Mário de Andrade, fotógrafo e viajante

Séries

17.09.13

O tempo é um elemento fundamental no fazer das coisas. Ele dita, se não o sim ou o não, certamente o quando as coisas vão acontecer. Na calada da noite tece as suas sedas, aranha nos envolvendo na tessitura de suas teias, reacendendo a memória na mente do mentor. Com ele não se brinca – conversa não há!

Reacendeu-se assim repentinamente a chama de um diário fluvial, uma viagem pelas águas amazônicas, empreendida por Mário de Andrade em 1927, por ele “anotada sem nenhuma intenção de obra-de-arte, reservada para elaborações futuras, nem com a menor intenção de dar a conhecer aos outros a terra viajada”. Este diário foi publicado em 1947 sob título O Turista Aprendiz / (Viagens pelo Amazonas até o Peru, pelo Madeira até a Bolívia / por Marajó até dizer chega) / 1927. Leia mais abaixo texto de Telê Ancona Lopez sobre a viagem de Mário de Andrade.

 

Página do livro “Decantando as Águas – Turista Aprendiz Revisitado”, de Maureen Bisilliat

 

Formulei, de imediato, uma releitura do percurso do poeta e a levei à cúpula da XXV Bienal, Roberto Muylaert e Sheila Leirner, que escutaram atentamente e acataram o panorama proposto: Turista Aprendiz Revista 1927-1985 – uma Sala Especial da XVIII Bienal de São Paulo, onde construímos – Antônio Marcos Silva e eu – um palco povoado pela inventividade popular que tanto interessou Mário de Andrade: bumbas, maracatus, afoxés; anáguas alvas das filhas de Iemanjá; indumentária do índio, do vaqueiro e as magníficas máscaras da Bolívia, colecionadas por Peter McFarren. Pois não previa Mário uma viagem que iria – e foi mesmo! – “pelo Amazonas até o Peru, pelo Madeira até a Bolívia… e por Marajó até dizer chega”?

 

Sala Especial da XVIII Bienal de São Paulo

 

Tudo isso tomando forma… pensei: e por que não navegaríamos, nós também, por trilhas enveredadas por Mário em 1927? Assim, com a ajuda generosa de Dorian Taterka, Lúcio Kodato-san, cinematógrafo artesão à maneira dos antigos, e eu empreendemos uma viagem bastante complexa – pois os rios Amazonas e Solimões, tendo a largura do mar, exigiriam a contratação de um barco que, aproximando-se das beiradas, nos introduzisse às populações ribeirinhas, acenando de longe, compondo um registro andante, uma vista fluvial de um mundo de águas. Assim foi que, a bordo do Lima Gonçalves IV e aos cuidados de uma pequena tripulação comandada por Mestre Jacumim – saci seguro, expertise na pilotagem – fomos levados pelos igarapés, igapós e imensidões aquáticas do Amazonas/Solimões. Cinco semanas de introspecção e inspeção temporal registradas em filme que iria servir de ambientação na nossa Sala Bienal. No decorrer dessa viagem esbocei um relato, um diário de bordo meio louco, meio solto, meio sei lá o quê. Uma comunicação a distância com meu neto Nicholas, então com 5 anos, hoje com 32 a cumprir. E, como diário, segui a cronologia dos dias com seus sóis, chuvas, águas róseas sulfurosas ou de chumbo acariciando tal qual barranco ou ilha nos detendo aqui e acolá na travessia por entre silêncios esparsos e espaços ocos, e as escassas populações como plêiades nos olhando…

Estimulada pelo entusiasmo do editor Felipe Lafé, ao ver nosso filme e se surpreender com aquele mundo para ele desconhecido, lembrei-me do diário, garatujado durante a viagem num caderninho de escola – páginas já empalidecidas pelo tempo. Redescobertas, decifradas e repassadas este ano para o computador, levei-as para Maria Luiza X. Souto, para que ela, na sua perspicácia, opinasse a respeito daquilo que eu ora acreditava ser algo interessante pela licença poética do relato de um mundo pouco familiar, ora temia não passar de um emaranhado de total insensatez. Estimulada também por ela, demos início ao difícil trabalho de “decantação das palavras”, ou das águas, título escolhido para esta publicação. As imagens selecionadas, tiradas do filme, foram tratadas por Kelly Polato, que lhes devolveu as cores da memória. Assim, acopladas ao texto, desconstruindo um tempo fílmico, recriou-se um tempo estático a ser posto em movimento pela imaginação do leitor, tudo “na unha”, como se diz, à moda antiga, tudo à mão. A apresentação deste livro – sua elegância e fluência gráfica – resultou da experiente colaboração de Ruth Klotzel, valiosa parceira em muitas outras publicações.

