Rebolando na caixinha de fósforos

Correspondência

12.06.13

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Rose di Primo

Rose di Primo

Estimado Reinaldo Moraes, Rei da Cocada Preta, Conde de Porangatuba, Marquês da Ribeira do Caju, Senhor da Vila de Piratininga, Meu Querido Ranchinho dos Latifúndios da Avenida Paulista, em fé de bom acolhimento e honra, saúdo Vossa Excelência Textual:

Nego, eu já desconfiava que, ao topar essa correspondência, ia ter de rebolar, rebolar, rebolar. Mas não imaginava o quanto.

Para facilitar las cosas, proponho uma trilha sonora: Nega Luzia (Wilson Baptista e Jorge de Castro), se possível na interpretação de Paulinho da Viola, de 1973, no LP Nervos de aço, gravado nos antigos estúdios cariocas da Odeon (ou Fodeon, como diziam os músicos mal pagos que, festa acabada, iam para casa a pé). A fazer justiça: este samba foi gravado pela primeira fez por Cyro Monteiro, o Formigão, em 1956. Eis a letra:

Lá vem a nega Luzia

No meio da cavalaria

Vai correr lista lá na vizinhança

Pra pagar mais uma fiança

Foi canjebrina demais

Lá no xadrez

Ninguém vai dormir em paz

Vou contar pra vocês

O que a nega fez

Era de madrugada

Todos dormiam

O silêncio foi quebrado

Por um grito de socorro

A nega recebeu um Nero

Queria botar fogo no morro

O centenário de nascimento de Wilson Baptista – assim com o de Cyro Monteiro – transcorre neste ano da graça de 2013. Espero que se fale mais dele, em comparação com a pouca tinta e papel gastos para lembrar o Formigão – com exceção deste nosso hospedeiro virtual, que convidou Nei Lopes para fazer um show na sede do Instituto Moreira Salles, aqui no Rio, já antológico, com músicas que marcaram a carreira do cantor mestre do sincopado e da caixinha de fósforos.

(Aqui, de súbito, interrompe-se o fundo musical de Nega Luzia e entra a vinheta com os Anjos do Inferno: “O cordão dos puxa-sacos cada vez aumenta mais, mais, mais”).

Wilson também era chegado numa caixinha de fósforo. Aliás, compunha nela. Pespegaram no crioulo nascido em Campos a pecha de malandro, de vagabundo, até de marginal, de “quem fuma uma erva do Norte”; confusão habitual e tão brasileira entre autor e personagem (você tem alguma ideia do que seja isso, Reinaldo, passou por experiência semelhante?).

Wilson Baptista trouxe para o samba a linguagem e as brincadeiras dos malandros de sua época, excelente cronista que era. Não dispensava no trajar o terno branco ou a camisa de seda que cega a navalha, o sapato duas cores cara-de-gato, o toque elegante do cachecol caído nos ombros. Mas trabalhou paca. Um levantamento impreciso – aguardo, com ansiedade, a biografia escrita pelo pesquisador Rodrigo Alzuguir – deixa seu repertório com não menos de 720 músicas.

E ainda teve aquela história da polêmica com o Noel. Quer saber? Eu acho que o Wilson ganhou a polêmica! Como dizem as adolescentes no Twitter, “pronto, falei”. Podem tacar pedra!

Mas, antes, vamos à canjebrina. O que é uma canjebrina? Era o que nos perguntávamos, enquanto cantávamos o samba, na nossa última vez em Paraty. Lembra? Evidente que não éramos tão ingênuos de não ligar o nome à pessoa. Mas você, escritor flaubertiano, escravo do “mot juste”, queria a definição exata da danada da tisana.

O Houaiss é avaro: “aguardente de cana, cachaça”. E admite desconhecer a etimologia. Gasta mil vezes mais espaço para falar de “canjerana”, uma espécie de pau-de-santo que, obviamente, não nos interessa. O Aurélio é ainda mais sintético: “cachaça”. Será que a vida é tão simples assim? Não haverá nenhum mistério oculto na dita canjebrina? O que então teria levado a pobre Luzia – antes tão pacata, boa filha, mãe amorosa, esposa exemplar – a transformar-se num Nero?

