La Luna, a senhora das emoções

Cinema

01.02.13

“O cinema, como uma estória de detetive, nos permite vivenciar sem perigo para nós todos os excitamentos, paixões, e fantasias que devem ser reprimidos em uma era humanística.”

C. G. Jung

Introdução: Psicanálise e cinema

Já se disse por diversas vezes que cinema e psicanálise nasceram juntos, por volta de 1895, se quisermos situar uma data. E mesmo que Freud ou Jung nunca tivessem tido um interesse especial por cinema, desde então esses dois campos de atividade estiveram sempre juntos. A intimidade do cinema com a psicologia profunda aparece nos filmes carregados de conteúdo psicológico, como também em críticas de cinema com abordagem bastante psicanalítica. Mesmo em filmes sem uma influência tão evidente da psicanálise, os conteúdos inconscientes estão presentes nas telas, os dramas íntimos inconfessáveis, aspectos que não queremos ver de nós mesmos e tudo o mais que constitui a alma.

Ir ao cinema é quase como ir a uma consulta com o analista. É curioso que um termo essencial para a psicologia, a projeção (de conteúdos psicológicos, base do fenômeno da transferência) também é importante para o cinema, quando uma máquina projeta na tela imagens em movimento. Enquanto a projeção em psicologia é o fenômeno pelo qual conteúdos do inconsciente são projetados no outro, no cinema as imagens são projetadas na tela e a platéia por sua vez projeta nessas imagens suas próprias imagens subjetivas. Trata-se de uma dupla projeção que ocorre em vários níveis entre o diretor do filme, o autor do roteiro e os expectadores.

Um outro aspecto importante a ser lembrado é que as imagens projetadas são sempre simbólicas, e não apenas semióticas.  Isto é, as imagens na tela têm sempre um polissemia de sentidos, alguns mais conhecidos, outros desconhecidos. Sentidos que cada expectador vai dar a um símbolo do filme. Isso porque um símbolo é sempre a melhor expressão possível de algo relativamente desconhecido que não pode ser expresso de forma melhor. Nesse aspecto, as intenções conscientes do diretor não esgotam todos os significados da imagem. Isso é particularmente válido para um diretor tão criativo como Bernardo Bertolucci, que ao lado de uma estética apurada tem uma fina sensibilidade para os símbolos.  Em La Luna, diversos símbolos estão presentes, símbolos que não só obedecem as intenções conscientes do Diretor, mas que são também capazes de mobilizar os conteúdos do inconsciente da platéia.

Bertolucci e La Luna

Bernardo Bertolucci declarou em entrevista que o filme La Luna aconteceu depois de ele ter analisado durante vários anos e de forma exaustiva a imagem do pai. E resolveu adentrar o problema da mãe. A textura básica do filme é aparentemente simples: uma mãe dominadora, Diva operística, um falso pai fraco, que logo morre, o pai biológico aparece, também é fraco e dominado por sua vez por sua mãe. Mas a abordagem de Bertolucci é complexa, sutil, densa, altamente psicológica. Entramos em contato com uma sequência de mulheres fortes e dominadoras, e de homens ausentes, sensíveis e dominados. Mulheres solares e homens lunares. Há uma inversão no acento no domínio da luz, quem ilumina e quem é iluminado. Em ambiente assim, Joe, o jovem, é sugado para o mundo incestuoso do materno.

Bertolucci consegue aproximar o delicado tema do incesto de forma poética, ajudado por sua elevada sensibilidade e refinado senso estético já presente em outros filmes. Os belos trechos das óperas verdianas que compõem o roteiro ajudam a realçar esteticismo ao conjunto e contrabalançam a crueza dos temas do incesto e drogadição.

Joe, o menino, fica sem referência masculina em um ambiente agitado entre dois países. Na Itália, não conhece a língua e os costumes, nem mesmo os esportes locais como é enfatizado em certo momento. Caterina, a mãe americana estudou o bel canto na Itália e depois voltou a Nova York. Na Itália, teve um caso amoroso com Giuseppe, o pai de Joe. Entretanto, Joe não sabe da existência de seu pai verdadeiro. Convive com Douglas, companheiro de Caterina em Nova York julgando ser ele seu pai.

