Bateram tanto na autonomia da arte que o que sobrou foi isso: trabalhos de arte servis. Parte da produção visual parece incapaz de oferecer uma reflexão mais complexa das relações históricas, das relações humanas. Eles recusam qualquer contradição, qualquer ambiguidade, e a arte dedica-se a incrementar um ambiente ou veicular posições justas diante de questões polêmicas animadas pelo noticiário, pela internet. Da mesma forma que podem ser usadas em causas nobres, cooperam com empreendimentos imobiliários suspeitos no enobrecimento de áreas desvalorizadas.
O importante aqui é participar. A obra de arte é uma forma de participação sem grande diferença de outras atividades. Não se pretende autonomia nem especificidade. O que cabe a ela é se adequar às demandas de um circuito de arte cada dia mais veloz, no qual o mercado e as instituições parecem pedir uma pressa que muitas vezes não condiz com o ritmo de trabalho do artista.
Desenho de Prabhakar Pachpute que foi utilizado no cartaz da 31ª Bienal de São Paulo.
Nas duas maiores exposições em cartaz em São Paulo neste segundo semestre, a arte parece anêmica. Boa parte da produção é veículo de informação. Trata-se da 31ª Bienal Internacional de São Paulo, em cartaz até 7 de dezembro, e da mostra Feito por brasileiros, no Hospital Matarazzo, encerrada em 19 de outubro. São exposições com propósitos muito diferentes, mas formalmente parecem próximas. Além disso, ambas têm escala, um orçamento vultoso, publicidade onipresente pelas ruas de São Paulo (ao menos no centro expandido) e grande público.
Pela enésima vez, a Bienal escolhe a arte politizada como norte do que importa na produção recente. O grupo de curadores, capitaneado por Charles Esche, parte do anglicismo “arte política” – transformando um substantivo em adjetivo – como o trabalho apropriado para revelar realidades sociais escamoteadas e colocar as pessoas em contato com o que chamam de vivências transformadoras. Qualquer papel menos participativo, menos afirmativo, menos normativo não interessa. Como disse Lorenzo Mammì em seu ensaio A arte depois da arte, em um contexto distinto tal solução transforma a produção artística em “um salão nobre da comunicação (…). Regride à função pré-renascentista de carregar questões, sem ser, ela mesma, uma questão[1]”.
Logo no segundo piso da exposição, Yuri Firmeza mostra duas fotografias que ele fez em uma varanda de Fortaleza. Uma fotografia é antiga, dele, ainda criança, com uniforme escolar, flexionando os bíceps. Ao lado, aparece uma imagem mais recente, com ele fazendo o mesmo gesto, já barbado. No retrato feito quando ele era criança, o fundo é uma paisagem simpática, enquanto a imagem seguinte mostra Fortaleza tomada por torres horríveis e o espetáculo da especulação imobiliária. A vista da cidade sumiu. É como se o artista colocasse dois momentos para nos fazer lamentar. Eu até tendo a estar de acordo com a posição do artista, mas é só isso? É só uma lamúria moral diante da selvageria do movimento do capital? Posso ter perdido alguma coisa, mas parece que não. Acredito que o trabalho simplifique uma relação social e urbana complexa e torne a obra o veículo de uma nostalgia infantil que faz com que o mundo pareça mais simples do que é.
“A fortaleza”, de Yuri Firmeza
Pena é que essa aceitação ou recusa de algum fenômeno social domina a exposição. Essa postura extirpa qualquer potência dialética dos trabalhos, qualquer dúvida de que aquilo de fato acontece, qualquer ambiguidade. As obras se dedicam aos nobres valores e a um iluminismo de banca de jornal, ou de sites de internet, que nos revela os males que nos afligem e do qual nós não estamos cientes.
Quando eles tentam sair do circuito de arte contemporânea, adotam a linguagem dos slogans, como na apropriação que fazem dos cartazes da justa luta dos moradores da Favela do Moinho. Os textos não têm relevância fora de seu contexto. Não são elaborações estéticas. São protestos pontuais. Parecem estar na exposição não por sua potência individual, mas por condescendência e por representar uma luta identificada com a ideologia dos curadores. As obras atuam como ventríloquos de causas justas. A intenção é boa, mas o resultado não é. Parece não existir fora do circuito de arte e nas periferias do Brasil uma vida estética pujante. Bem, o rap nacional é muito melhor do que esses cartazes. Tem mais complexidade e densidade. Os grandes mestres da arte popular brasileira também elaboram esses conflitos de forma muito melhor. Para não falar do novo cinema feito nas periferias da Ceilândia e de Contagem. Mas o que importa para os organizadores da Bienal é apoiar o lado certo da história. Tanto faz se a reflexão é boa ou não.