Tanto o Caldas Aulete quanto o Cândido de Figueiredo, em minhas edições de papel, moitam a respeito. Googlando a bel-prazer, tem-se esta acepção: “Cachaça ou qualquer outra bebida forte. É tudo aquilo que envolva álcool, que possa ser tomado e que te deixe absolutamente fora de si, sendo considerado, na linguagem popular de algumas regiões, como ?cangibrina'”. Eita, chute! É melhor ficar por aqui, meu Rei, pois googlando um pouco mais acaba-se por descobrir que existe uma “Dança da Canjebrina”.

Voltemos, pois, à sua carta, que, de tão simpática para com este vosso criado, ó Conde de Porangatuba, trouxe eflúvios perfumados às minhas narinas. Gostaria de não deixar sem resposta, ou ao menos sem eco, algumas questões – como se diz mesmo? – “pontuais” que a missiva levanta (eis um bom nome de personagem, Missiva Levanta, mas só indicado para obras com mensagem). Seguem minhas observações pontuais embora atrasadas:

Aqui, à roda da mansarda dos Costa e Silva, não há serras elétricas de cortar metal, betoneiras nem britadeiras, sequer um bate-estaca, os quais fazem hoje a tua aflição aí em São Paulo. Mas, no Rio de Janeiro como um todo, o desmonte é geral. O bota-abaixo é lei. A parafernália tipo Dubai domina. Os incêndios suspeitos se sucedem. Transações imobiliárias são acertadas em surdina. Os aluguéis triplicam. O metro quadrado vai à estratosfera. O trânsito em nó. Os buracos te engolem. A poeira te alimenta. Uma simples ida aos copos, no fim de tarde da Rua do Ouvidor, te obriga a pular tapumes.

O casario inteiro da Rua da Carioca, tombado pelo Instituto do Patrimônio desde 1983, um conjunto arquitetônico protegido por legislação do Corredor Cultural, e onde está localizado o seu querido Bar Luiz, foi vendido a um banco. E certo Senhor X insiste em fazer do Aterro do Flamengo uma área só dele, particular e exclusiva. Tudo isso sob os auspícios do prefeito Valente de Saquê, que não faz por menos: se acha o novo Pereira Passos, e vestido de Pereira Passos quis sair no último Carnaval (infelizmente um aspone, à última hora, impediu o ridículo do alcaide).

Contra os superpoderes de empreiteiros e políticos, surgiu, nos céus da Guanabara-Gotham, apenas uma palavra, feia que dói: gentrificação. Tradução literal do inglês “gentrification”. O jornalista Sergio Augusto – que há poucos dias capitulou ao tuíte – sugeriu que a traduzíssemos para “aburguesamento”. Soa bem melhor, pois não?

Além disso, burguês todo mundo sabe o que é, ou ao menos sabia no meu tempo de faculdade. O ideal era se tivéssemos à mão um Balzac ou um Lima Barreto para nos mostrar o que ocorre nas estranhas da Mui Leal e Heroica.

Moro num terceiro andar (terceiro mesmo, sem garagem, prédio antigo) e, do meu escritório, ouço a encantadora alma da rua. As buzinadas, os xingamentos, as freadas que matam as velhinhas, os assobios na tarde e os gritos na noite, o latido dos perros, o tec-tec dos saltos altos na calçada, o comprador de ferro-velho, o pregoeiro dos caranguejos, o homem da pamonha, a música insuportavelmente alta e péssima dos carros com caixa de som e, a qualquer hora, o berro de “pega ladrão!”.

Tento fazer ouvidos moucos, mas nem sempre é possível. Escuto as conversas que rolam na banca de frutas, na barraca de água de coco e no tabuleiro de balas (tem das azedinhas do Dalton Trevisan, se quiser te mando). O tema dos debates quase sempre diz respeito ao comércio: “O mamão tá maduro?”. “Essa água tem um gosto esquisito… Será o canudinho?”. “Quero três Sonhos de Valsa e uma mariola”. Entre si, os comerciantes informais preferem gastar saliva comentando as últimas atuações do Vasco (um deles, o baleiro, se não me engano, tem ganas de matar o Roberto Dinamite).

