Até pouco tempo atrás, a biografia era um gênero que quase não me interessava. Minhas únicas leituras na área tinham sido decepcionantes: nunca esquecerei a frustração que foi encarar a extensa biografia de François Truffaut escrita por Antoine de Baecque e Serge Toubiana. Talvez até seja um ótimo livro, mas, em 2003, me pareceu uma obra drenada de sentimentos, destituída de qualquer carinho pela pessoa radiografada. A impressão que restou é que os autores tiveram acesso a uma quantidade absurda de informações, e decidiram forrar o texto de documentos, datas e excertos de cartas nunca antes publicadas. Em algum lugar naquele emaranhado de dados estava enterrada a figura do cineasta violentamente apaixonado pela sétima arte, que se perguntava o que era mais importante, o cinema ou a vida.
Meu interesse pelo gênero ressurgiu no ano passado, quando comecei a pesquisar a vida de Orson Welles para tentar escrever um romance. Uma simples busca no Google (e na Amazon) por biografias do diretor me fez deparar com uma avalanche de diferentes livros sobre ele. Os títulos não poderiam ser mais variados: Rosebud, Orson Welles: a biography, Orson Welles, In my father’s shadow: a daughter remembers Orson Welles, What ever happened to Orson Welles?: A portrait of an independent career e Citizen Welles: a biography of Orson Welles. Não duvido que existam mais algumas disponíveis no mercado, que outras, escritas quando o diretor ainda estava vivo, tenham sido esquecidas etc. É uma vida (e uma carreira) que não se esgota em um só livro.
Toda biografia é uma obra de ficção, diria (ou insinuaria) algum filósofo francês cujo nome agora me escapa. A biografia é um recorte, e todo recorte escolhe o que irá mostrar. A biografia, além disso, não se restringe à listagem de fatos e datas, ela depende de interpretação.
De certa maneira, pode-se, com base no título da biografia, especular sobre o modo que o biógrafo lida com o objeto analisado. Foi o que me ocorreu hoje de manhã, olhando para o tijolão na estante intitulado James Joyce, de Richard Ellmann, livro que é considerado por muitos como “a melhor biografia já escrita” e que, por falta de tempo, acabei abandonando na metade. Não há dúvidas: é preciso de muita coragem para dar um título desses para uma biografia. Ao batizar o volume apenas com o nome do biografado, Ellmann (ou o editor – nunca se sabe quem deu o título final) sugere que aquele representa o texto definitivo: a vida do indivíduo está condensada naquelas centenas de páginas. Tal ousadia também está presente em outra biografia considerada exemplar: Scott Fitzgerald, de Andrew Turnbull.
Compare estes títulos com a recentíssima biografia que D. T. Max escreveu acerca do escritor norte-americano David Foster Wallace: Every love story is a ghost story: a life of David Foster Wallace. Traduzindo toscamente: toda história de amor é uma história de fantasmas: a vida de David Foster Wallace. Esta não é uma tradução precisa – a escolha por batizar a biografia de “a life”, em vez de “the life”, sugere que o que está sendo narrado é “uma vida”. Uma vida, um ângulo, uma interpretação. Muito distante da pretensão de compor o texto final e definitivo. “Ainda bem”, provavelmente diria Daniel Pellizzari, que se decepcionou com o livro de D. T. Max e afirmou, no site Good Reads, que “[Every love story is a ghost story] na melhor das hipóteses serve como estrutura para uma biografia mais carnuda, inteligente e cuidadosa”.
Afinal, pretensões à parte, não há texto definitivo. Rosebud, uma das muitas biografias de Welles, usa este título em alusão à palavra que, em uma leitura simplista de Cidadão Kane, dá sentido a toda a vida do magnata Charles Foster Kane. Porém, nenhuma vida é assimilável. Não li ainda Rosebud, mas dificilmente incorporará o (triste) ângulo da filha de Welles, Chris, que em In my father’s shadow revela o lado narcisista, mulherengo do pai ausente que era Orson. Como diria o jornalista Thompson, protagonista oculto de Cidadão Kane, “Acho que nenhuma palavra pode explicar a vida de um homem. Não. Acho que Rosebud é apenas outra peça do quebra-cabeça – uma peça faltante”. Acredito, meu caro Thompson, que as peças são infinitas.
* Antônio Xerxenesky é redator do site do IMS.