As cenas iniciais

As cenas iniciais são de grande densidade simbólica e contêm as sementes para todo o desdobrar da estória. Bertolucci, obedecendo à forte tradição poética em sua família – seu pai foi um importante poeta e ele próprio dedicou-se à poesia antes de ser cineasta- desenvolve um roteiro permeado de analogias simbólicas, verdadeiras rimas imagéticas(*). As imagens mostram Caterina ainda jovem, com Joe muito pequeno. Ainda participam também o pai Giuseppe e sua mãe. O bebê entorna um pouco de mel pelo corpo, a mãe sorve o mel pelo corpo do bebê, em cena com dose de erotismo incestuoso que reaparecerá mais tarde. Em certo momento, enquanto Giuseppe e Caterina dançam twist ao som de Pepino di Capri, o novelo de lã se desenrola. A criança nua caminha chorando, desconsolada enquanto os pais dançam. O novelo se desfaz, puxado pelo garoto. O menino perde acesso à mãe, os pais dançam eroticamente. A avó, mãe de Giuseppe, segura Joe no colo tentando apaziguá-lo. Pouco depois, a mãe anda de bicicleta pela estrada, o bebê na grade da bicicleta, a belíssima lua dominando a cena idílica.

A linguagem de Bertolucci é onírica e lança mão de diversos símbolos. As cenas de início se baseiam em recordações da infância de Bertolucci. O cineasta, ainda muito criança, “em torno dos dois ou três anos”, passeando com sua mãe de carro, vê por trás dela a imagem da lua. Essa cena reaparece no filme, quando o carro é transformado em bicicleta, compondo uma cena de grande lirismo, com a lua cheia ao fundo, belíssima, e o rosto da mãe em primeiro plano.

 

A lua

A lua dá seu brilho luminoso a momentos cruciais do filme do princípio ao fim. Na belíssima cena inicial, lua e mãe se confundem. A lua é o arquétipo do materno e o inconsciente, senhora das marés, dos líquidos e dos humores. Na memória de Bertolucci, um ponto de partida inicial para o filme, a superposição da mãe pessoal e da mãe arquetípica, a lua, já se evidencia. Ela reaparece na cena em Roma, na qual Joe está no cinema com Ariana, uma amiga de sua idade, prestes a iniciar com ela um jogo sexual. Na tela, Marilyn Monroe, dublada em italiano, canta em inglês. Uma confusão de línguas para Joe que fala de sua confusão de afetos. No momento em que Joe irá iniciar-se na sexualidade, o teto do cinema se abre e a lua surge, mágica, poderosa. A libido retorna às suas origens nas águas maternais. A mágica do encontro amoroso inicial e da iniciação sexual se desfaz.

A lua permanece também nos cenário de óperas que compõe o roteiro. Na re-estreia de Caterina em Roma, Joe assiste extasiado ao final do primeiro ato de Il Trovatore: dois homens duelam e a personagem feminina principal encenada por Caterina, os domina, soberana. Uma mulher forte dominando o mundo do masculino. Joe aplaude sua mãe encantado, fascinado. E ao final, a lua aparece poderosa no cenário das termas de Caracalla nos ensaios para Il ballo en Maschera. Constitui assim o princípio e o fim, um círculo que se fecha. Há um momento, entretanto, no qual a lua faz sua presença de forma bastante particular: quando Caterina, pressionada pelo mergulho de Joe no mundo da heroína, resolve procurar o verdadeiro pai de Joe. O momento é de belo entardecer, Caterina se aproxima da casa de Giuseppe e chama por ele. O sol se põe, sol e lua estão ao mesmo tempo no céu, uma conjunção de opostos que estavam separados, um presságio de salvação para Joe. Bertolucci lança mão do simbolismo dos astros para descrever um processo psíquico.

 

O fio condutor e o Labirinto

O fio de lã no início do enredo é explorado por Bertolucci com grande sensibilidade. O fio reaparece em imagem análoga, quando em momento de grande desamparo, deambulando pelas ruas de Roma, Joe desenha uma lista, uma marca nos muros, assinalando o caminho percorrido como se procurasse a saída de volta. Termina em local abandonado, um prédio labiríntico, onde pode se injetar com a droga. (Aliás, a temática do labirinto reaparece em diversos momentos do filme; a belíssima casa romana de Caterina, com seus pátios e jardins internos, torna-se, na verdade, um labirinto de morte para Joe). Os gregos antigos representaram o próprio destino humano pelo fio. As três Queres são as deusas do destino, Cloto tece o fio, Láquesis separa o fio, Átropo, corta o fio, determinando a nossa morte. Mesmo Zeus devia obediência às deusas do destino, diziam os gregos. No caso de Joe, a redescoberta do pai o coloca em contato com o fio de seu destino, o fio que havia perdido. O fio reaparece ao final, o mesmo fio de Ariadne que ajudou um dia o herói Teseu a descobrir o caminho para fora do labirinto após matar o minotauro. Joe ao entrar na casa de Giuseppe se depara com o mesmo fio e o contempla como que perdido em uma lembrança antiga. Começa nesse momento da história a redescobrir o caminho de saída do labirinto do incesto e da prisão no inconsciente.

