La Luna à luz da crítica

Cinema

16.01.13

O Instituto Moreira Salles lança o filme La Luna, de Bernardo Bertolucci, como parte da nova coleção de DVDs IMS. Paralelamente ao lançamento, haverá uma mostra de filmes do cineasta, com pré-estreia do seu novo filme, Eu e você. Confira aqui a programação completa. Abaixo, José Carlos Avellar selecionou trechos que mostram como foi a recepção crítica de La Luna na época de sua estreia e depois do lançamento internacional.

Talvez seja possível dizer que, sem fases intermediárias, La Luna saltou de um quarto minguante, na primeira exibição, para a lua cheia, com a boa recepção no lançamento comercial na Europa e nas Américas.

Na estreia, em agosto de 1979, na 36ª Mostra Internazionale d’Arte Cinematografica di Venezia, sofreu uma recepção abertamente hostil dos críticos italianos: Gian Luigi Rondi (até o ano anterior diretor artístico do festival) abandonou a projeção no meio – “um horror!” – e outras explosões indignadas se espalharam pelos jornais no dia seguinte: um filme “com personagens de atitudes mesquinhas” (para Aggeo Savioli de L’Unità) de “um diretor demasiadamente pretensioso” (para Paolo Granzotto de Il Giornale) que “durante todo tempo faz psicanálise de si mesmo” (para Guglielmo Biraghi de Il Messagero).

Dois meses mais tarde, no lançamento na Espanha e na França, uma recepção entusiasmada. Diego Galán (El País, Madrid), presente na sessão de Veneza (“as vaias começaram muito antes do final da sessão”), comenta a reação dos críticos (“que falta de visão! Que estranhos somos!”) e assinala que “o diretor trabalha elementos melodramáticos à luz da psicanálise e de uma construção poética para desenvolver temas esboçados em seus filmes anteriores”. Jacques Siclier (Le Monde, Paris) sublinha “o refinamento estético e o soberbo estilo dramático dessa história de um impulso incestuoso entre mãe e filho adolescente”. Michel Young (Rouge, Paris) conclui: “este é um filme fascinante por jogar em dois níveis – a realidade cotidiano dos personagens e a ópera. Bertolucci empresta uma poética universal a uma cena melodramática”.

No ano seguinte, julho/agosto de 1980, a estreia no Brasil foi igualmente marcada por uma recepção favorável ao filme.

Ely Azeredo (Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 9 de julho de 1980) observa que “para um filme que começou no divã de um psicanalista, La Luna mostra-se surpreendemente livre do confessionalismo fechado em memórias e obsessões pessoais”. O roteiro, diz, embora “escrito em família, com a colaboração da mulher, Clare Peploe, e de um irmão do cineasta, Giuseppe, e marcado por coisas muito intimas (lembranças da terra natal, Parma; o gosto pelo melodrama e pela música de Verdi), escapa aos limites autobiográ­ficos”.

O comentário destaca a sequência inicial em que “a mãe dança um twist sensual com um homem cujo rosto não se pode ver nitidamente (e que tem um punhal ? imagem fálica ? na mão), e o bebê chora e se afasta, sem desprender-se do fio de lã do novelo que se desfaz. A ideia de um longuíssimo cordão umbili­cal é excessivamente óbvia para o objetivo de frisar o vínculo carnal que se prolonga além da primeira infância, a ligação edipiana. Mais importante que o filão edipiano (que se entrevê, também, na convivência de Giuseppe com sua mãe) parece-me a mutilação do princípio do prazer que vai tornando todos os personagens órfãos de suas próprias potencialidades. A mãe (Alida Valli) de Giuseppe conserva sua companhia, mas em con­templativa infelicidade. Giuseppe, ao que tudo faz supor, não queria o filho e, em sua carência, cerca-se de crianças: é professor de uma escolinha de arte. Caterina abandona Giuseppe e através da arte sublima até onde possível a sua sexualidade. Não tem ligação profunda com nenhum outro homem e se recusa (ou evita prender-se) à amiga (Veronica Lazar) que a ama. Joe, que se julga órfão após a morte do marido de Caterina, tem a revelação tardia da identidade do pai ? um fator a mais em seus impulsos de hostilidade em relação à mãe.

É um círculo de carências que se fecha, apesar do aceno de uma eventual solução quando os protagonistas se encontram nas ruínas dos banhos de Caracalla, em Roma. Apenas um aceno. Porque nesse local usado para espetáculos de ópera ao ar livre, ensaia-se no momento Un Ballo in Maschera, de Verdi. Artistas e espectadores, então, parecem intérpretes de uma encenação. Quando a mulher levanta o véu no palco e aparece o rosto de Jill Clayburgh, quando esta mulher canta, é válida a pergunta: estamos ante a personagem de Verdi ou ante a diva de Bertolucci?”

Rogério Bitarelli (também no Jornal do Brasil, 11 de julho de 1980) lembra: “Em Prima della Rivoluzioni, segundo filme de Bertolucci, realizado em preto e branco, há uma sequência em cor antecedida pela palavra magia na qual duas crianças escondidas num abrigo (a história se passa na Segunda Grande Guerra) olham uma fresta na parede e simulam que o retângulo luminoso está exibindo cinema colorido. Em La Luna a magia só existe também numa sequência, quando dois adolescentes veem cinema colorido com Marilyn Monroe, o arquétipo do erotismo construído pela engrenagem publicitária, enquanto descobrem as carícias sexuais. A proposta de Bertolucci não se esgota nestas imagens, mas há nelas uma pista para compreender os enigmas lunares e as transparên­cias operísticas desse filme. Assim como na guerra dos interesses político-econômicos, as crises existenciais buscam mecanismos simbólicos de fuga, que tentam nos desviar da realidade e criar uma vida paralela de seres mitológicos paternais (ou maternais). O filme aborda a existência inautêntica, o mito da felicidade material como fala despolitizada, deste eliminando a aparente inocência, revelando o seu fracasso. Ainda que em tom de final feliz disfarçado”.

