1966), de Edward Albee, na qual Lindsay Duncan, a atriz que em Birdman interpreta uma implacável crítica de teatro, faz o papel da irmã alcoólatra de Glenn Close. Assim como Birdman, a peça de Albee também se propõe a falar da morte (e do medo ancestral da morte) com ambições filosóficas, mas dentro de um conservadorismo (ajustando o chamado teatro do absurdo à Broadway) que a caretice da remontagem só faz acentuar. Diferente de Birdman (que é aparentemente mais rápido, mais enérgico e mais atual), mas de uma forma equivalente, é como se o próprio teatro estivesse morto, vítima de seus maneirismos e de suas convenções.  

A algumas quadras dali, no Guggenheim, está em cartaz (até 3 de maio) “Silence”, uma retrospectiva do artista conceitual japonês On Kawara, morto no ano passado, aos 81 anos. Em 1966, Kawara começou a pintar uma série de quadros (as “Date Paintings”, também chamadas “Today Paintings”) que ele só iria interromper um ano antes de sua morte. A ideia era simples e consistia em pintar uma tela por dia, representando a data da pintura em letras brancas sobre fundo monocromático. Se não conseguisse terminá-la no mesmo dia, On Kawara a destruía.

As “Today Paintings” de On Kawara

Na retrospectiva, as “Today Paintings” ocupam em sequência cronológica toda a espiral de seis andares do museu, entre amostras de outras séries, como a dos cartões-postais enviados pelo artista em viagem a amigos e galeristas – e carimbados com a informação da hora em que ele despertara naquele dia – ou a dos telegramas com mensagens do tipo: “ainda estou vivo”. Tudo na obra de On Kawara gira em torno de um vazio que é o próprio artista representado pela  ausência, o que faz do Guggenheim, com seu vão central, o lugar ideal para uma retrospectiva póstuma que é também uma imensa instalação e um epitáfio.

As informações são obsessivamente coletadas e representadas (cada dia da vida do artista; a hora em que acordou naquele dia; o que leu; quem ele encontrou etc.) mas nenhuma revela nada sobre ele. As datas compõem um conjunto opaco. Tudo diz respeito ao registro da vida do artista, mas não há intimidade nem psicologia, não se sabe o que ele pensou nem o que sentiu em nenhum desses dias. Não há aparentemente nenhuma subjetividade, só a constatação objetiva de uma existência que já não é. A própria obra cria a ausência que ela deveria preencher.

O princípio das “Today Paintings” é um paradoxo: cada quadro é pintado como um esforço de guardar o dia, mas o espectador só poderá vê-lo quando o dia já tiver passado. No seu silêncio e na sua aparente tranquilidade zen, as telas são a tentativa desesperada de registrar o presente que a representação torna imediatamente passado. Elas são uma corrida contra o tempo, a impossibilidade da representação.

Nas pinturas de On Kawara, a realização da obra é o contrário da suposta intenção do artista. Mais que isso, a obra só se realiza pelo seu fracasso. É o paradoxo de uma arte que é ao mesmo tempo vida e morte e que as convenções de Birdman ou da remontagem de Um equilíbrio delicado, tentando encobrir e preencher toda falta com uma verborreia inócua, já não lhes permitem compreender.

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