O cineasta cubano Tomás Gutiérrez Alea cedeu o depoimento abaixo sobre a origem de Memórias do subdesenvolvimento (1968), filme divisor de águas do cinema latino-americano que o IMS lança em DVD. O depoimento foi editado por José Carlos Avellar, coordenador de cinema do IMS, que acrescentou notas explicativas:
O cineasta Tomás Gutiérrez Alea
[ A vontade surgiu de imediato, na leitura da novela de Edmundo Desnoes, “vi que queria trabalhar nela” contou Gutiérrez Alea em entrevista para Sílvia Oroz, entre dezembro de 1984 e janeiro de 1985, para o livro Tomás Gutiérrez Alea, os filmes que não filmei – Editora Anima, Rio de Janeiro, 1985.
“Memórias do subdesenvolvimento foi escrita de um só tiro, é muito curta, mas é cheia de insinuações e muito inquietante. À primeira vista não era nada cinematográfica; é narrada em primeira pessoa, e cheia de impressões subjetivas. Quando chamei Desnoes e propus que trabalhássemos juntos ele se surpreendeu: achou uma ideia louca. Eu sentia que podíamos fazer alguma coisa interessante (…) O trabalho em si foi muito fluido, surgiram novas ideias que depois Desnoes reescreveu sob forma de capítulos novos e incorporou à novela. Eu também tinha algumas ideias antigas, e estava louco para colocá-las em algum filme, sem saber como. De repente me dei conta de que era essa a oportunidade. Foi uma grande felicidade.
A novela conta as impressões subjetivas de um intelectual diletante que permanece em Cuba depois do triunfo da revolução. Fica para observar, à margem de qualquer participação, e tem uma atitude irônica e crítica frente aos fatos da nova realidade. Como levar esse tema ao cinema? Desde o início do trabalho, estávamos de acordo em que manteríamos, por um lado, o ponto de vista subjetivo do personagem, mas situando-o constantemente dentro da realidade, vendo-o a partir do nosso ponto de vista; isto é, com relativa objetividade. Para isso, usamos uma mise-en-scène onde – às vezes – se repetiam os mesmos acontecimentos, vistos de diferentes pontos de vista, estabelecendo assim relações diferentes para ver o mesmo objeto. Com o mesmo fim – e ao longo de todo o filme – intercalamos cenas de documentários, quando a trama permitia, e testemunhos filmados com a câmera oculta, para estabelecer uma relação mais direta com a realidade. Ou seja: partíamos do mais subjetivo, a visão distanciada do personagem, para a capacidade de aproximação com a realidade mais imediata propiciada pelo cinema. Isso criava também a possibilidade de diversos planos de leitura, e de constante julgamento do personagem. Embora o recurso fosse complexo, nos permitia observar de forma verdadeiramente crítica aquilo que nos rodeava, inclusive a nós mesmos.
Não é um filme que critica de fora, como o personagem. A crítica que fizemos nos compromete – já que estamos dentro – portanto é, em boa medida, uma autocrítica, dirigida a um espectador a quem queremos questionar para que assuma a mesma atitude (…)
Essa mecânica gerou mal-entendidos e houve gente que dizia Por que um filme com um anti-herói, um pequeno-burguês que se desmorona ante os olhos do espectador? Que tem isso a ver com a revolução? Claro que tem a ver, porque através desse anti-herói começam a se revelar uma série de impulsos que pertencem ao passado mas que ainda permanecem dentro de nós. Essa revelação se produz com a identificação que provoca esse homem que vai se desmoronando diante de nós, imerso numa realidade que está nascendo. Essa contradição é o que o filme tem de mais positivo”.