Imagem de “Apelo”, das artistas Clara Ianni e Debora Maria da Silva. Crédito: Gerard Franceschi/Divulgação
Aliás, para fazer justiça, o filme de Clara Ianni e Débora Maria da Silva extrapola a denúncia e o esclarecimento das massas. Extrapola o caráter informativo e transparente da exposição. Trata-se de um vídeo em um cemitério onde vítimas do esquadrão da morte estão enterradas. A situação é perturbadora. Pois, em vez de denunciar a violência contra os mais pobres, o filme mostra um processo de eliminação de qualquer vestígio de que essas pessoas foram assassinadas. É como se mostrasse aqueles corpos sumindo diante de nós e só restasse a lembrança de quem sofreu com o crime. É comovente a fala de Débora Maria da Silva, mãe de uma das vítimas da chacina. Talvez seja, com os filmes de Val del Omar, o melhor trabalho da Bienal.
Mas o que prevalece é o maniqueísmo e o palpite. Em casos piores, parecemos em uma lista da internet, em uma rede social, com todo mundo afirmando que sua postura diante do mundo é mais justa do que a do outro.
“Martírio”, de Thiago Martins de Melo
Apesar de ser melhor do que isso, o trabalho Martírio, de Thiago Martins de Melo, quer ser comentário, dedo na ferida. Ele se parece com painéis kitsch que vemos nas rodoviárias, nos prédios públicos ou nos salões de aeroporto. Aquelas pinturas que reúnem heróis locais, personagens folclóricos, cabeças amontoadas. Diante dos painéis de Thiago, vemos esculturas de índios americanos. Como se a luta que ele retrata fosse ancestral. Na superfície, as bordas são tomadas por cenas chocantes dos conflitos, enquanto um elenco de vítimas da pistolagem escravocrata e do poder econômico está no centro. Eles surgem brilhantes, cândidos, distantes daquele conflito, purificados, como se santificados[2]. Por isso, parece que o sofrimento valeu a pena, como se essa carnificina tivesse alguma dimensão heroica, redentora. Desculpe-me, mas não tem. Seria melhor que todas essas pessoas estivessem vivas. O painel acaba por parecer o oposto simétrico do de Clara Ianni. Lá a violência é sem sentido e sem monumento (como em obras anteriores de Nuno Ramos, Carlos Zilio e Antonio Manoel); em Martírio morrer é heroico. O quadro acaba por mimetizar narrativas simplistas para falar desse tipo de tragédia. A forma é muito convencional, não dá conta do tema.
Mas a exposição é pior que isso. Por exemplo, Nilbar Güres, que tem um vídeo interessante, faz esculturas, objetos, com sentido publicitário pueril. O esforço da maioria dos trabalhos é veicular conteúdos facilmente codificados, como o sofrível desenho de Prabhakar Pachpute. O painel, que ocupa todo o centro do prédio, é primário. É antiquado, esquemático e cheio de piedade pelas classes oprimidas. É um amontoado de clichês. Assim, se passa da antiarte para o que existe de mais convencional e mal feito.
“Arqueologia marinha”, El Hadji Sy.
Também é o que acontece com Arqueologia marinha, de El Hadji Sy. Em um primeiro olhar, aquele pano azul, com cordas a desenhar figuras humanas me lembra a decoração de uma pizzaria hippie de Caraguatatuba ou o cenário de botequins em São Tomé das Letras. Mas aí, depois de ler as informações, soube que aquilo, junto com sacos de estopa recortados em forma orgânica, era um monumento ao holocausto da escravidão negra. Olha, se existe uma questão histórica importante no Brasil é essa. Mas, francamente, ninguém vê o que se anuncia nesse corredor de tecidos. Então, por mais que a intenção seja abordar temas sérios, o resultado consegue ser pouco menos do que constrangedor. Algo semelhante acontece com o Espaço para abortar. É miserável na concepção e primário na execução. A exposição mais importante do país chama gente que defende causas respeitáveis, mas com trabalhos medíocres, para ser generoso.
