Lelé: condição-limite

Arquitetura

25.05.14
Hospital Rede Sarah, Rio de Janeiro, projeto de Lelé. Foto de Ana Luiza Nobre

Hospital Rede Sarah, Rio de Janeiro, projeto de Lelé. Foto de Ana Luiza Nobre

Como definir a obra de João Filgueiras Lima? Poderíamos começar situando-a na interseção, ou melhor, no difícil ponto de fusão da arquitetura, do design e da engenharia. Isso significaria colocar em evidência aspectos cruciais de sua obra, como o controle das técnicas construtivas, a ênfase no trabalho em equipe e a disposição para responder a uma ampla gama de problemas projetuais, à escala de um complexo hospitalar ou de um simples banco de praça. Mas ainda assim permaneceríamos longe do desafio de dar conta de obra tão excepcional, que se fecha agora com a morte do arquiteto, aos 81 anos de idade.

Qualquer caminho a seguir não pode deixar de passar, de todo modo, pelo reconhecimento da nossa dificuldade de lidar com uma obra sem paralelos no Brasil e no mundo. Porque se por um lado Lelé pode ser visto como membro da “quarta geração” de arquitetos modernos – ao lado de Alvaro Siza, Aldo Rossi e Herman Hertzenberger, por exemplo, com os quais dificilmente encontraremos pontos de contato – por outro lado ele pertence também, e fundamentalmente, a uma geração de arquitetos brasileiros que inicia sua atividade profissional sob o impacto da construção de Brasília. Alinhá-lo com Joaquim Guedes, Sergio Ferro, Paulo Mendes da Rocha, Sergio Rodrigues e Abrahão Sanovicz, no entanto, tampouco bastaria. Porque se Brasília significou para alguns desses arquitetos a expressão máxima da violência social do canteiro de obras, outros viram aí uma possibilidade inédita de enfrentar o problema tantas vezes reposto na modernidade da relação entre projeto e modo de produção industrial. Problema esse que assumiu lugar central na obra de Lelé desde a primeira tarefa que lhe coube como arquiteto: nada menos que erguer uma superquadra projetada por Oscar Niemeyer em Brasília.

Além da aproximação de Niemeyer – já consagrado internacionalmente com obras como o conjunto da Pampulha -, isso significava projetar e construir uma pequena cidade capaz de alojar cerca de 2.500 operários no precário canteiro da nova capital. Desafio e tanto para um arquiteto de apenas 25 anos e recém-saído da Faculdade Nacional de Arquitetura, subitamente pressionado por toda sorte de limites, como a exiguidade do prazo para inauguração da cidade, a indisponibilidade de material, a ausência de qualquer infraestrutura no canteiro de obras.

Argamassa armada

É a experiência da condição-limite de Brasília, justamente, o que leva o arquiteto à pré-fabricação. Entendidas como limite, e não como limitação, a escassez e a precariedade do canteiro da nova capital demandam um esforço constante de superação, que passa a sedimentar um processo investigativo constante, em que um trabalho pode ser visto como a preparação do outro. Assim, as peças de madeira usadas no alojamento dos operários levam aos pré-moldados de concreto armado em projetos como o Hospital de Taguatinga (1968), o Centro Administrativo da Bahia (1973) e o Alojamento de Professores da Universidade de Brasília (1962). Este último insere-se num conjunto de trabalhos realizados no âmbito do Ceplan/Centro de Planejamento da Universidade de Brasília, órgão que teve curta duração devido ao golpe militar, mas foi responsável por algumas das obras seminais em pré-moldados no Brasil, como o Instituto Central de Ciências (mais conhecido como “Minhocão”), desenvolvido por Lelé a partir de projeto de Niemeyer.