O depoimento a Sílvia Oroz foi feito dezesseis anos depois da estreia, em agosto de 1968, de Memórias do subdesenvolvimento, dois anos depois da publicação de Memorias de Memorias como um apêndice a Dialéctica del espectador, em novembro de 1982, pela Unión de Escritores y Artistas de Cuba. Em Memórias de Memórias, Tomás Gutiérrez Alea propõe uma análise crítica de seu filme a partir da questão resumida no parágrafo citado acima, para reafirmar que a contradição é o que o filme tem de mais positivo. ]
Se não queremos nos contentar com fórmulas tradicionais, que tendem a simplificar e esquematizar a realidade em nome da exaltação dos valores revolucionários, se não nos contentamos com uma retórica inútil, se pretendemos filmes ativos e mobilizadores, que estimulem a participação no processo revolucionário, não basta um cinema moralizante assentado em prédicas e exortações. É necessário elevar e estimular o senso crítico. Mas, como criticar e ao mesmo tempo afirmar a realidade na qual estamos inseridos? Em que sentido, ou contra quem se dirige essencialmente a crítica de Memórias do subdesenvolvimento? Vejamos os diversos aspectos do mecanismo que um filme deve gerar na sua relação com o público.
A imagem da realidade oferecida em Memórias é uma imagem multifacetada como um objeto que é contemplado de diversos pontos de vista.
Cena de Memórias do subdesenvolvimento
As cenas que servem de base para os créditos mostram um baile popular. Poderia ser um baile de carnaval com música quente e uma certa aparência de caos, de total desordem. Logo soam disparos de revólver que quase se confundem com a música. Podemos perceber apenas um homem que foge no meio dos dançarinos. A música continua com o seu ritmo persistente. As pessoas não param de dançar, nem sequer quando presenciam o corpo ensanguentado de um homem caído no meio da multidão, e quase imediatamente levantado por agentes da ordem que o levam embora. Nada mudou. O baile continua, e no meio dele o rosto desafiante de uma negra fixa-se como expressão de uma violência subterrânea. Tudo foi posto diante do espectador a partir do nosso ponto de vista mais “objetivo””, mais desapegado, menos comprometido, mais próximo de um “plano geral”. Adiante, no trecho final do filme, voltamos ao mesmo baile, à mesma situação, mas então o veremos a partir de outra perspectiva. Novos significados irão aflorar e serão suscitadas novas inquietações: as imagens são as mesmas ou muito parecidas, mas o som não é aquele que tínhamos escutado antes e que correspondia realmente (poderíamos dizer: realisticamente) à cena. Agora são sons desconexos, vagos, que não definem um centro de gravidade, que flutuam confusamente e respondem a um estado de ânimo evidentemente dissociado do que a imagem mostra no seu conjunto. Na imagem, também outro elemento novo: agora Sergio está presente na multidão que dança. Está e não está. Ou seja, procura estar, pois foi com Noemí ao baile, mas é incapaz de inserir-se na corrente geral de despreocupação, relaxamento, distensão, alegria e violência. Por mais que procure, não consegue mergulhar no clima que envolve o “seu” povo. Os sons expressam essa tensão subjetiva do protagonista e, ao mesmo tempo, nos mantêm distantes do baile, impedindo que nós, espectadores, sejamos, arrastados passivamente pelo êxtase. Não é a mesma situação que vimos no início: agora sentimos com Sergio essa distância que o separa do conjunto em que se move, o que nos leva a formular critérios. Ao ver a mesma cena com Sergio como referência, percebemos que nossa apreciação a partir do ponto de vista dele é diferente da que tínhamos a partir da nossa perspectiva como espectadores, sem qualquer informação prévia, no princípio do filme. Talvez a metáfora do homem que morre vítima de uma ação violenta no meio de um baile popular – que não se interrompe em nenhum momento enquanto transcorre o incidente, o que mostra a essência da violência – tenha sido suficientemente significativa para o espectador nos momentos iniciais do filme. Agora, vendo-a pela segunda vez, a partir de outra perspectiva, e relacionando-a com o personagem central, do qual já temos a necessária informação para prever o seu destino trágico, a metáfora expande-se, alarga-se para além do seu significado primário, direto, contingente. Ela se abre, permitindo uma primeira análise da realidade que o personagem, embora nela envolvido, é incapaz de compreender em profundidade.