Com essa algaravia na cabeça, sinto-me naquela página famosa de Flaubert, que, sendo literatura, antecede a montagem cinematográfica, a cena da feira agrícola, na qual Rodolphe Boulanger seduz Emma Bovary, enquanto o mundo continua a girar e a fazer discursos.

Reinaldo, chega mais perto para ninguém nos ouvir, vou confessar uma coisa. Não peguei a Leila Diniz.

Quando aquele maldito desastre de avião matou a musa do Pasquim e da Banda de Ipanema, em 1972, eu não tinha nem 10 anos. Você, felizardo, ainda deu um ósculo na Leila. Eu nada, nadica de nada, nem uma mísera casquinha. A mulher espetacular do meu tempo de garoto (detesto falar isso, “meu tempo”, e descubro que, com esta, já o fiz duas) era a Rose di Primo, que inventou a tanga – manja? aquelas duas tirinhas finas amarradas nos quadris e a calcinha puxada para cima? – para ir à praia de Ipanema de maneira mais confortável. Ela está viva e, parece, mergulhada numa trip cristã na Espanha.

Pouco importa. Na primeira vez que a vi, jogando vôlei de praia em frente à Montenegro e usando um biquíni cortininha, fui fisgado pelo peixão. A Rose di Primo apareceu “de com força” mais ou menos quando a Leila Diniz desapareceu, e eu, a essa altura, já era adolescente, capaz de cobardias no banheiro. Foi a modelo que mais fez capas na revista Ele&Ela, quatro ou cinco. Um dia, pedi a ela que me desse de recordação o copo de mate em que acabara de beber. Com um sorriso nos lábios, ela negou, disse que aquilo era porcaria. Coisa mais linda, meu Deus!

Você ainda me pergunta se “o amor dá pé”? Mas é lógico, bichão.

Gostaria agora de engatar com minhas aventuras vividas ao lado de Nelson Cavaquinho, mas, com o risco de enfadar você e o leitor acostumados aos brevíssimos textos da imprensa brasileira – fica para próxima carta.

E, aí, quando você vai me pagar aquelas brejas belgas?

Já confeccionou o bem bolado sarongue?

O que você está lendo de bom?

O que me diz, Casa Muniz? Ouvidor, 102.

Um beijo do seu parceiro e admirador,

Marechal Alvarenga

PS: Todas as mulheres do mundo, de Domingos Oliveira, não vive só de Leila Diniz. Como se não bastasse, no início do filme há um desfile das meninas mais belas e independentes da paróquia carioca na época: Marieta Severo, Vera Viana, Norma Marinho (uma das irmãs Marinho, mulatas dos shows de Carlos Machado), Ana Maria Magalhães, Maria Gladys, Tânia Scher, Márcia Rodrigues (a futura Garota de Ipanema do filme). Como diria o Eça, viva o femeaço!

PS 2: Flávio Migliaccio, grande ator em boa hora lembrado por você, na estreia dele nas telas, como protagonista do curta Um favelado, de Marcos de Farias, um dos episódios do clássico pré-Cinema Novo Cinco vezes favela, entra na porrada, e quem descreve os golpes certeiros é meu pai, de nome Alvaro também, que não seguiu a carreira de ator. Com sequências rodadas no Morro do Borel, o curta está disponível no YouTube.  O capanga de terno e tênis Conga que surge com 1m50s é o velho. Anos mais tarde, o filho de Flávio, cumprindo quem sabe uma vingança tardia, me despediu de um jornal moribundo.

* Alvaro Costa e Silva, jornalista desde 1988, trabalhou em vários jornais e revistas, como O Globo, Jornal do Brasil e Manchete. Atualmente colabora com o caderno Ilustríssima, da Folha de S. Paulo, com o Prosa&Verso, de O Globo, e com o portal de notícias IG.

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