Bandeira: itinerário da altivez

Literatura

04.02.13

Muitos poetas importantes foram também ótimos prosadores. Mas pouca gente se detém nesses outros volumes de suas obras completas. Ocorre que às vezes é justamente neles que se escondem os nexos mais esclarecedores, além de variadas surpresas.

Não precisamos ir até os famosos cadernos de notas de Valéry. Bastaria pensar no ensaio “O pintor da vida moderna”, de Baudelaire. Ou nos textos autobiográficos de Marina Tsvetaeva. Ou nas memórias de Manuel Bandeira, alinhavadas no seu Itinerário de Pasárgada – que agora volta às livrarias (pela editora Global, com apresentação de Carlos Newton Júnior).

Susan Sontag observou que grande parte da prosa de poeta “dedica-se à emergência triunfal do ?eu’ do poeta”. Nesse triunfo, o “eu” cotidiano, mais prosaico e menos místico, “é sacrificado cruelmente”.

Mas o que acontece quando esse “eu-poeta” modela sua imagem exatamente a partir do “elemento de humilde cotidiano”, que retoma em suas memórias? O que acontece quando a poesia reclama de antemão o prosaico, para se desencastelar e afastar de seus versos a poeira livresca do passado?

“A prosa de poeta é, sobretudo, sobre ser poeta”, escreve Sontag. “E escrever essa autobiografia requer uma mitologia do ?eu'”.

Sem desmentir a ensaísta americana, Bandeira embaralha de novo as cartas do jogo. O poeta sexagenário pretende narrar seu “itinerário em poesia”. Mas revela que, no seu caso, o espaço do mito era a rua e o próprio caminho prosaico da vida.

Mais do que reatar os laços entre o escrito e o vivido, o Itinerário de Pasárgada mostra que o privilégio do cotidiano humilde foi uma escolha altiva – uma ousadia no contexto do modernismo das primeiras décadas do século XX. Essa altivez deve ser acrescentada ao aspecto oposto, que sobressai no livro mais importante sobre a poesia de Bandeira – o clássico Humildade, paixão e morte, de Davi Arrigucci Jr., publicado em 1990.

Ninguém espere encontrar no Itinerário de Pasárgada um relato das experiências e das opiniões privadas de Manuel Carneiro de Souza Bandeira Filho, pessoa física, escritor e professor, nascido no Recife em 1886 e morto no Rio de Janeiro em 1968. Trata-se da autobiografia de uma “persona”. A palavra, que vem do latim, significa “máscara”: o artefato por meio do qual o ator aparece em público.

É a “persona” de Manuel Bandeira, o tísico, criado pelo pai desde menino para ser arquiteto, mas que, antes de formado, adoeceu com a implacável tuberculose e se tornou poeta: um pé na vida, outro na morte. Ser de exceção no meio dos outros, pobretão e solitário, para ele as alegrias comuns e as mulheres bonitas que desfilavam pela cidade eram “inacessíveis praias”.

Sua biografia mais genuína é “a vida inteira que podia ter sido e que não foi”. Ainda assim, Bandeira morreu aos 82 anos. A vida inteira que de fato foi seria uma outra estória – que o autor se absteve de revelar ao público.

Isso não significa que o “Itinerário de Pasárgada” seja um livro “falso”. Bandeira criou uma “persona” à sua imagem e semelhança. Mas é necessário considerar a parte do fingimento, do artifício e da ficção no percurso das memórias de um artista.

Em 1954, quando o livro foi lançado, Bandeira já era o decano dos poetas brasileiros. A encomenda viera de dois jovens escritores, Fernando Sabino e Paulo Mendes Campos, que pretendiam publicar o texto numa revista que nunca chegou a ser impressa. O projeto foi encampado então por João Condé, que dirigia o “Jornal de Letras”.

Ao recontar seus passos, Bandeira retraça em prosa narrativa a automodelagem construída em versos por décadas a fio. O poeta relembra, por exemplo, a sentença que ouviu de um médico, no sanatório de Clavadel, na Suíça, quando jovem, quarenta anos antes: “O sr. tem lesões teoricamente incompatíveis com a vida”. E essas lesões foram se transformando em poemas. “Continuei esperando a morte para qualquer momento, vivendo sempre como que provisoriamente”.