[ “A filmagem foi feita com uma equipe reduzida”, anotou Alea em suas Notas de trabalho, espécie de diário de filmagem de Memórias do subdesenvolvimento, publicadas na revista Cine Cubano nº 45/46 agosto/outubro de 1967: “a cada passo sentíamos que o subdesenvolvimento nos tocava, nos limitava, nos impedia de sonhar como o protagonista”. O subdesenvolvimento, continua, “é um fator que condiciona também a linguagem com que nos expressamos. Daí resultou uma linguagem aberta, aparentemente desarticulada, mais perto de uma colagem que de una narrativa literária, mais perto de um documentário do que de uma ficção tradicional, ou, se quisermos mais perto do real que da ficção. O cinema, por natureza, registra – pela objetiva da câmera e pelo microfone do gravador – a imagem de uma realidade pronta, concreta. Não registra cores e sons, mas pessoas, paisagens, situações. E utiliza essas imagens da realidade pronta como matéria prima para a elaboração da obra. A realidade se manifesta em diversos níveis: desde a paisagem natural, os objetos, ou o canto de um pássaro, até as mais intelectualizadas criações dos homens, e entre estas últimas, suas visões e interpretações dessa realidade. Na obra, o importante não é espelhar a realidade, mas enriquece-la, estimular a sensibilidade do espectador, desenvolve-la, debater um problema. ]
Depois, as primeiras cenas no aeroporto. O êxodo dos primeiros anos depois do triunfo da Revolução. Durante todo o tempo, essas cenas em que não se diz nada, mostram só o momento da despedida; observamos Sergio e não podemos deixar de perceber sua mal dissimulada mistura de alívio e incômodo. Quando ele regressa à cidade no ônibus e pensa neles, nos que se foram, e principalmente na sua mulher, repetem-se as mesmas cenas, mas agora a partir do seu ponto de vista: é quando, então, vemos os rostos de sua mulher e de seus pais, é quando escutamos a voz de Sergio, fria, quase cínica, contrastando com a imagem patética de seus familiares. O uso de uma tele-objetiva nessas imagens contribui para isolar do ambiente geral do aeroporto os rostos que Sergio evoca, além de contribuir para que tais imagens sejam percebidas como sonhadas, ou pensadas, de qualquer forma, não como imagens reais. Poderíamos dizer que primeiramente contemplamos a cena da despedida “objetivamente”, sobre Sergio, e depois “subjetivamente”, a partir de Sérgio.
No princípio do filme, ouvimos num gravador uma discussão entre Sergio e sua mulher. É uma discussão frívola que começa com uma pequena provocação da parte dele e vai adquirindo um tom cada vez mais agressivo. As imagens que acompanham a gravação mostram Sergio sozinho na casa ainda em desordem, logo depois da partida da mulher, brincando com as roupas dela, prolongando a farsa, até que pouco a pouco o jogo vai se convertendo numa amarga demonstração de seu cinismo e de sua solidão. Mais adiante, na noite em que Sergio manda Elena embora, depois de ter dormido com ela pela primeira vez, ele se lembra da discussão com Laura. Repete-se a cena, que então continua para além do ponto em que Sergio tinha interrompido a gravação: agora existe uma correspondência entre som e imagem de Laura que cai ao chão em meio à briga e se levanta com um ataque de choro, insulta Sergio e reafirma sua decisão de sair do país. Outra vez se apresenta aqui primeiro a evocação do fato, relacionado com o estado de ânimo de Sergio, e depois volta-se a apresentá-lo como uma reprodução com caráter de informação dada “objetivamente”. (Não importa que, nessa segunda vez, também seja tomado como ponto de partida um determinado estado de ânimo de Sergio, nem que a imagem de Laura seja vista através dos olhos de Sergio: a cena, aqui, está apresentada com certa objetividade.)
