Imbatível ao extremo

Música

04.10.12

Há dias que não me sai da cabeça um pequeno trecho de uma música de Jorge Ben. Tem a ver com esse poder que as canções têm, o poder de concentrar significado num espaço mínimo de tempo. É aquela frase dita daquela maneira – e que fica depois girando em loop na mente, em eterno ritornelo nos ouvidos da memória. No pequeno trecho ao qual me referi, Jorge grita desesperado, com a voz rouca, falhada, “mãe, eu vendo bananas, mãe!” – enquanto o violão se movimenta freneticamente, desencontrado do ritmo geral, como se quisesse se libertar de tudo aquilo. Depois completa, “mãe, mas eu sou honrado, mãe!”. A passagem é estranhamente comovente. Tem algo de cômico, de trágico, e também de profundamente afirmativo. É isso: a música de Jorge Ben é pura afirmação. É alegria filtrada em meio a um monte de coisa ruim. Ela emana força, movimento realizador. É sempre uma “volta por cima”. Só ele poderia transformar um “Vendedor de bananas” num tipo que reivindica e afirma sua honra, sua glória (“pois vendendo bananas eu também tenho o meu cartaz!”). Fosse esse tema passado para outro compositor qualquer, e teríamos talvez um retrato indulgente e melancólico do pária que perambula pelas ruas gritando o seu ridículo pregão: “olha a banana, olha o bananeiro”. Ou quem sabe a caricatura maldosa e politicamente incorreta de um pobre coitado. Mas o vendedor de bananas de Jorge Ben não é nada disso. Já saiu da posição de coitado há muito tempo. Provavelmente está voando “numa nave espacial doirada” com “forro de veludo rosa”, ele com a bela Magnólia. E junto com eles está o Homem da gravata florida, o Namorado da viúva, a Barbarella e a Palomaris, o Charles Anjo 45 e seu filho (Charles Jr.), Hermes Trismegisto, Cassius Marcelo Clay, Santo Tomás de Aquino, Comanche, Zumbi, Fio Maravilha e Umbabaraúma. Pairando sobre tudo e todos, São Jorge, o santo guerreiro – o “Imbatível ao Extremo” que dá título ao novo documentário (em áudio) da Rádio Batuta. Como é possível que na lira de um mesmo compositor convivam – de forma tão fantasiosa e livre – personagens e temas tão distantes? É fácil perceber como tudo isso deixou os tropicalistas encantados. Jorge Ben é uma viagem alucinada (ou alucinante?). Ele não tá nem aí. Sai misturando referências de Dostoiévski a Rilke com frases colhidas na rua, e tudo isso vira uma canção de rádio, que logo cai na boca do povo. Tudo isso, no fim, vira alegria.

http://www.youtube.com/watch?v=i_ojoqQ8dHo

Mas Jorge Ben está muito longe de ser apenas um apanhado aleatório de temas e personagens diversos. Na verdade, tudo isso – alquimia, futebol, heróis, malandros e mulheres – é unificado pela força de seu estilo pessoal. Tudo vira Jorge Ben. E há muita coisa por trás de sua música. É misterioso ver o modo como tradições bárdicas ancestrais nos falam através dele. Elas estão no jeito de cantar, de tocar violão, no modo de compor e de conceber a canção. Jorge virou do avesso a Bossa Nova. Com sua meia dúzia de acordes e seu violão-tambor foi logo tachado, por críticos “sofisticados”, de primitivo. E ele até pode ser considerado primitivo. Mas não nos termos pejorativos que esses críticos equivocados lhe impingiram (tendendo ao “simplório”), mas sim na intensidade de energia, na expressividade aberta e exuberante, no apelo ao corpo, na visão mítica, na intuição direta e na liberdade vertiginosa da criação. Primitivo tanto no sentido da violência alegre e saudável do selvagem quanto da pureza e do encantamento da criança.

É tão imensa a riqueza de temas e assuntos suscitados pela obra de Jorge Ben que admira que ele praticamente não tenha sido contemplado por críticos e ensaístas da canção. Apesar do sucesso mundial e das vozes que se ergueram para exaltar a sua grandeza (Caetano, Gil, Mautner, Tárik, Tatit!), Jorge Ben tem sido amplamente subestimado pela história de nossa música. Ou então ele representa um mistério tão insondável que as pessoas sequer ousam se aproximar. Talvez, muito simplesmente, faltem ferramentas para falar dele. Seja lá como for, seus discos dos anos 1960/70 – onde se concentra o foco do documentário da Rádio Batuta – permanecem como pontos luminosos no horizonte da música e das artes no século XX. Aquilo é criação em grau máximo. Coisa de gênio. Um gênio que nasceu no Rio de Janeiro, filho de um estivador e de uma dona de casa descendente de etíopes. Que é Flamengo e tem uma nêga chamada Teresa. Que tem consciência de suas origens e é capaz de reconhecer a nobreza de um vendedor de bananas.

Imbatível ao extremo pretende ser uma porta de entrada para o maravilhoso universo de Jorge Ben.

* Paulo da Costa e Silva é o coordenador da Rádio Batuta.

* Na imagem que encabeça o post: Jorge Ben Jor (Acervo Tinhorão)

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