Mamma Roma: seis notas

Cinema

29.10.15

Mamma Romma será exibido no cinema do IMS-RJ até 11 de novembro. Mais informações aqui.


1. Em La ricota (um dos episódios de Rogopag, 1963), o diretor de cinema interpretado por Orson Welles responde à pergunta de um jornalista (“o que o senhor pensa do grande diretor italiano Federico Fellini?”) com uma reticência algo irônica: “Ele dança”. E, depois de uma pausa silenciosa, marcada só por um movimento das sobrancelhas, repete: “Ele dança”. Antes que o jornalista se retire o diretor abre um livro (na capa, o título Mamma Roma) e lê um poema de Pasolini: “Eu sou uma força do passado / Só na tradição o meu amor reside / E eu, feto adulto, perambulo / Mais moderno que todos os modernos / À procura de irmãos que não existem mais.”

2. A anotação está na página 336 de Il libro dei sogni de Federico Fellini: no dia 6 de junho de 1977 Fellini sonhou que fazia um filme em que Pasolini atuava numa pequena cena cantando uma canção que parecia ser de Verdi: “a morte também é vida”. Depois, ele está num carro com Pasolini, que olhava os muros da Roma antiga pela janela e se perguntava, com um sorriso melancólico: “como descrever essas ruínas extraordinárias? È la vita anche la morte”. Fellini desperta com a música nos ouvidos, “o verso misterioso, mas de significado cristalino”.

Em 26 de setembro do mesmo ano, em outra anotação, na página 340. Fellini sonhou que estava na casa de Pasolini com um aperto no coração. Sabia que o amigo fora condenado à morte, acusado de ter assassinado o “diretor”. Fellini está convencido de que isso não é verdade, e se surpreende com a calma de Pasolini, que, em tom de brincadeira, pergunta como está a saúde dele. Angustiado com a possibilidade de Pasolini ser executado de uma hora para outra, Fellini diz com lágrimas nos olhos que era preciso pedir clemência ao Presidente, mesmo ciente de que as regras e os labirintos da burocracia não deixavam saída. Ele se senta numa cadeira, mas o cachorro de Pasolini começa a latir e ele se senta no chão. Pasolini explica que aquela cadeira pertencia ao cachorro, que pula para cima dela e fica sentado lá. Fellini e Pasolini sentam-se no chão, em silêncio, tranquilos.

3. “A realidade não se encontra em apenas um sonho, mas em muitos sonhos” – adverte um letreiro no começo de As mil e uma noites (Il fiore delle mille e una notte, Pier Paolo Pasolini, 1974). Na tela, mil histórias superpostas: a segunda nasce de dentro da primeira, a terceira de dentro da segunda. A paixão de Nuredin e Zumurrud ainda não terminou de ser contada quando um personagem num canto da cena se transforma no narrador de uma outra história, a de Tifanè e Zeudi, que por sua vez, antes de se concluir, cede lugar para a paixão de Aziz e Aziza que logo se entrelaça com a de Tagi e Dunia, por sua vez cortada para que se inicie a do Príncipe Shazaman.

De certa maneira, esse relato múltiplo, em que uma narrativa brota de dentro da anterior antes mesmo que ela termine, lembra a última fala do filme anterior de Pasolini, O decamerão (Il Decamerone), realizado dois anos antes. O pintor diante da obra terminada, cercado de gente que celebra a conclusão do trabalho, lamenta: “por que realizar uma obra se a verdadeira beleza está em sonhar a obra?” O fato do pintor ser interpretado pelo próprio Pasolini empresta à cena um jeito de trailer do filme seguinte, As mil e uma noites: por que concluir a sonho se o melhor é sonhar?

4. A observação se encontra em Cinema de poesia (ensaio apresentado no Festival de Pesaro em 1965): “a memória e os sonhos são os instrumentos linguísticos sobre os quais se apoia o cinema, que é fundamentalmente onírico”. A afirmação, de certo modo, prossegue na frase de abertura das narrativas entrelaçadas de As mil e uma noites – La verità non sta in un solo sogno, ma in molti sogni.
Talvez, a superposição (de sonhos, de relatos) possa ser tomada como figura central dos filmes de Pasolini – do primeiro, Accattone (1961), ao último, Salò, ou os 120 dias de Sodoma (Salò, o le 120 giornate di Sodoma, 1975) passando pelas anotações filmadas, como Anotações para filmar Orestes na África (Appunti per una Orestiade africana, 1970), ou Locações na Palestina para filmar O evangelho segundo São Mateus (Sopralluoghi in Palestina per il vangelo secondo Matteo, 1965).

