Bertolucci à luz da lua

Cinema

16.01.13

O Instituto Moreira Salles lança o filme La Luna, de Bernardo Bertolucci, como parte da nova coleção de DVDs IMS. José Carlos Avellar, coordenador de cinema do IMS, criou uma montagem de depoimentos feitos por Bertolucci em 1979, entre a primeira exibição em agosto, no Festival de Veneza, e o lançamento comercial na Europa.

Um tabu fundamental

No ponto de partida de todos os meus filmes existe uma pequena ideia ?  indefinida, pouco mais que uma impressão ? como aqui: a fusão, na minha memória, do rosto de minha mãe com o da lua. Uma espécie de sonho. É a minha lembrança mais antiga. Lembrei sem entender muito bem o que significava. Fiz o filme para tentar compreender. Esse conteúdo autobiográfico está essencialmente no prólogo, na confrontação das duas imagens: a lua e a mãe. Mas é preciso dizer que a autobiografia é algo que jamais terminamos de compor; você joga sua biografia porta afora, ela volta pela janela.

Tudo está no prólogo. O resto do filme é o prosseguimento e a análise desse prólogo em que Joe presencia o que a psicanálise chama de cena originária: em vez da relação sexual entre pai e mãe temos uma dança, um twist, mas de qualquer modo uma cena originária.  Foi quase tudo descoberto na filmagem. No roteiro, era um sentimento. Lembro que existia uma indicação, “o bebê chupa o dedo de sua mãe”. No momento de filmar, dei-me conta que ao escrever a cena não tinha a menor ideia do que era “dirigir” um bebê! Ocorreu-me então botar um pouco de mel no dedo de Jill para atrair o bebê. O mel era tão doce que o bebê quase ficou sufocado. Imediatamente, fiz uma associação: o amor materno é tão doce e tão forte que pode asfixiar a criança. Lembrei-me de tudo o que tinha filmado até então e me dei conta de que a heroína era como o mel. É como se Joe, adolescente, tivesse uma compulsão: repetir uma experiência antiga, buscar o mel que asfixia, o amor maternal que pode matar. Só compreendi isso ao filmar o prólogo. Ao mesmo tempo, tinha necessidade de um algo para “mobiliar” o vazio de minha panorâmica que vai do bebê, que se afastava chorando para os braços da avó, até a mureta em que o casal dança a cena originária. Ocorreu-me então o fio do novelo de lã, ao mesmo tempo, o cordão umbilical entre a mãe e o filho e fio de Ariadne para a câmera.

Mas a lembrança do rosto de minha mãe e da lua foi também um álibi para fazer meu primeiro filme com uma mulher no papel principal. Até aqui, nunca tive coragem de mostrar uma mulher, de encarar uma mulher face a face em meus filmes. Em La Luna, pareceu-me importante mostrar uma mulher que se expressa, que expressa sua criatividade de maneira autônoma, sem a necessidade de se apoiar numa figura masculina. Caterina foi capaz de conseguir sua independência e teve de se justificar como mulher por meio das estruturas tradicionais da família – mas descobre na maternidade alguns problemas. Tentei enfatizar isso, por exemplo, na cena em que Caterina beija Joe sem qualquer motivo aparente e lhe diz: “Foi aqui que seu pai me beijou pela primeira vez“. Mais tarde, no quarto do hotel, ela vai ainda mais longe. Até então eu não sabia muito bem o que estava fazendo, se o incesto deveria ou não acontecer. Com grande coragem, Jill levou Caterina a um estado evidente de obsessão sexual, experimentado por Joe como uma crise ninfomaníaca, a ponto de provocar uma violenta reação dele à imagem da mãe.

Os primeiros contatos físicos entre a mãe e filho, no fim da refeição, a cena do garfo, são de sofrimento e ternura. Em Caterina, os gestos são ditados pelo instinto maternal. Na segunda vez, é diferente. Já estamos na dialética do impulso incestuoso. No quarto, alcançamos o limite extremo. Para essa cena eu não tinha nada definido no roteiro. Pedi a Jill para improvisar. Ela foi longe em seus gestos, na intensidade, na exultação. Mas entendeu muito rapidamente, e eu também, que a cena não poderia terminar numa relação sexual – isso é incompatível com a moralidade adolescente. Levada adiante, a cena teria resultado num desmoronamento da personagem. Corríamos o risco de sacrificar a imagem maternal e assim destruir a personagem. E aí percebi que o incesto me interessava como uma fantasia. A pulsão incestuosa é uma etapa obrigatória nas relações entre mãe e filho, um tabu fundamental do qual não podemos escapar, mas em geral esta pulsão fica no inconsciente. Pode acontecer que ela seja um fantasma perfeitamente consciente em ambos, mas um fantasma que só me interessa no nível da fantasia. No momento em que realmente acontece, torna-se algo mais – perversão, violência.

