Analistas e pacientes: quatro perguntas para Armando Freitas Filho e Maria Rita Kehl

Quatro perguntas

18.04.11

Em continuidade à seção “Correspondência”, o Blog do IMS apresenta dois novos missivistas: a psicanalista, escritora e ensaísta Maria Rita Kehl e o poeta e pesquisador Armando Freitas Filho. A partir de hoje, eles passam a trocar cartas semanais no blog: Armando escreve às segundas, Maria Rita às quartas. Abaixo eles falam sobre a amizade que nutrem há mais de trinta anos.

Que tipo de conexão pode existir entre o que produz um poeta e o campo de estudo de uma psicanalista?

Armando: No que me diz respeito, mais do que conexão pode existir uma interferência. A rigor, ou mesmo sem rigor nenhum, é óbvio que preciso, até com uma certa urgência, de tratamento. Mas, contrariando o bom senso, não faço análise para fugir dessa imaginada interferência. Meu temor é que o processo analítico me trave. Quero dizer: vou acabar falando e não escrevendo; então prefiro escrever falando. Como entendo a poesia como um instrumento de ponta da linguagem, não quero que ela fique rombuda, “domesticada”, e perca a sua possível agudeza. E se não for nada disso? E se o que disse acima é uma canhestra tentativa de desculpa neurótica? Que a minha poesia até seria mais desimpedida e melhor com a minha saúde mental e emocional sem os sobressaltos e solavancos da minha já velha e repetida estrada esburacada, já que a neurose me parece ser o universo do mesmo? Responderia a essa pergunta com uma velha piada, que cito de memória, e que encerra o filme Annie Hall, de Woody Allen, outro neurótico convicto, mas que faz análise e filmes sem parar: “Acabei tendo que internar meu irmão, pois ele achava que era uma galinha”. “Então, tudo bem, não?” “De maneira nenhuma: eu preciso dos ovos.”

Maria Rita: A primeira, e mais óbvia, é que a poesia e a psicanálise têm relações de ordem diversa com o inconsciente. A psicanálise o investiga, para dizer o mínimo. Mas sua eficácia depende, também, da abertura do analista para seu próprio inconsciente. Analista travado pratica análise acadêmica. E a poesia expressa, por linhas tortas (vivam elas!) algo do saber inconsciente do artista, que talvez ele não pudesse expressar de outra maneira. Freud chamou de “Processos primários” os processos de formação enigmática de sentido que caracterizam tanto o sonho quanto uma das etapas da criação artística. A ligação entre psicanálise e poesia é tão estreita que alguns poetas (será o caso do meu amigo? deixo que ele responda) recusam se analisar com medo de perder o acesso à fonte da criação. Quanto às outras conexões entre nós, são tantas quantas têm sido nossos temas das conversas, há mais de 30 anos. Claro que excluiremos dessa correspondência pública aquelas conversas muito particulares, que o Armando chama de suas sessões de “psicanálise selvagem” comigo — e já adianto aqui que estas sessões não se dão apenas de lá para cá. Na outra mão, daqui pra lá, talvez ele nem saiba o quanto ele também é meu analista selvagem. E bota selva nisso! Quanto ao que pode interessar aos leitores do blog, acrescento as conversas sobre poesia e sobre política, paixões compartilhadas. E sobre tudo o que a vida nos apresenta de interessante, angustiante (a violência, o crime organizado, a corrupção, a morte, a passagem inexorável do tempo), intrigante. Somos bons fofoqueiros, também. Temos prazer em falar mal de pessoas de quem não gostamos.

Trocar cartas se tornou um hábito anacrônico na era da comunicação instantânea. Por que aceitar o desafio?

Armando: Porque com e-mail eu me transformei num gentleman eletrônico. Antes respondia mal e mal às cartas, e, às vezes, deixava para lá, o que horrorizava meu pai, homem formal que não admitia deslizes desse tipo e sempre saía, além do lenço de praxe, decorativo, no bolso do terno, com um outro, extra, no bolso de trás, para qualquer eventualidade, como dizia com seu jeito seco. O desafio é não deixar que essa correspondência, devido à intimidade de mais de 30 anos, se faça através de “cartas marcadas”.  Vamos ver se conseguimos, dizendo coisas assim, temperadas: Rita, você às vezes me irrita, mas eu a amo e admiro, constante.

Maria Rita: De minha parte, talvez meu gosto pelo anacrônico. Sou benjaminiana: faço o possível para que a adesão automática à tecnologia não “apague os rastros” (título de um poema de Brecht) da experiência coletiva, que dá consistência ao conhecimento e aos laços sociais. Mas há um paradoxo aí, pois trocar e-mails e similares é uma verdadeira coqueluxe na era da comunicação instantânea. A única diferença no caso atual é que, apesar da rapidez do meio, nós teremos o luxo de alguns dias, ou horas (minha rotina é apertada) para pensar nos e-mails que irão para o Blog do IMS.

O momento no Brasil é fértil em discussões. Discute-se política partidária, leis de incentivo cultural, prêmios literários, méritos, ideologias. Vocês dois são, cada um a sua maneira, ativos nesse panorama. Isso influencia a produção de cada um?