 

A deusa-mãe

A mãe é a origem de tudo, o inconsciente é anterior à consciência, e a mãe rege o inconsciente e é a senhora e origem da vida e da morte. A lua, a droga heroína, Caterina, o mel derramado sobre a criança, todas essas instâncias têm o simbolismo do oceano-maternal. Caterina opta por personificar, com seu narcisismo extremo, a grande mãe como morte, a lua negra, Lilith. Ela é incapaz de dar atenção e amor a Joe, fato fundamental para sua sanidade. Em certo momento do filme, fica-se sabendo que ela não se lembra mesmo da data de aniversário de Joe, não se dá conta da presença dele, de sua carência e abandono. No papel de Diva operística, os elogios do público afastam Caterina cada vez mais de seu papel de mãe.

Distante de sua mãe, em profundo abandono, Joe vaga pela cidade e busca afeto em Mustafá um traficante marroquino. Uma amizade homoerótica surge, revelando talvez as influências de Pier Paolo Pasolini sobre Bertolucci. (Lembremos que Bertolucci começou no cinema como assistente de Pasolini e sempre teve profunda admiração por ele. Em diversos momentos da filmografia de Bertolucci, Pasolini se faz presente).

Enquanto Caterina não sofre sua própria crise pessoal, não se torna capaz de ajudar Joe. Ao descobrir a dependência de Joe por heroína entra em profunda crise, diz que está disposta a parar de cantar, como confessa à sua amiga Marina. Só então procura colocar Joe em contato com seu pai verdadeiro.

 

As figuras masculinas

As figuras masculinas são muito frágeis, lamentavelmente frágeis em todo o filme, se nos detivermos com atenção em todos eles. Primeiramente Douglas, o pai adotivo, não parece exercer grande influência sobre Joe. Fica evidente que ele é inteiramente dominado por Caterina, figurará como acompanhante dela em próxima viagem de apresentações. Não tem maior importância e sua morte no início do filme é mais sentida por Joe. (Posteriormente ele irá se queixar disso com a mãe antes de ela lhe comunicar que seu pai biológico é Giuseppe).

O próprio Giuseppe é frágil e dominado pela sua mãe. Ao ser perguntada por Joe por que ela e Giuseppe se separaram, Caterina diz que ele não gostava que ela cantasse e “amava demais a sua mãe”. Uma afirmativa que trás um doloroso insight a Joe, que se vê parecido com o pai, repetindo mesmo o pai, com sua ligação patológica com a mãe. Giuseppe só consegue sair de seu imobilismo ao final do filme, quando atua como o pai que interdita o incesto. O tapa no rosto de Joe simboliza a instauração da figura paterna como limite, organizador da consciência.

Outras figuras masculinas que aparecem de forma rápida, como o amigo de Caterina que sempre chega atrasado  (na apresentação em Roma e no ensaio em Caracala), expressam enorme fraqueza. Marina, a amiga de Caterina, chega a dizer em sua última aparição: “Você não entende nada mesmo”… (isto é, do que está acontecendo com Caterina, seu enorme problema com o filho adicto). Diz também que ele “está sempre atrasado…” Certamente a figura paterna está sempre atrasada para Joe, e daí ele ter se perdido no submundo das ruas e da droga. Aliás, perambulando em seu abandono, Joe encontra também nas ruas outra figura masculina negativa, um pedófilo que inicia com ele um jogo de sedução em um bar. Joe executa uma dança bem coreografada, simbolizando talvez suas defesas últimas para lidar com aquela situação extrema. (Em diversos momentos, Bertolucci lança mão do nonsense para quebrar momentos de grande tensão, quase insuportáveis. A figura paterna falida aparece de surpresa na figura de um médico. Este aparece para atender Joe em crise grave de abstinência da droga. Caterina está desesperada. Espera-se o médico clássico, paternal, que trará segurança e orientação, aliviando o medo e a incerteza. O episódio termina com o médico dizendo que Caterina não lhe deve nada, e retira do bolso uma máquina Polaroid e fotografa a deusa-diva Caterina. O masculino novamente se submete à grande deusa.