Hélio Nascimento (Jornal do Comércio, Porto Alegre, 28 agosto de 1980) diz que os personagens de La Luna “carregam a dor de não pertencerem a nada, a nenhum lugar, de terem perdido algo essencial. A perda do pai representa algo mais do que a ausência de um ser humano. O pai de Joe tem o mesmo nome de Verdi e este, para Caterina, como fica expresso no belíssimo monólogo da protagonista diante da casa do compositor, representa para ela suas raízes, essencialmente o verdadeiro pai. Na volta à casa do velho professor, outro momento alto do filme, um instante de grande intensidade emocional atingido por Bertolucci – essa busca do pai é outra vez retomada. Mas se trata, evidentemente, de algo mais amplo ainda. O esplendor da arte verdiana representa um passado que entra em choque violento com uma realidade atroz, difícil de suportar (…) O tema visual da lua inicia e termina a narrativa e várias vezes é retomado: o cenário da primeira cena operística, a cena do cinema, quando o teto se abre, o desenho na escolinha de arte. A lua é essa mãe que só mostra ao filho uma face, mas que aos poucos vai revelando seu lado oculto”.

Aramis Millarch (O Estado do Paraná, Curitiba, 29 de agosto de 1980) resume num comentário entusiasmado: “um filme denso, adulto, belo – como devem ser as legítimas obras de arte”. Ivanildo César (O Estado de Minas, 30 de setembro de 1980) fala de uma realidade puramente poética: “os símbolos psicanalíticos são por demais óbvios para serem vistos como parte de uma imitação da vida. Joe e Ariana trocam as calças, Joe e Giuseppe trocam os sapatos e estão vestidos com roupas iguais. Esses símbolos só existem no nível poético: a luz azul e branca e as roupas brancas e azuis; o branco e o bege, o cinza e o branco nas roupas, sapatos, asfalto e construções antigas; o novelo branco, o giz umbilical, a bola amarela, verde e vermelha. Cores do sonho, da tristeza e da infância”.

Para Hugo Gomez (Jornal do Brasil, 11 de julho de 1980) nesse “mergulho no subconsciente à procura de lembranças da infância, Bertolucci abandona os temas políticos e sociais para fazer, com rara sensibilidade, uma analise psicológica da frustração humana. Todos os personagens básicos do filme sofrem de carência afetiva, que procuram sublimar ? no canto, no vício ? mas é retratada mais pungentemente na figura do filho. Num clima de danação menos sufocante que o de Visconti, de quem pode merecidamente assumir o cetro, mas com o mesmo requinte e apuro formal do realizador de Senso e de Os deuses malditos, Bertolucci se mostra um poeta da câmera, narrando com fluência e elegância incomparáveis, e empregando a ópera com extrema felicidade e feeling cinematográfico, sua história edipiana, sem resvalar para o melodrama ou o sensacionalismo – prova de que é o maior diretor da atualidade.

Sérgio Rizzo, num breve comentário (Folha de S. Paulo, 19 de março de 2006), observa que “quase 30 anos depois, La Luna sobrevive menos como gerador de incômodo e mais como um estudo radical das relações entre mãe e filho”. Lembra que “o detector social de escândalos aponta ?incesto’ desde o rumoroso lançamento do filme nos cinemas. À época, considerava-se que Bertolucci retomava o caminho polêmico de Último tango em Paris depois de um intervalo épico-comunista, 1900 (1976)”. A ideia do filme se encontra “já nas primeiras imagens, de ostensivo fundo freudiano. Primeiro, a mãe (Jill Clayburgh) lambe o mel que escorre pelo corpo do filho, ainda um bebê. Depois, o bebê chora desesperadamente ao ver o prazer da mãe em dançar, num belíssimo terraço à beira-mar, com ?outro’ – o pai, presume-se. Quando o filme os reencontra bem mais tarde, bebê transformado em adolescente (Matthew Barry), já não há o ?outro’, agora morto. Só os dois, perambulando pela Itália enquanto a mãe, atriz americana, estrela uma ópera de Verdi”. A nota conclui com um paralelo: “O tom é bem mais doloroso e sombrio do que em Sopro no coração (Le souffle au coueur, 1970), do francês Louis Malle, que também ambienta em cenário social burguês abordagem semelhante do tema – embora o que mãe e filho acabem fazendo ali tenha outra espécie de motivação e repercussão na vida de ambos. Malle fez um filme solar, radiante no final em seu prazer pela vida; Bertolucci dedica-se a quartos mais escuros, com sentido às vezes solene de tragédia”.

Quase ao mesmo tempo (em O Estado de S. Paulo), Luiz Carlos Merten concordava: “um filme denso. Bertolucci muitas vezes foi chamado de esteta – e acusado de fazer filmes mais voltados para o prazer dos olhos do que para a reflexão. Sexo e desejo, tratados psicanaliticamente, são temas essenciais de sua obra, mas ele nunca foi tão fundo como nesse retrato de uma mãe, cantora lírica, tão absorvida pela carreira que negligencia o filho – e o garoto viaja nas drogas”.

* Seleção de trechos por José Carlos Avellar, coordenador de cinema do IMS.

Veja também: depoimentos de Bernardo Bertolucci feitos em 1979, entre a primeira exibição no Festival de Veneza e o lançamento comercial na Europa.

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