Maureen Bisilliat, dezembro de 2012

 

 

 

 

Páginas do livro “Decantando as Águas – Turista Aprendiz Revisitado”, de Maureen Bisilliat

 

Queridíssimo pequeno Ni:

Eu vou te contar algumas coisas das 1000 coisas que estou vendo nesta viagem pelo grande rio-mãe Amazonas. As estrelas estão altas no céu e o sol entrou na terra deixando nuvens que parecem ilhas acima da gente. Estamos viajando num pequeno barco corajoso que o tempo inteiro faz put-put-put-put-put-put-put-put-put-put, com sua pequena força a vencer a enorme correnteza das águas deste enorme rio que ás vezes parece mar ? dando para braços e dedos de rios chamados igarapés. Cercados de verde onde estamos; vez ou outra vem uma pequena aldeia com algumas casas em cima de paus que se chamam pilotis e que sustêm as casas fora das águas do rio. Nestas casas sempre tem cachorros e os cachorros olham pro rio vendo os barcos passar ou pulam eles também na água. E tem vacas às vezes, e vezes outras até perus fazendo parte da casa. Em alguns dias, lá pro fim da tarde, vem uma tempestade das bravas em sua velocidade cinza que parece o fim do mundo, como você pode ver num quadro japonês. Você terá que explicar tudo isto que estou te contando para a mãe, que ela vai compreender muito bem.
Viagens são assim cheias de coisas novas pra gente. E aqui estou pensando que vocês vão fazer uma viagem muito bela lá na Espanha – que legal, né?
Queridíssimo Ni, penso em você e na mãe, e acho que às vezes vocês talvez pensem na gente aqui neste, como eu disse, grande rio-mãe.

Um enorme beijo para os dois,

x M.

 

Maureen e seu neto Nicholas

 

P.S.
Texto é diabólico, não perdoa. A imagem, sendo material, aparecendo na superfície, parece menos reveladora. No entanto, olhando para Matisse e suas eternas etapas modificadoras, pergunto-me se não erro nessa afirmação. O que mais provocou perplexidade e pânico ao remexer com este diário foi converter (?) adequar (?) traduzir (?) para o inglês a soltura dos seus escritos: suas gírias, ritmos e pontos de suspensão… a lentidão do processo torrando a paciência do designer, encalhando sua diagramação!

Agradeço à Cinemateca Brasileira, na pessoa de Carlos Magalhães, seu então presidente, pela confiança neste diário – Decantando as Águas -, escrito nos idos de 1985, durante uma viagem pelo Amazonas/Solimões filmada por Lúcio Kodato, e que editamos sob o título: O Turista Aprendiz Revisitado. Em fase de restauração, este filme contou com o apoio da Sociedade de Amigos da Cinemateca, fazendo parte da pequena publicação lançada esta noite.

Agradecimentos especiais à Telê Ancona Lopez, a Carlos Camargo e à família Mário de Andrade.

Decantando as Águas – O Turista Aprendiz Revisitado
Lançamento: 17 de setembro, 19h
Cinemateca Brasileira
Largo Senador Raul Cardoso, 207 – Vila Clementino – São Paulo

 

Maureen Bisilliat trabalhando no material do livro

 

Saiba mais sobre Maureen Bisilliat

Em 1927, Mário de Andrade, fotógrafo e viajante,
por Telê Ancona Lopez *

Denominando-se Turista Aprendiz e no intuito de conhecer o Brasil, entre 1927 e 1929, Mário de Andrade realiza duas grandes viagens, na verdade, as mais demoradas e extensas de uma vida de poucas viagens. Ambas lhe rendem diários textuais e imagéticos, unindo legendas às fotografias. Na primeira, entre maio e princípio de agosto de 1927, vai ao Norte, visita Amazonas, Pará, chega ao então território do Acre, a Iquitos, no Peru, e à nossa fronteira com a Bolívia. Vai e volta de vapor, com escalas nos portos principais; durante a excursão, a bordo de embarcações típicas da região, segue o curso dos grandes rios; toma o trem da Madeira-Mamoré…

Durante sua excursão à Amazônia, Mário escreve um diário, disperso em muitos fólios de variado feitio, conforme nos conta a última versão do texto, datada de 1943. Tem intenção de publicá-lo como O Turista Aprendiz:/ (Viagem pelo Amazonas até o Peru, pelo Madeira até a Bolívia e por Marajó até dizer chega). Esse texto traz diversas alusões à câmera Kodak, a sua “Codaque”, e ao ato de fotografar, “fotar”. Mário fotógrafo subverte os planos, pratica o “close”; calcula, compõe; despreza padrões ao fazer cortes ou tomar figuras de costas. Imprime um “clima” à fotografia. Desenvolve sequências de acordo com a movimentação da luz, da cena, quase cinema, como nas fotos do pescador que arremessa a tarrafa. E anota, de imediato, seu desígnio para cada imagem e as condições em que o trabalho se processa, para depois agregar esses apontamentos às legendas, no verso dos positivos: luz – “sol” -, abertura do diafragma, hora e minutos exatos.

Mário de Andrade foi um fotógrafo moderno, mas de reconhecimento tardio. Sua atuação nessa arte dura bem pouco: começa em 1927, na viagem do escritor como Turista Aprendiz à Amazônia, e extingue-se em 1929.

Em seu Arquivo, no IEB-USP, na série Fotografias, entre as subséries ali organizadas, afirma-se aquela que assim o caracteriza, com mais de 700 imagens em positivo e um número expressivo de negativos.

* Professora titular no Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo

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