Em seu cinema, tal como exemplifica As mil e uma noites, uma história nasce de dentro de outra para compor uma história sem fim (e quase sem princípio). E assim também, do mesmo modo, de dentro da ficção nasce um quase documentário sobre as pessoas e paisagens diante da câmera. E ainda, no cinema de Pasolini, a cena distante da ilusão de realidade, o espectador, ao ver o conto, percebe também a pessoa que conta –  a narração narra o narrador, a ficção documenta.
“Minha maneira de filmar se opõe aos ensinamentos neorrealistas. O neorrealismo, para imitar a vida, usa planos longos e sequências que procuram reproduzir o ritmo do cotidiano, do real. Eu, ao contrário, procuro construir tudo. Procuro evitar uma reconstrução natural, não quero imitar o que se passa na vida. Campo e contracampo. Nenhum plano-sequência, poucas panorâmicas. O que importa está no espaço “pró-filme”. O filme está colado nesse mundo pré ou pró filme tal como os sonhos estão colados na realidade. O destino é que comanda os acontecimentos, a câmera não tem muito a fazer, não é tão necessária – deve ser contemplativa”.

5.1962: num período de intensa atividade, dois anos depois da tradução da Orestíade de Ésquilo, de colaborar no roteiro de A doce vida de Fellini, de escrever roteiros para Franco Rossi (Morte di un amico), Florestano Vancini (La lunga notte  del’ 43), Mauro Bolognini (La giornata balorda), Luciano Emmer (La ragazza in vitrina) e para Bernardo Bertolucci (La commare secca), um ano depois da estreia como diretor (Accatone, 1961) o segundo longa-metragem: Mamma Roma.

Comentando seus dois primeiros filmes, numa entrevista concedida em 1970 para a televisao francesa, Pasolini disse que não sabia nada de cinema quando começou a filmar. Sua educação cinematográfica se fez por meio da pintura. Seu mestre foi Masaccio. Em Accattone enfrentou principalmente problemas técnicos – “nunca tinha visto uma câmera de perto, não sabia que existiam diferentes objetivas, ignorava o significado da palavra panorâmica”. Foi obrigado então a inventar uma técnica, “a mais simples, a mais elementar possível”. De um ponto de vista estilístico, acrescentou, “a simplicidade se converteu em rigor, o elementar em absoluto. Tentei transpor para o cinema o modelo figurativo de Masaccio”.
Quando logo em seguida realizou Mamma Roma, “sem o tempo necessário para analisar a experiência de Accattone”, confessa: “fiz uma obra em que pela primeira na vida me repeti: o estilo é quase o mesmo”. Disse que cometeu esse erro por ingenuidade. “Embora na vida seja preciso ser ingênuo, no campo da estética é um erro”. Compara o personagem de Anna Magnani, a Mamma Roma, “de ideais pequeno-burgueses”, com o de Ettore Garofalo, o filho, que, ao contrário, “é popular e épico, e aproxima o filme de Accattone”.

Colado em Mamma Roma, um novo filme, “o menos calculado de todos os meus trabalhos”, La ricota. Ainda uma vez, Masaccio, “na sobriedade da paisagem, na simplicidade dos volumes, na iluminação rústica. Mas, bem ao contrário, existe também um exagero bufão nas passagens em que ironizo a figura do diretor de cinema. Faço uma autocaricatura no personagem Orson Welles. E para estas cenas me inspirei na pintura de Pontormo e de Rosso Fiorentino, dois maneiristas florentinos”.

No lançamento de Mamma Roma, 1962, no Festival de Veneza, um processo por pornografia. No ano seguinte La ricota foi censurado por “ultraje à religião”.

6. “Vivenciava tudo de modo desesperado e intenso. Daí seu exemplo ser o mais pertinente, o mais heroico, o mais trágico” – comentou Fellini na morte de Pier Paolo.

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