Fernando, o classicista

Literatura

02.09.11

Talvez seja hora de falar de meu amigo Fernando. Conheci Fernando quando ele contava 18 anos, recém havia ingressado no curso de Letras e seus principais interesses eram Calvino e Eco. Eu tinha 23 anos, cinco a mais que ele, e pressenti que o rapaz viria a se tornar um grande leitor. Logo nos tornamos amigos e passei a indicar leituras a ele. Convenci-o da urgência de ler Thomas Pynchon, se possível em inglês. Falei de Foster Wallace, Vila-Matas, Joca Terron, Don DeLillo, Ali Smith. Falei de metaficção, pós-modernismo, romances experimentais. Ele foi, pouco a pouco, assimilando minhas indicações. Gostava de alguns (Ruído branco, de Don DeLillo), detestava outros (O passado, de Alan Pauls). Insisti para que ele lesse, também, teoria contemporânea: Derrida, Lyotard e todo aquele pessoal que os professores chamam de pós-estruturalistas, mas que eu prefiro chamar de turminha do barulho. Logo, Fernando passou a descobrir autores contemporâneos por conta própria. Investiu a fundo em Coetzee e acabou me transformando em um entusiasta do sul-africano.

Foi assim por uns dois anos. No entanto, como toda história verídica de amizades, houve um período de afastamento. Na distância, algo aconteceu, algum estalo ocorreu na cabeça de Fernando, de modo que, quando me dei conta, o rapaz havia se transformado em um classicista.

Veja bem: aprecio Cervantes e Shakespeare tanto quanto qualquer outro leitor. Todavia, a literatura contemporânea sempre foi uma espécie de bandeira minha. Qual não foi o meu choque, então, ao descobrir que agora o meu amigo estava obcecado por Sêneca e Homero e não demonstrava o menor interesse em ler mais nada da literatura produzida nos dias de hoje no Brasil?

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A nova posição de Fernando me trouxe o eco de uma pergunta que escutei, certo dia, em um debate. Uma moça na plateia perguntou a um jovem autor brasileiro: “Por que ler o que está sendo lançado hoje em dia? Há tantos livros incríveis que foram publicados quinhentos anos atrás! Não tenho tempo de ler todos os livros do mundo, então preciso escolher bem. Não é melhor buscar os clássicos, que têm mais chances de serem bons, do que me arriscar com livros contemporâneos desconhecidos?”.

A pergunta da mulher desnorteou não apenas o jovem autor como todos os presentes no debate. Por que, afinal, ler literatura contemporânea? A primeira resposta que surge em minha cabeça diz mais respeito à minha formação de leitor do que às minhas opiniões enquanto escritor: porque a literatura contemporânea está mais conectada com o espírito do nosso tempo, com nossas questões atuais, com nossas formas atuais. Pois literatura contemporânea não é apenas colocar um iPad na mão da personagem: é articular uma prosa com um estilo condizente com nosso tempo, e, ainda assim, um estilo irremediavelmente ligado à tradição literária. Não faz mais sentido – assim creio – escrever um romance como se estivéssemos no século XIX, ignorando a existência de todas as vanguardas modernistas.

Uma definição muito mais elaborada do que é ser contemporâneo, podemos furtar do ensaio O que é o contemporâneo (que fica muito mais interessante se lemos o título no original em italiano com sotaque roubado da novela Passione e gesticulando como Brad Pitt em Bastardos inglórios: Che cos’è il contemporaneo?), do filósofo Giorgio Agamben. Neste texto, Agamben aponta que “ser contemporâneo” não se trata de viver plenamente em seu tempo, mas sim de estar levemente defasado em relação a ele. Além disso, contemporâneo é aquele que enxerga não apenas as luzes de sua época, mas também os recantos obscuros.

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E, no entanto, definir o contemporâneo não justifica, de modo algum, os motivos para ler literatura contemporânea. Afinal, Agamben buscou este conceito justamente para explicar a importância de “ser contemporâneo” dos mais antigos livros. E nada impede que meu amigo Fernando retruque: Kafka continua contemporâneo para mim. Machado continua contemporâneo. Cervantes continua contemporâneo. E assim por diante, até chegar a Homero. Toda a literatura que se tornou “clássica” ganhou este status por sobreviver ao teste do tempo.

Fernando pode ser ainda mais incômodo e dizer: “Não vou ler o escritor brasileiro X só porque ele usou a estrutura de um blog para compor o seu romance”. E ele pode adicionar: “Ser contemporâneo não é um valor em si”. Esse será o momento no qual me desesperarei e ficarei sem argumentos. Então, caminharei até a minha estante, puxarei um tijolão do Thomas Pynchon da prateleira e afirmarei: “Leia. Por quê? Porque é bom pra caramba”.

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