A frase publicada em 1954 contrasta com o que, em privado, o escritor havia escrito em carta de 1923 para o amigo Mário de Andrade: “Hoje sou ironicamente, sarcasticamente tísico”. O contraste mostra que o Itinerário faz parte de um projeto literário bem menos modesto e mais elaborado do que percebemos se nos deixamos levar, comovidos, pela imagem de “eu poeta” nele projetada.

Dois aspectos cruciais do Itinerário ressaltam bem a altivez que trabalhava por trás da humildade bandeiriana. O primeiro tem a ver com a discussão de segredos técnicos da poesia, recorrente em muitas páginas, quando o autor comenta suas experiências formais, contesta “certos ridículos do pós-parnasianismo” ou narra a “conquista difícil” do verso livre.

Aparece aí, com toda a força, o Bandeira erudito, profundo conhecedor da poesia e da poética do Ocidente, em várias línguas. É o escritor que, naquele mesmo ano, publicou também uma coletânea importante de crítica literária, De poetas e de poesia. E que, em 1956, redigiu para a Enciclopédia Delta Larousse um detalhado verbete intitulado “Versificação em língua portuguesa”.

A maestria técnica parece estar em contradição com o segundo aspecto altivo do Itinerário. É uma espécie de teoria da inspiração a partir do subconsciente, às vezes relacionada a reminiscências da infância, levando o poeta a “uma atitude de apaixonada escuta”. Sua poesia seria, assim, uma forma de psicanálise.

Bandeira tenta convencer o leitor de que escrevia “numa espécie de transe ou alumbramento”. É como se pretendesse, com o Itinerário, reforçar ainda mais o efeito de espontaneísmo despertado por seus poemas – apesar (ou por causa) de seu notável apuro técnico. Sobre o famoso “Vou-me embora pra Pasárgada”, diz ele, em tom de modéstia afetada: “Não construí o poema; ele construiu-se em mim nos recessos do subconsciente”.

O memorialista se mostra como um membro da família dos “poetas que encontram a poesia”, no dizer de outro pernambucano, João Cabral de Melo Neto. Este se inscrevia no grupo oposto: o dos poetas “para quem a composição é procura”. Para Cabral, toda a força da sua grei “é feita de mil fracassos, de truques que ninguém deve saber, de concessões ao fácil, de soluções insatisfatórias, de aceitação resignada do pouco que se é capaz de conseguir e de renúncia ao que, de partida, se desejou conseguir”. Se for assim mesmo, não estará no “trabalho de arte” – e não na inspiração – a verdadeira humildade?

“Confesso que já me vou sentindo bastante arrependido de ter começado estas memórias”, diz Bandeira, logo nas primeiras páginas do Itinerário. Parece que ouvimos sua voz rascante – aquela voz áspera que ele revelou nas gravações de poesia feitas pouco depois para o selo Festa, de Irineu Garcia. E que também seria ouvida no curta-metragem O poeta do Castelo, de 1959, dirigido pelo então estreante Joaquim Pedro de Andrade.

“Tosse, tosse, tosse” – escreve o poeta, no poema “Pneumotórax”. Assim como, diante das câmeras, Bandeira tosse em plano geral e depois espera o reposicionamento da câmera e dos refletores para tossir mais uma vez em “close”. “A doença tornara-me paciente, ensinara-me a humildade”, conta ele, no Itinerário.

Joaquim Pedro não deixou de perceber a revelação de um ator. “A alegação de que ele levou vantagem porque conhecia muito bem o seu personagem e tinha o ?physique du rôle’ não desmerece o seu trabalho”, escreveu o cineasta.

Sem nenhuma modéstia, a estrela brincou, na sua crônica do Jornal do Brasil, comentando a estreia do filme: “Hollywood não sabe o que está perdendo na sua ignorância da minha existência”.

E o filme era um documentário – tanto quanto o Itinerário de Pasárgada é um livro de memórias.

* Sérgio Alcides é professor da Faculdade de Letras da UFMG

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