Mais adiante, durante um dos primeiros passeios de Sergio pela cidade, vemos entre outras coisas os rostos das pessoas nas ruas tal como ele as vê. São faces tristes, angustiadas, infelizes. Sergio se pergunta: “Que sentido tem a vida para eles? E para mim? Que sentido tem para mim? Mas eu não sou como eles…” A imagem se congela sobre o rosto de Sergio que parece igualmente infeliz. (Saltamos outra vez do “subjetivo” para o “objetivo”.) Quando, em plena Crise de Outubro, Sergio também observa as pessoas na rua, vemos novamente os rostos, mas dessa vez eles mostram um estado de ânimo contrastante com o de Sergio, que caminha pelas ruas preocupado e temeroso com o desastre atômico que ameaça a todos, ameaça que ele parece sentir mais que os outros. Em ambos os casos a imagem dos rostos é “objetiva”, na medida em que são rostos verdadeiros, captados na rua num momento qualquer. Contudo, a significação de uns e outros é bem diferente. Se, a princípio, percebemos uma impressão de desolação é porque, evidentemente, o protagonista, com o qual tendemos a nos identificar num primeiro momento, projeta seu próprio estado de ânimo sobre a realidade que o cerca e nos leva a vê-la sob sua óptica. Essa é a realidade que ele vê, a que ele escolhe, não a que poderíamos denominar, a rigor, de realidade objetiva. Os rostos do final também não constituem por si mesmos uma realidade objetiva, mas nos aproximam muito mais dela, porque negam a apreciação anterior sem cancelá-la totalmente. A verdade não está em uns ou outros. Nem mesmo na soma de uns e outros, mas sim naquilo que o confronto de uns e outros com o protagonista ao longo do filme sugere ao espectador.
Essa apreciação multilateral do objeto como princípio estrutural do filme não é precisamente a “ambivalência” da qual já falamos no sentido de ambiguidade ou indeterminação. Ao contrário, é a exasperação de contradições cujo sentido dentro do filme é contribuir para as inquietações e os impulsos para a ação que aspiramos despertar no espectador. Constitui, assim, um incentivo para tomar distância frente à imagem – estimula, portanto, uma atitude crítica, ou seja, uma “tomada de posição”.
[ Durante a montagem, comentando tanto o Sergio da novela quanto o do filme ainda em construção, – nas Notas de trabalho publicadas em Cine Cubano nº 45/46 agosto/outubro de 1967 –, Alea diz que “por meio desse personagem, que em princípio tenderíamos a não aceitar, podemos descobrir novos aspectos da realidade que nos rodeia. Às vezes ao lado dele. Outras, contra ele. Sua atitude de espectador com um mínimo de lucidez desperta nosso sentido crítico. Ao mesmo tempo, suas interpretações da realidade, aqui e ali hipertrofiadas, e sempre subjetivas, são também objeto de nossa observação crítica. A confrontação de seu mundo com os ‘documentos’ do mundo que mostramos (a nosso visão subjetiva do mundo, não a do personagem) pode ser rica em sugestões. O processo de adaptação da novela ao filme continuou depois de terminado o roteiro, durante a filmagem, com a introdução de cenas improvisadas. E avançou até a montagem e a sonorização, pois deixamos de desenvolver algumas coisas no roteiro, com o propósito de encontrar soluções numa filmagem espontânea, e por tanto imprevisível. O que estava previsto era a decisão de trabalhar como quem filma uma espécie de documentário sobre um homem deixado sozinho. O cinema acrescenta à novela uma visão ‘objetiva’ da realidade para que ela se choque com a visão subjetiva do protagonista. A fotografia, o documento direto, fragmentos de cinejornais, as gravações de discursos, as filmagens na rua, com a câmera oculta em algumas oportunidades, eram recursos que queríamos explorar”. ]
Temos, desse modo, de um lado, a visão da realidade que o personagem nos transmite em suas reflexões e em seus julgamentos críticos. De outro, temos o próprio personagem como objeto do nosso julgamento. Trata-se de um personagem que observa a realidade como um espectador distante, com suficiente senso crítico para provocar outros julgamentos no espectador do filme. O telescópio na varanda de Sergio é o símbolo mais contundente da sua atitude perante a realidade: ele usa esse objeto constantemente para “analisar” a cidade. Vê tudo de cima e de longe, é capaz de julgar a realidade – a partir de seu ponto de vista subjetivo –, mas não participa dela ativamente. O telescópio acaba se transformando num símbolo do personagem. É um símbolo importante, de alguém que está vivendo em Havana como se a cidade fosse um objeto de laboratório. A ideia surgiu na filmagem, fruto de uma estrutura de trabalho muito aberta. Não sei como não descobrimos ou inventamos isso antes.
