Sui generis

No cinema

06.09.17

Que me perdoem os paranoicos anti-spoiler, mas é impossível falar sobre o filme chileno Uma mulher fantástica, de Sebastián Lelio, sem dizer que a mulher do título, Marina (Daniela Vega), não nasceu mulher, mas se tornou uma por força do seu desejo.

O tema da “identidade sexual” – esta expressão tão redutora – é introduzido de modo sutil no filme, e parece ser um problema muito mais para os personagens à sua volta do que para a própria protagonista.

Uma imagem muito bela sintetiza a ética e a poética do filme quanto a essa questão. Marina está deitada nua, de barriga para cima e pernas dobradas. Nós a vemos inicialmente de perfil, mas a câmera assume em seguida o seu ponto de vista, olhando para o vértice de suas pernas. Por um segundo, o espectador pensa: “Finalmente veremos se ela tirou o pênis ou não”. Digo “finalmente” porque o filme ameaçou algumas vezes mostrar essa região do seu corpo e no último momento “sonegou” a informação, frustrando a curiosidade voyeurística do público. E agora o que vemos entre as pernas de Marina é… um pequeno espelho redondo, mostrando seu rosto. Homem ou mulher, pouco importa: é Marina. Vale por um manifesto.

Mas não se pense que o filme idealiza o assunto, ou elude suas arestas dolorosas. Muito pelo contrário. Por onde passa, Marina faz vir à superfície as contradições e deformações profundas da sociedade em que está inserida (a chilena, mas poderia muito bem ser a brasileira).

E o mais notável, do ponto de vista da construção narrativa, é como esse desvelamento se dá quase sempre de modo lacônico, enxuto, sem os diálogos explicativos que costumam atulhar o cinema contemporâneo. Livrando-se da discurseira, o filme ganha em vigor e intensidade.

Um exemplo dessa economia expositiva se dá logo no início. Depois de vermos um homem de meia-idade (Francisco Reyes) recebendo uma massagem na sauna, um único plano o mostra numa sala de escritório diante de uma vidraça que dá para um galpão de tecelagem. Sem que se diga uma palavra, sabemos que ele é um empresário ou executivo do ramo têxtil. (Saberemos logo depois que esse homem, Orlando, é namorado de Marina.)

Ironia narrativa

Em outra cena rápida, um policial pede para ver o documento de identidade de Marina. Ao checar o nome no papel e olhar para a pessoa à sua frente, ele tem um momento de desconcerto. Ela diz simplesmente: “Está em trâmite”. Entende-se: o processo de mudança de nome e de gênero. Num filme vulgar, desses que não confiam na capacidade pensante do público, toda essa operação mental de dedução seria substituída por falas explicativas, somadas a um close do nome no documento e, de quebra, um discurso didático contra o preconceito.

Uma mulher fantástica estabelece com o espectador uma relação irônica, um jogo ardiloso. Há por exemplo uma certa chave (elemento tão presente na literatura psicanalítica e em tantas simbologias) que pode ou não solucionar um enigma, mobilizando palpites e expectativas e comentando quase de modo paródico a funcionalidade dos roteiros convencionais, em que cada objeto já anuncia o papel que cumprirá no enredo.

É dentro dessa relação de troca com o espectador que ganham sentido as primeiríssimas imagens que vemos na tela – as cataratas do Iguaçu, num filme que se passa todo na cidade de Santiago. Primeiro, um sentido diegético (palavra horrível, mas vá lá), já que o casal de namorados planeja passar férias lá; depois, um sentido inteiramente simbólico, que ilumina poeticamente a trajetória da protagonista. É, assim como o palco onde a cantora lírica Marina solta sua voz, o lugar do sonho, da vida que poderia ter sido – e que talvez ainda possa ser. Por que não?

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