Armando: Ela é muito mais ativa do que eu. Diria até: ela tem o dom da ubiqüidade, part time, já que está sempre entre um lugar e outro. Em dias felizes eu a flagro entre e gratuita, não-profissional, amadora, mas prestes a perder essa pausa, veloz como o Papa-Léguas do desenho animado. Esse é o seu segredo maior, que agora revelo, depois de tantos anos bem guardado. Espero que essa inconfidência não gere um bate-boca costumeiro, ou mensal, pois ela vive na ponte aérea, não só Rio-São Paulo, São Paulo-Rio, mas em todas as outras pontes. Ela é, na verdade, uma assemblage de avião e ponte! Ou então foi para ela que inventaram a legenda: São Paulo não pode parar. Se me fosse dado ter asas e passagens como a ela foi, acho que a influência seria pequena, menos rica, porque escrevo em qualquer parte, até na coxa de uma aeromoça qualquer, en passant, por exemplo, pois o meu escritório é interior, fixo, indigesto.

Maria Rita: Bem, minha produção é muito dividida. Escrevo livros sobre psicanálise, de vez em quando. Esta é uma produção difícil, trabalhosa, às vezes sofrida porque até hoje acho a psicanálise dificílima, a não ser que se queira apenas aplicar a palavra dos mestres às questões da vida atual de uma forma, digamos, acadêmica. Mas para mim, o desafio difícil é utilizar a teoria de forma crítica para pensar novas soluções às questões que a clínica nos traz diariamente. Por outro lado, tenho uma escrita rápida, eu diria urgente, jornalística, que é quase 100% motivada pelas aflições que a vida política do país desperta em mim. Tive a coluna do Estadão, e agora que ela acabou, voltarei à minha antiga prática de, quando um tema me incomoda ou me motiva a escrever, procurar os editores e oferecer a publicação. Frequentemente dá certo. Quanto à poesia, está cada vez mais bissexta, chego a duvidar se ainda tenho essa veia aberta. O engraçado é que, apesar da paixão de intervir no debate político, não tenho grande interesse em conversar sobre política. Às vezes me encontro com o Armando e ele está com um assunto na ponta da língua, todo mobilizado, louco para conversar — e eu quero passar rapidinho para um tema mais pessoal, ou mais ameno. Parece que gasto todo o impulso no texto. Discutir política com os amigos raramente me empolga.

Quais as principais diferenças e afinidades entre um e outro?

Armando: A maior afinidade é a amizade de um pelo outro, sob qualquer tempo: bom ou chuvoso. Conto com ela, sempre, até mesmo quando (ufa!) brigamos. As diferenças eu poderia dizer: ela é analista e eu sou paciente (nos dois sentidos). Mas não a sinto assim, embora me sinta assim. Talvez fosse melhor dizer: ela é paulista, eu sou carioca; uma espécie de Brasil e Argentina. Mas quem será a Argentina?

Maria Rita: O Armando, comigo, foi um verdadeiro conquistador. Sem segundas intenções, tenho certeza: ele partiu certeiro para a conquista da amizade. Foi logo chegando, confessando suas hipocondrias e esquisitices (depois descobri que ele faz o mesmo com todo o mundo e fiquei meio desapontada), e produziu um efeito imediato de intimidade. Eu, que não sou nada difícil, meio vira-latas, não tive dúvidas em tornar-me imediatamente íntima! Foi uma legítima paixão e amizade — que, como toda paixão, incluiu ao longo dessas três décadas algumas brigas e mágoas mútuas. Mais ou menos mútuas: eu nunca me magoei com o Armando, costumo dar de ombros para as mágoas, em geral. Mas sou impaciente e me irrito com frequência com as manias dele. Acho que sou meio dura nesse ponto. Uma vez ele me disse, depois de um ano magoado sem que eu soubesse por que: “poupe-me da sua franqueza!”. Tenho tomado cuidado, mas não muito para não perdermos a espontaneidade. Ele tem mais paciência comigo, e também mais sensibilidade às ofensas em geral. Mas é muito exigente. Costuma dizer: “Não acredito em amor, só em provas de amor” – e eu às vezes fico meio cheia de ter que dar provas… Acrescento, enfim, que durante muitos anos eu me sentia como se meu parceiro fosse só o Armando. Ia à casa dele e da Cri, e só conversava com ele. De repente, não me lembro quando, passei a perceber a Cristina, mulher dele, que é muito discreta, uma pessoa finíssima, e aceitava nossa exclusividade sem disputar espaço (porque o espaço dela estava muito garantido, aliás). Então, além de me apaixonar também por ela, passei a defendê-la abertamente nas briguinhas do casal — amizades longas permitem situações assim — e hoje me sinto grande aliada dela em todas as questões femininas. Se o Armando quiser, pode tirar essa minha frase final, mas vou arriscar escrever o que ele já sabe: adoro ser sua amiga, mas, para o meu temperamento, jamais aguentaria ser sua mulher! Acho que nesse aspecto a intolerância é recíproca, e se for, ele também tem toda a razão.

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