Joe está à procura de sua identidade – inclusive sua identidade sexual. Ele balança entre a hetero e a homossexualidade. A cena do café ilustra esse frágil equilíbrio. Ele dança, é a nostalgia pela América; ele dança, e é também uma forma de seduzir o homem que poderia ser seu pai.

Acho que todos os homens, muitos deles inconscientemente, tiveram fantasias incestuosas com suas mães. Essas fantasias raramente se concretizam em relações sexuais, mas elas não estão menos presentes. Se Joe ama a sua mãe sexualmente, é possível que Giuseppe tenha considerado Caterina, sua mulher, como outra mãe. Lembremos o que Joe pergunta para Caterina sobre seu verdadeiro pai ? “Por que se separaram?” – e a resposta de Caterina, como num impulso, “Ele estava apaixonado pela mãe!”

O Édipo moderno

A produção é italiana, mas a distribuição está nas mãos de uma major americana, a Fox. Mas não foi isso que me levou a escolher atores americanos para os principais papéis. Na verdade, jamais considerei a possibilidade de fazer esse filme com atores italianos, devido ao peso do Catolicismo sobre o relacionamento mãe-filho na Itália: a mãe é a Madonna ou seu oposto. Por isso usei a América como ponto de referência e atores americanos. Pode-se ver o mesmo assunto baseado na mamma italiana? Com a Igreja onipresente na Itália? Não creio, seria o mesmo que pedir para ser massacrado… E também: é preciso um certo distanciamento para contar uma história como essa. Eu não poderia me apoiar nesses dois personagens, Caterina e Joe, do mesmo modo – se os intérpretes fossem italianos. A presença de atores estrangeiros garantiu um certo distancia­mento. Máscaras, para entrar mais a fundo no baile. Essas são as razões reais da presença de Jill Clayburgh… No início, pensei em Liv Ullman para o papel de mãe…

Os atores com quem trabalho são, para mim – cet obscure objet du désir – obscuros objetos de desejo. Os atores, a presença deles, eles de carne e osso, são muito mais interessantes que os papéis que escrevi para eles. Sou muito vulnerável às pessoas reais diante da câmera, tento captar suas vibrações para enriquecer meus personagens. A coragem, a intensidade, o lado de grande diva, bem como o lado natural de Jill Clayburgh, tornaram-se dados essenciais da personalidade de Caterina.  Quando filmo, consulto pouco o roteiro, trabalho principalmente a partir da lembrança do que escrevi e muitas vezes improviso. A Caterina de Jill é muito mais esplêndida e valente que a Caterina do roteiro. Por isso, mudei muita coisa. É um risco, mas se não tivesse alterado o previsto no roteiro, teria me aborrecido muito durante a filmagem, porque detesto a ideia de que filmar significa ilustrar uma história já pronta.

O problema da droga não é examinado no seu contexto sociológico, mas dentro da família. Tomar drogas é um meio de regredir. Joe regride porque não tem a figura paterna com a qual se identificar. Na psicanálise, Édipo mata o pai. Aqui, Joe ressuscita o seu. É um Édipo moderno, que ama sua mãe mas ressuscita seu pai. Para Joe, como para Édipo, matar ou ressuscitar o pai é uma modo de descobrir a própria identidade. Insisto: em La Luna o papel das drogas é exclusivamente funcional, não queria fazer um estudo sociológico das drogas – nem do fenômeno do uso de drogas, nem do “inferno” de um viciado. Existem muitos jovens viciados na Itália e um crescente número de mortes por causa delas. Mas não, só quis mostrar como um adolescente, Joe, torna-se um viciado por usar drogas como defesa contra seu meio ambiente. Drogas são como o mel do prólogo, quando a mãe alimenta o filho. O mel é doce, mas enjoativo, e faz Joe, o bebê, tossir. As drogas são doces, mas matam. No mesmo modo, a doce e obstinada busca pelo amor materno reprime o adolescente Joe.