O personagem julga tudo, incluindo sua própria pessoa, mas seu juízo nem sempre é lúcido, ainda que em alguns momentos pareça muito perspicaz. E, por último, temos a visão da realidade “documental”, oferecida em contrapartida à visão do protagonista.
A inclusão no filme de imagens documentais que se alternam com as imagens de ficção nos permite ampliar consideravelmente o conjunto de relações vividas pelo protagonista. Contudo, o mais importante é que a relação entre o mundo subjetivo do protagonista e o mundo objetivo em que está inserido percorre diversos níveis de aproximação da realidade. Como se trata da realidade que o espectador deixou para trás momentaneamente, este percurso facilita seu retorno à mesma, carregado de inquietações e com um maior grau de informação e de compreensão.
As imagens documentais contribuem para situar o conflito no seu marco social e histórico, chegando ao espectador de diversas formas: diretamente, quando acompanham algum comentário ou reflexão do protagonista; por meio da televisão, do jornal ou rádio, como informação noticiosa; e, finalmente, como espaço físico no qual se move o protagonista (quando caminha pela rua contra o fluxo dos que caminham massivamente para uma concentração num Primeiro de Maio, quando está na piscina do Hotel Riviera, etc., todos eles momentos filmados sem uma preparação prévia, com câmara oculta ou, pelo menos, com o cuidado para alterar o mínimo possível o desenrolar espontâneo das situações que surgiam).
[ No depoimento a Silvia Oroz para Os filmes que não filmei, Alea acrescenta:
“A cena em que Sergio caminha em sentido contrário ao da multidão, no Primeiro de Maio, não estava prevista. Havia no roteiro uma situação em que ele vai ao banco tirar um dinheiro, mas nós cometemos um erro na programação da filmagem, e não percebemos que o dia escolhido para fazer essa cena era o Primeiro de Maio – o dia do trabalho – e os bancos estariam fechados. Além disso, havia uma concentração na Praça da Revolução. Decidimos então filmar Sergio caminhando pela rua, sem rumo, em direção contrária à multidão, que se dirigia à praça. Aí encontramos um grupo cantando. Isso foi casual, esbarramos com essa conga e a incorporamos. Uma estrutura aberta permite esse tipo de integração. Outro exemplo, a mesa-redonda Literatura e revolução, que tínhamos anotado no roteiro mas não sabíamos como resolver. Aproveitamos um encontro internacional de intelectuais e juntamos David Viñas, René Depestre, Edmundo Desnoes, Salvador Bueno e Gianni Toti para fazer essa cena. Entre o público, estava o dramaturgo americano Jack Gelber. Explicamos ao grupo de intelectuais para que filmaríamos essa mesa redonda e pedimos a Jack Gelber que fizesse urna pergunta. Isso foi uma loucura. Sentia que, a qualquer momento, perderia o controle da situação. Havia uma grande dispersão e eu tinha que estar atento para pegar os momentos-chave da discussão – não poderia filmá-la toda, era muito grande e gastaria muito filme. A certa altura, Gelber se levanta e pergunta por que a revolução estava usando aquela forma arcaica, uma tradicional mesa-redonda, para discutir os problemas da cultura. Nada planejado, pergunto o que lhe ocorreu na hora, e no filme a pergunta serviu para fechar a cena. É outro exemplo das possibilidades de trabalhar numa estrutura aberta”. ]
Embora imagens mais ou menos “documentais” sejam as mais idôneas para expressar o mundo objetivo em que se encontra o protagonista, algumas correspondem ao mundo subjetivo dele e refletem seu estado de ânimo, seu pensamento, sua consciência (os rostos que observa na rua, por exemplo). Isso é a melhor prova de uma falsa objetividade, de que não se trata de uma imagem propriamente ‘objetiva’. Ou seja, não devemos confundir-nos diante das imagens documentais, – conseguidas por meio de um processo de captação direta de aspectos da realidade que são incluídas no filme (fragmentos de cinejornais, fotos de revistas, notícias de jornal, gente na rua surpreendida por uma câmara oculta), pensando que constituem o reflexo objetivo da realidade em que se desenvolve a trama – a ficção. Essas imagens correspondem a uma seleção e uma ordenação realizadas pelos autores do filme, e estão marcadas portanto pela subjetividade deles. São tão tendenciosas quanto as outras imagens que aparecem no filme e que foram cuidadosamente elaboradas antes da filmagem. Ainda no caso dos fragmentos que aparecem incrustados no filme porque pertencem a uma outra ordem de coisas –, essa outra dimensão, que aparentemente nada tem a ver com o desenvolvimento dramático ou narrativo, mesmo no caso dos fragmentos que conservam, de alguma maneira, sua autonomia (fotos de revista, trechos de noticiários) –, uma vez que foram trazidos para fazer parte do filme, não podem ser entendidos isoladamente, mas apenas em sua estreita relação com o resto da obra, no contexto em que estão inseridos.