O importante é comentar, marcar posição, não aprofundar, não mostrar contradições, não tornar o mundo mais complexo, não atribuir singularidade as obras. Para me valer do vocabulário das passeatas do ano passado, as obras estão ali para representar determinados assuntos discutidos na internet. Por isso, mostram museus da arte gay, monumentos da iconografia travesti, mas não o trabalho dos artistas expostos em um lugar ou outro. Ali, eles representam uma causa, não uma obra. Preferia ver os trabalhos de cada um daqueles artistas, suas singularidades e não um abaixo-assinado em forma de instalação.
Empreendimento imobiliário
O curioso é que essa relação pouco reflexiva de certa arte é comum a uma Bienal pretensamente crítica e a uma mostra que se dedica a limpar a barra de um empreendimento imobiliário, no mínimo, controverso. Na exposição do Hospital Matarazzo, o que fala mais alto é a mistificação de um prédio. Assim como o conflito político é o tema da Bienal, a sede da exposição é o tema de Feito por brasileiros.
A exposição é o abre-alas de um empreendimento imobiliário, ainda não autorizado, que pretende fazer na área do hospital um shopping center e um hotel de luxo, seis estrelas. Quem toca é um grupo francês chamado Allard. O investimento é alto e se esperam lucros astronômicos.
Obra de Arne Quinze na entrada do Hospital Matarazzo
A maior parte dos trabalhos lembra uma cenografia. Sugere que naquele prédio, largado à sua própria sorte, coisas aconteceram. Por vezes, o trabalho reúne a memória pitoresca do hospital, como na instalação de Vik Muniz. Em outros momentos, sugere acontecimentos na ruína, algo que acontece ali, longe dos olhos e celulares com máquina fotográfica dos espectadores, como os trabalhos de Cinthia Marcelle, Arthur Lescher, Dora Longo Bahia. Por melhor que seja a intenção dos artistas, o que aparece é a transformação de um prédio sem graça em um acontecimento espetacular. Enquanto eu tomava essas notas, 30 mil pessoas tiravam fotos de si mesmas com o telefone celular.
Algumas obras são propícias para os tais selfies. Os trabalhos de Arne Quinze e Kenny Scharf parecem ter sido feitos para isso. Aliás, são monumentos vivos do envelhecimento da linguagem da instalação. Nunca vi trabalhos tão parecidos com a decoração de lojas conceito. Cansei de ver tendas como a de Quinze em eventos luxuosos.
Até trabalhos de bons artistas, ali, fazem figuração. É a arte show-room, a serviço da monumentalização do nada. Pior, a serviço do fetiche da especulação imobiliária. E a adesão dos trabalhos ao movimento de autovalorização do empreendimento é tamanha que, em muitas legendas, o nome do artista é acompanhado do nome do patrocinador, com a mesma tipografia, com o mesmo destaque.
Estou convencido de que essa adesão da obra aos expedientes especulativos de um grupo econômico só é possível depois da desvalorização da complexidade e da reflexividade na arte. Aliás, crítica empreendida por esta Bienal, a plenos pulmões. Em uma exposição e em outra, sobra pouca coisa para ver, tudo parece mais ou menos o mesmo. A produção dos artistas é achatada, torna-se curiosidade que nos informa sobre determinados temas. Está tudo a serviço de quem fez a encomenda. Danem-se as reflexões individuais. Aliás, como nesses escritórios pontocom, o trabalho solitário, meditativo, é mal visto. Vem daí a festa dos coletivos.
Bem, talvez a recusa sistemática à autonomia reflexiva da arte tenha nos levado a tal barafunda. Com ela, talvez os artistas se recusassem a participar de exposições como essa do Hospital Matarazzo. O meio de arte parece cantar em pensamento a música do Cartola: “(…) se eu tivesse autonomia, se eu pudesse gritaria, não vou, não quero”.
Infelizmente, o que se escuta é Alegria, alegria, do Caetano Veloso, em ritmo de adesão: “Eu vou. Por que não? Por que não?”.
NOTAS:
[1]MAMMÌ, Lorenzo: “A arte depois da arte”, em O que resta: Arte e crítica de arte. São Paulo, Companhia das Letras, 2012 (p.14).
[2]Esse lado religioso, maniqueísta, vem um pouco da forma. A pintura parece vir das capas de disco da gravadora de heavy metal mineira Cogumelo ou das capas de disco do Slayer (aliás, um motivo para eu simpatizar com o trabalho).