Conscientemente ou não, todos os homens têm fantasias incestuosas, embora não necessariamente com suas mães – com uma tia por exemplo, como o Fabrizio de Antes da revolução (Prima della rivoluzione). Existe uma conexão evidente entre esses dois filmes. Ao ver La Luna em Veneza, dei-me conta disso por causa da reação da crítica italiana. Primeiro, ela se recusou a debater o tema central do filme, o incesto. Depois, ficou desconcertada pela forma dramática que adotei. O tema do incesto é, precisamente, o ponto de contato entre os dois filmes. Antes da revolução é a história de uma atração incestuosa entre um jovem e sua tia – a tia ao invés de mãe? Eu me pergunto agora se na época simplesmente faltou-me coragem para abordar diretamente o relacionamento mãe-filho.

Há outra conexão entre os dois filmes, a ópera. A sequência no teatro em Antes da revolução ? a troca de olhares entre Gina e Fabrizio, a presença da música como um comentário da ação, a mãe, a tia e Fabrizio ? foi filmada de um modo que antecipa a cena final de La Luna, feita também do entrelaçamento de uma série de olhares. Mas em Antes da revolução, creio ? expressão, que adoto de bom grado ? os personagens eram condicionados pelo meio. Em La Luna, vê-se menos o ambiente de Joe. Ele foi arrancado da América, está reduzido a uma espécie de solidão em Roma, para ele uma cidade do oeste americano. Mãe e filho passeiam por Roma como se a cidade fosse um posto avançado do Império Americano – o que de certo modo, se pensamos em Hollywood, Roma de fato é.

Tudo é infinitamente menos evidente do que parece. Joe tem a inconsistência e o mistério de seus 15 anos. Expressa todas as nostalgias de um jovem americano no exílio, jogado numa colônia americana, a Roma do filme, com suas pirâmides, suas palmeiras, seus muçulmanos traficantes de drogas. Ele também, inconscientemente, procura os pedaços perdidos do enigma de sua família, isto é, seu pai.  Na última cena, quando reúne a mãe e o pai, Joe aplaude. Seria ingênuo imaginar que tudo está entrando em seus devidos lugares. Nada vai ser resolvido. Joe só está aplaudindo sua própria direção, pois esse gran finale, o encontro dos pais no balneário de Caracalla, foi encenado por ele. É um evento é efêmero. A mãe permanece no palco, o pai volta para a plateia. O círculo familiar está definitivamente partido. Quem pode dizer o que vai ser do filho? Não sabemos se permanecerá uma vítima das drogas ou se abandonará o vício. Pode-se supor que ele está pronto para descobrir sua identidade sexual e tornar-se um adulto.

A principal característica que observo nos jovens de hoje, de 15 a 18 anos, é, precisamente, esse gosto pela encenação, a exteriorização de seus sofrimentos. Quase sempre encenam seus sofrimentos. Em La Luna essa é a atitude de Joe no final. Ele encena o começo de um processo de liberação pessoal por meio de um artifício para levar seu verdadeiro pai ao estúdio onde sua mãe está ensaiando. Ele é então, verdadeiramente, um diretor de teatro, que recria a cena primeira – ou se quisermos, a primeira cena do filme, o prólogo. Ele redescobre a unidade pai/mãe, simbolicamente uma unidade importante. Como uma reação contra o tabu de se falar de incesto, insisto em dizer que, diante dessa rejeição neurótica, particularmente na Itália, existe na conclusão do filme uma insinuação de liberação, uma rejeição moral dos tabus, a emancipação moral. Deixe-me explicar. A mãe está ensaiando, cantando. O pai e o filho estão sentados, distantes. Não creio que Caterina e Giuseppe venham a morar juntos, viver juntos de novo. Não creio na recomposição da família. Mas Joe está recompondo sua identidade com respeito ao pai e à mãe. Até o estágio em que a identificação da figura do pai permite a identificação das outras pessoas, as crianças se identificam com suas mães, elas são a continuação de suas mães, do seio maternal.

No país de Verdi

O cinema é, por sua natureza, uma linguagem psicanalítica. Quando falo de La Luna e de psicanálise não quero dar a impressão de que este filme é um manual da psicanálise, mas lembrar que na origem de certas narrativas livres, na construção de personagens, na estrutura da história, sigo um esquema diferente daquele da dramaturgia clássica, um esquema que pode ser chamado de freudiano ou lacaniano. Por exemplo, o prólogo do filme: podemos vê-lo como um sonho, e dizer que o filme funciona como uma ilustração ou uma consequência do que está contado nesse prólogo.