Desse modo, o confronto entre o indivíduo e a sociedade, entre a consciência individual e as circunstâncias históricas que a condicionam de uma maneira ou outra, é levado a cabo por duas linhas de desenvolvimento que se entrelaçam, dois focos de crítica, duas perspectivas, dois ângulos de visão: um reflete o ponto de vista subjetivo do personagem, e outro, o ponto de vista “objetivo” dos autores do filme tanto sobre o personagem como sobre a realidade que o envolve, que nos envolve.
[ Num comentário originalmente publicado na revista Pensamiento crítico nº 42, Havana, 1970, Fernando Pérez (mais tarde realizador, entre outros filmes, de Suite Habana, 2003) propõe uma análise próxima dessa feita por Alea: “Os tambores de Pello explodem na tela, ensurdecedores, e uma multidão dominada pelo ritmo e pela música estremece entre três ou quatro cordões de afrokanas, com uma sensualidade perto de delírio. Os compassos do moçambicano Teresa não deixam espaço para a reflexão – tudo é movimento, prazer, gozo dos corpos. Num certo momento, entre os tambores e o vozerio, ouvimos dois tiros, como se fossem um outro instrumento de percussão ou uma variação de ritmo. Por cima do cadáver – um estranho, um corpo sem música –, o rio humano. Como uma onda quase elétrica que evolui pouco a pouco para uma ressaca, arrasta em seu impulso tudo o que está fora da exaltação imediata. Os pés continuam a se mover, o ambiente ainda não teve tempo de assimilar o choque sangrento. Quando esse momento termina, a câmera registra detalhes da multidão que se dilui em cadência frenética, inconsciente, entregue de corpo e alma à dança. Finalmente, a imagem se fixa na face atônita de uma jovem negra, suada, ofegante – subdesenvolvida?
Desde suas primeira imagens, Memórias do subdesenvolvimento se revela um filme disposto a exigir do espectador uma participação ativa. Esta participação impõe, acima de qualquer resultado, a necessidade de que ele se defina: o que interessa não é somente o entendimento da mensagem do filme, o espectador deve tomar uma posição, um compromisso com ele mesmo depois de terminada a projeção”. ]
Já estão dados os elementos para a crítica. Agora nos interessa investigar para onde e como esses elementos nos conduzem.
O primeiro objetivo da crítica dentro da Revolução deve ser armar o espectador para a lutar pela própria Revolução, fortalecer os princípios nos quais ela se assenta e acelerar o seu desenvolvimento. Nesse sentido, pode ser interessante ver como a atitude do personagem chega ao espectador pelo mecanismo de identificação e, ao mesmo tempo, como essa identificação com um personagem que constantemente está exercendo a crítica – justa ou injusta, não importa – impede que o mecanismo se torne absoluto, uma vez que contribui para manter vivo o senso crítico no próprio espectador e a compartilhar – ou repudiar – a crítica dos autores tanto sobre o personagem como sobre a realidade que inclui a todos nós.
