O corpo estranho de Joaquin Phoenix

No cinema

01.02.13

Freddie Quell (Joaquin Phoenix) é, antes de tudo, um corpo torto que vive trombando com as quinas do mundo. Ex-combatente no front asiático na Segunda Guerra, alcoólatra e obcecado por sexo, filho de uma interna de hospício, ele simplesmente não se encaixa na pujante sociedade norte-americana do pós-guerra – que aparece bem composta e sorridente nos retratos de família que ele faz por um tempo numa loja de departamentos.

Como enquadrá-lo? O mestre, de Paul Thomas Anderson, parece levantar esta questão, não para respondê-la, mas para mostrar o fracasso das tentativas, primeiro da ciência (se é que se pode chamar assim a rudimentar psicologia comportamental do início do filme) e, depois, da religião travestida de ciência, sintetizada na figura do “Mestre” Lancaster Dodd (Philip Seymour Hoffman).

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Aqui cabe um parêntese. Master, em inglês, não significa apenas “mestre”, mas também “patrão”, “senhor”, “amo”, “professor”, “chefe”, e é todo esse espectro semântico que cobre o personagem do fundador e líder da “Causa”, seita que representa no filme a famigerada Cientologia.

Corpo desgovernado

Pois bem. Temos em O mestre esses dois polos: o corpo desgovernado (Quell) e o espírito supostamente em equilíbrio (Dodd). Quell se torna ao mesmo tempo uma cobaia dos métodos experimentais do “Mestre” e uma prova viva da pertinência de suas teorias.

O modo como Thomas Anderson encena essa curiosa relação tem a ver, em parte, com o estilo de cinema que já conhecemos de sua obra pregressa (Boogie nightsMagnóliaSangue negro): uma narrativa lacunar, elíptica, inconclusa, cheia de pontos sem nó. No novo filme, esse andamento um tanto abrupto, em que algumas cenas parecem começar já na metade e ser cortadas antes de terminar, é de certa forma acentuado, como que a mimetizar o movimento trôpego, espasmódico e vacilante do protagonista.

Não é um filme hollywoodiano convencional, nem de longe. Além de sonegar ao espectador uma identificação fácil com os personagens, a montagem omite os habituais códigos que delimitam claramente os terrenos da “realidade”, do sonho, da memória e da alucinação. Tudo é apresentado no mesmo plano de representação, com a mesma densidade. Por isso, num sarau elegante promovido pelo “Mestre”, quando todas as mulheres de repente aparecem nuas, demoramos um momento para ter certeza de que se trata de uma alucinação do protagonista e não de mais uma bizarrice do anfitrião. O mesmo acontece na cena admirável da conversa telefônica de Quell no cinema vazio, na qual não vemos a tela, mas entendemos pelos diálogos que se trata de um filme de Gasparzinho, ou seja, muito significativamente, de um fantasma.

Deslocamentos espaço-temporais

Os deslocamentos espaciais e as passagens de tempo são igualmente inusuais. Num dos mais belos desses saltos, Quell foge de um grupo de trabalhadores rurais asiáticos depois que um deles morreu envenenado com uma beberagem sua. De repente, ele está num cais, ao lado de um barco iluminado e em festa. É ali que ele entra. O espectador não tem os nexos temporais nem espaciais que permitiriam entender como o personagem foi parar ali e quanto tempo ele levou para isso.

Esse conjunto de estranhezas compõe um filme esquisito e estimulante, que não é uma acusação à Cientologia, nem propriamente uma denúncia social, mas simplesmente a trajetória de um gauche, o retrato de uma inadequação. O próprio filme se apresenta como um corpo estranho e torto no pasteurizado cinema industrial da atualidade.

Se Sangue negro lançava mão basicamente da metáfora (da acumulação cega de capital) e Magnólia tendia para a alegoria (da desorientação do indivíduo urbano contemporâneo), em O mestre a figura de linguagem dominante parece ser a metonímia. As viagens marítimas, por exemplo, são figuradas não pela imagem de um navio singrando o oceano numa determinada direção, mas apenas pela pequena porção de água agitada pelo motor do barco. Mais do que a história de um país, de uma categoria social ou de uma ideia filosófica, trata-se da história de um corpo – um corpo torturado, incompleto, que só encontra plenitude (ou pelo menos repouso) quando em intercurso com outro corpo, como mostra a bela sequência final.

Em tempo: falou-se do duelo de atuações entre os extraordinários Phoenix e Hoffman, candidatos ao Oscar, mas é preciso dizer que nenhum deles se sobrepõe narcisicamente ao que o filme quer mostrar. Não é um “filme de atores”, como se disse meio depreciativamente, mas um filme de autor, se é que este conceito ainda vale alguma coisa.

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