A única figura masculina preservada em toda a trama é o antigo professor de canto de Caterina. Quando esta o visita, recolhido em sua aposentadoria e velhice, ainda mostra uma vitalidade de forma mágica. O professor aparece em mítica viagem de Caterina ao seu passado, onde também visita a casa de Verdi. O Mestre de canto e Verdi dominam como foco de interesse de Caterina, que reage com grande agressividade narcísica quando Joe diz não se interessar por aqueles valores simbolizados pela casa onde Verdi morou.

As roupas e os sapatos

Bertolucci joga com o simbolismo das roupas para expressar questões identitárias e psicológicas. Quando Caterina parte em busca de Mustafá, o traficante, para tentar afastá-lo de Joe usa as roupas do filho tentando uma aproximação. Há aí uma confusão de papéis. As roupas expressam os papéis sociais, a persona. Em situação incestuosa, mãe e filho estão com papéis misturados. Caterina é incapaz de exercer um papel de mãe organizadora e doadora de afeto para seu filho, mas antes se mistura com ele, incapaz de estabelecer limites no espaço incestuoso.

O simbolismo das roupas reaparece na busca do pai. Revelado a Joe seu pai verdadeiro, ele parte em busca do referencial paterno. Ao encontrá-lo em seu trabalho como arte-terapeuta de crianças, há uma simbólica troca de sapatos. Joe calça os sapatos do pai, este é obrigado a calçar os sapatos de Joe. Quando Joe o segue em direção à sua casa, as roupas de Joe são iguais às de seu pai, paletó e calças idênticos e de mesma cor. Joe imita o caminhar e gestos do pai. Chegando à casa de Giuseppe, há a troca simbólica de sapatos. Embora, o rapaz não seja aceito de imediato, novamente a influência negativa da mãe de Giuseppe que pressiona para que Joe não tenha entrada na casa – há um ritual simbólico de troca de sapatos, troca de energia, um processo de assimilação da energia do pai. As roupas representam uma nova atitude para o mundo, o social que só a figura paterna é capaz de plasmar no filho. Os sapatos têm também simbolismo específico, são fálicos, e associados a uma inserção no mundo, pois eles falam de como pisamos a realidade. É a figura paterna que vai plasmar a entrada de Joe no social.

A morte e o renascimento sob a luz da lua

O final do filme é de grande beleza e ilustra a constelação final do pai, elemento ausente durante todo o filme. Desde o início a falta do pai predomina, ilustrada pela morte de Douglas e pelos homens frágeis. Está em questão uma verdadeira relação dual simbiótica. Só ao final temos o verdadeiro ritual de passagem, do matriarcado ao patriarcado, da lua para o sol. Bertolucci escolheu para ilustrar o processo a ópera Un Ballo in Maschera, de Verdi, mas poderia perfeitamente ter escolhido A flauta mágica, de Mozart. Em vez da magnífica lua cheia, teríamos a Rainha da Noite, em vez do Rei Ricardo, talvez o Sacerdote Sarrastro, o arquétipo do pai. De qualquer modo, na ópera de Verdi estão diversos símbolos importantes, como as máscaras que são retiradas, representando que os papéis verdadeiros serão assumidos e os personagens deixarão de cumprir um jogo neurótico.

Todos os personagens principais do filme se reúnem na platéia e no palco de Caracalla para expressar a grande mudança. Joe está lá, aplaudindo o tão esperado encontro de Caterina e Giuseppe. Ariana aparece para lhe dizer que Mustafá partiu, expressando a ideia de que a droga está superada.

Uma volta ao princípio

Desejamos terminar relembrando a memória de infância de Bertolucci que deu origem ao filme: o passeio com o rosto da mãe e a lua ao fundo, quando o cineasta tinha dois a três anos. Não será de estágio de consciência pré-edípico, bi-pessoal, anterior ao pai, de que trata o filme? Mas também não é esse estágio no qual o homem criativo, a pessoa de gênio, transita com frequência? Bertolucci frequentou sempre com desenvoltura os espaços lunares da criação e com esse seu La Luna resgata o mundo do materno lunar, com suas possibilidades criativas e seus perigos.

(*) Agradeço à cineasta Rose La Creta a lembrança das rimas imagéticas em Bertolucci.

* Walter Boechat é analista Junguiano, diplomado pelo Instituto C. G. Jung de Zurique. Escritor, autor de Mitopoese da psique (ed. Vozes).

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