Considero, evidentemente, a psicanálise como um meio e não como um fim. Se nos restringirmos a um esclarecimento da ficção, não vemos nada mais que uma dissertação psicanalítica filmada. La Luna, é claro, é mais que isso. A psicanálise fornece a estrutura, a lógica, mas o objetivo principal é a história. La Luna é um encontro entre o melodrama, de caráter épico ou lírico, e a psicanálise. Nada de psicologia, de interpretações racionais, mas a exploração das profundezas do inconsciente. Os personagens “agem” determinados pelos seus inconscientes…

Caterina parte para a região de Parma para procurar suas raízes culturais. Eu naturalmente lhe dei as minhas próprias raízes. O caminho é aquele mesmo que percorri em meus filmes anteriores. É um retorno às cenas de minha infância, as mesmas paisagens, os mesmos cenários. Esse país é também o país de Verdi. Eu queria que o filme fosse uma ópera, um melodrama. La Luna é uma estrutura dramática que surge de uma constante confronto entre a música de ópera e os sons do cotidiano, da contradição entre um universo inteiramente artificial e o genuíno. Melodrama: queria que a vida de Caterina fosse cercada de melodrama, fosse dividida entre o universo da ópera e o de sua própria existência. Quando ela sai do palco entra em outro, o de sua vida. Caterina está mergulhada no melodrama. Não é por acaso que essa mulher escolhe cantar óperas de Verdi: seu inconsciente procura esse tipo de encontro. Não creio no destino nem no acaso. La forza del destino é A força do inconsciente.

O melodrama não impede o inconsciente de se manifestar. Permite, até, uma situação privilegiada em que as mais indiscretas paixões, como o incesto, podem ser aceitas pelo público porque estão dentro do esquema de uma convenção. No final do filme, por exemplo, graças ao efeito do inconsciente, e graças também a música de Verdi, significa o contrário do que parece significar. A família está em frangalhos. Pode parecer que ela se recompõe, quando, ao contrário, vemos a sua decomposição. Existe confusão intencional entre uma aparente recomposição e o que é sentido pelo filho no instante em que vê os pais juntos novamente, como no começo do filme. De fato, essa cena diz somente que Joe, nesse momento, está se tornando um adulto, após ter passado pelo inferno do incesto e ter planejado a união do pai e da mãe num palco de teatro. A realidade se beneficia do melodrama da atmosfera artística. No mesmo modo que Joe entre nos bastidores do mundo melodramático, o melodrama entra na vida.

É tudo muito ambíguo, que é o modo de se expressar do inconsciente. Como a psicanálise, o melodrama vai além do drama burguês, permite maior liberdade.

Sou um homem nascido sob o signo da desordem. Trabalho com abundância. Sei de diretores que são míseros, parcimoniosos. Eu não. Esse filme, além do mais, vai em busca do prazer. A mensagem verdadeira do filme é do prazer, o prazer de dar, o prazer de receber. Não tem álibis falsos nesse domínio. Se um travelling me dá prazer, eu filmo. Essa é a maneira como trabalho e a que me refiro como minha nova dramaturgia.

Para seguir em frente

Finalmente, deixei-me convencer de que a sensação de prazer é o mais importante. A busca de prazer era uma necessidade latente em meus filmes. Durante a década de 1960, quando me pediam para explicar a mensagem de um filme, apresentava uma razão, um álibi moral ou político. Eu me pergunto agora se não estava mentindo para mim mesmo. Creio que o prazer tem sido a motivação natural do meu cinema, e só tornei-me ciente disso durante a feitura desse filme. Reprimi, neguei por muito tempo, o prazer de criar, o prazer de filmar. Mas existe uma maneira sensual de abordar uma história, de dirigir um movimento de câmera. Não adianta manter-se à distância dessa sensualidade. Existe o prazer do texto falado pelos atores e o prazer da luz, pois ela materializa o sonho e todo filme é um sonho. Em La Luna fui mais longe em relação a coisas esboçadas em filmes anteriores, em direção a uma nova arte dramática, uma nova forma de narrativa que vai do drama ao riso sem solução de continuidade. Eu me permiti mudanças imprevistas, contradições e incoerências. Os distúrbios do relacionamento mãe-filho deram-me a liberdade de encarar minhas contradições, de me lançar à vertigem. Meu comportamento é mais secreto e sombrio. Meus fantasmas são iluminados pela luz da lua, e eu achei excitante parar de me esconder atrás de certos álibis políticos e sociais, para agir mais fundamentalmente em direção ao objeto do desejo. Enquanto filmava, eu me sentia arrastado para uma direção nova, abandonava antigas referências e filtros culturais e cinematográficos. Acho que La Luna é uma tensão para seguir em frente.

Veja também: a reação da crítica ao filme La Luna.

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