Já a exploração do ferro-cimento teve início nos anos 1980, quando surgiu a necessidade de executar uma ponte rural com mão de obra não qualificada e recursos mínimos. Até então, o potencial do composto de cimento, areia e malha de ferro introduzido por Joseph-Louis Lambot no século XIX era quase desconhecido no Brasil, a despeito de seu parentesco com o concreto armado, largamente difundido no país desde a década de trinta. Cruzando resultados de pesquisas realizadas na Escola de Engenharia da Universidade de São Paulo com o estudo da obra do arquiteto italiano Pier Luigi Nervi, Lelé observou que a execução de uma peça de ferro-cimento era mais simples e de custo operacional menor que uma peça de concreto armado, e por isso mais adequada à produção em série num país de industrialização rudimentar como o Brasil. Considerou ainda que, em função da leveza e de certa flexibilidade do material, seria possível limitar as dimensões das peças de maneira que seu transporte pudesse prescindir do uso de máquinas (no Brasil, sempre dispendiosas) e ser realizado manualmente por apenas dois homens. Dedicou-se então a explorar as possibilidades desse material, procurando reduzir ainda mais a quantidade de ferro e cimento por meio da imersão das peças em tanques de água, a fim de combater a retração resultante da secagem do cimento. Rebatizado de “argamassa armada”, o material passou a ser usado por Lelé em obras de escolas, saneamento e equipamentos comunitários públicos por todo o país, tendo sua resistência amplificada por meio de dobras e curvaturas que resultaram em elementos construtivos de forte expressividade plástica.

Posto de maneira sumária, o que Lelé se colocou foi uma questão nada fácil: como viabilizar a produção seriada num ambiente cultural profundamente resistente à industrialização e à racionalização da construção, sem cair no “formalismo técnico” localizado por Giulio Carlo Argan na arquitetura brasileira . Operando ao largo da orientação ideológica dominante no Brasil nas décadas de 1960 e 1970, Lelé buscou um caminho distinto da opção de colocar em xeque o projeto de arquitetura. Mas tampouco se deixou encerrar na autossatisfação que acabou descolando a arquitetura brasileira do debate internacional no período pós-Brasília. Seu maior interesse esteve no exercício inventivo de uma prática projetual que lhe permitisse superar a oposição binária entre industrialização e humanização. Assim, quando encontrou dificuldade de mão de obra, concebeu cartilhas ilustradas para a formação de operários. E quando percebeu que a divisão do trabalho tendia a isolar o trabalhador do produto final, introduziu um rodízio, de modo que o operário que trabalhava na fabricação de uma peça na Bahia pudesse integrar-se à montagem dos componentes no Rio de Janeiro, no Ceará ou no Maranhão.

Construção da Catedral Metropolitana de Brasília, c. 1959. Foto de Marcel Gautherot/Acervo IMS

Construção da Catedral Metropolitana de Brasília, c. 1959. Foto de Marcel Gautherot/Acervo IMS

“Dr Lelé”

Altamente disciplinada, mas sem se deixar coagir por qualquer a priori metodológico, a obra de Lelé é singular também por optar uma abordagem empírica que se torna o próprio lastro do projeto, explorando a convivência entre o perigo localizado por Heidegger na essência da técnica e a aventura quase insana que é, afinal, o próprio ato de projetar no Brasil. Não por acaso, na contramão da autossatisfação que parece já ser um traço da arquitetura brasileira, e do discurso com foco nos próprios êxitos que é recorrente entre arquitetos, Lelé se mostrava francamente interessado em assumir e expor publicamente seus fracassos.

Impressionava mesmo a singeleza com que apresentava seus projetos, com todos os erros e acertos aí implicados. Uma singeleza que se estendia à alcunha de apenas duas letras que acabou suplantando seu nome de batismo, já em si tão singelo. E isso num meio carregado de vícios de bacharelismo, flagrantes no tratamento reservado a alguns dos nossos maiores arquitetos (“Dr. Lucio”, “Dr. Oscar”…). No máximo, portanto, “Dr Lelé”, conforme a paradoxal inscrição usada no capacete de obra do arquiteto.

Cadeia de produção

Um século, pelo menos, separa o Hospital de Taguatinga do Palácio de Cristal em Londres, e, no entanto, não é difícil encontrar ali a raiz dessa obra que se irradiou pelo Brasil a partir de Brasília. Na verdade, num certo sentido Lelé se inscreve mais na linhagem de Joseph Paxton, Konrad Wachsmann e Jean Prouvé do que na de Oscar Niemeyer e Lucio Costa. Porque embora se considerasse um “subproduto” destes, foi com aqueles que partilhou um interesse mais profundo pelo processo industrial e pela natureza dos materiais. Além da convicção, digamos, brunelleschiana de que projetar também significa muitas vezes inventar os meios e procedimentos necessários à execução da obra. Mesmo que em condições-limite, e num equilíbrio muitas vezes dramático sobre um vínculo com o poder público que está longe de ser estranho aos processos de renovação arquitetônica na América Latina.

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