Assim, a operação desalienadora de Memórias do subdesenvolvimento exige o impulso da identificação do espectador com o personagem. Pode-se indagar: se o filme é dirigido primordialmente ao espectador que vive dentro de uma revolução que há alguns anos já eliminou a burguesia, por que a identificação com um personagem que evidentemente encarna valores que são próprios dessa classe? Sergio é um burguês que não tem nada em comum com o homem das ruas, com o operário, com o camponês ou com o intelectual. Contudo, achamos que não só este último, mas também o operário e o empregado – em muito menor medida o camponês, logicamente, mais por dificuldades de linguagem que por relativa coincidência ideológica – encontram motivos suficientes para estabelecer uma relação de identificação com o personagem. Lembremos que a burguesia foi a classe dominante até o triunfo da Revolução e sua ideologia foi, portanto, dominante até poucos anos atrás. É compreensível que os valores que marcaram profundamente todos os estratos da sociedade durante séculos não desapareçam da noite para o dia. Sem dúvida, essa é uma das questões fundamentais enfrentadas pela Revolução e que o filme assume como base de discussão. Assim, qualquer espectador pode não só compreender o personagem, mas também compartilhar de alguma maneira suas expectativas. Principalmente se são colocados em jogo outros recursos cinematográficos, notadamente do cinema burguês: o protagonista não só é lúcido, inteligente, mas também culto, elegante, de boa aparência, tem senso de humor e está todo o tempo disponível, pois recebe uma boa soma em dinheiro sem necessidade de trabalhar. Além disso tem um apartamento de luxo e deita-se com belas mulheres. Representa, portanto, em certa medida, o que todo homem em algum momento da vida pensa que gostaria de ser ou gostaria de ter. Há mais: Sergio diz coisas, faz observações sobre a realidade em que vive às vezes desconcertantes e contraditórias, mas nem sempre incorretas. Podem significar um desafio e um estímulo para pensar. Evidentemente se trata de uma pessoa culta e, nesse sentido, está acima do nível médio. Sem dúvida sofre com a mediocridade que o rodeia e repudia visceralmente as características que nos faziam parecer uma sucursal de Miami. Isso o leva, inclusive, a ter consciência da significação última de figuras mais complexas como Ernest Hemingway com relação a esta ilha tropical. Todavia, Sergio opõe essa mediocridade àquela que – para ele – é a cultura em sua mais alta expressão: “Sempre quis viver como um europeu”, ele se lamenta. Sua contradição e a fonte da sua dilaceração residem em saber-se alienado em padrões culturais que não são os do seu próprio meio, e, além disso, de não poder assumir seu papel, uma posição de luta.
É um homem vencido de antemão, põe em evidência a colonização cultural de que temos sido vítimas ao longo de toda nossa história e cujas consequências estendem-se mesmo após a Revolução, expressando-se por meio do subdesenvolvimento.
Com todas as suas profundas contradições, Sergio pode conduzir-nos a uma tomada de consciência do significado do subdesenvolvimento tanto no plano econômico como no cultural e ideológico. Há um momento em que o espectador, que a princípio seguia o personagem e compartilhava com ele algumas das suas observações e opiniões sobre nossa realidade, começa a sentir-se incomodado, pois o personagem com quem tinha se identificado vai afundando cada vez mais num mar de contradições, dúvidas e incompreensões paralisantes. Sergio, que não consegue compreender os valores nos quais se assenta o novo mundo que nasce ao seu redor, acaba sucumbindo diante dele. Num sentido profundo, é Sergio que aparece como um subdesenvolvido face a este mundo que o rodeia, em face à Revolução.
Por tudo que se disse até aqui, depreende-se que o objetivo da crítica que Memórias do subdesenvolvimento desata é precisamente o espectador. O espectador que vive dentro da Revolução, que faz parte de nossa realidade revolucionária. É a ele que devem ser revelados os sintomas de possíveis contradições e incongruências entre uma boa intenção revolucionária – abstratamente – e uma adesão espontânea e inconsciente a determinados – e concretos – valores próprios da ideologia burguesa. E o próprio objetivo do filme é questionar a sobrevivência de valores próprios da ideologia burguesa em meio à Revolução. À medida que o filme progride, ao longo da destruição que o personagem sofre, o espectador deve ir tomando consciência de sua própria situação, da inconsequência que significa ter se identificado com Sergio em algum momento. Por isso, quando termina de ver o filme, o espectador não sai satisfeito: não descarregou suas paixões. Ao contrário: carregou-se de inquietações que devem desembocar numa ação, primeiro sobre si mesmo e, consequentemente, sobre a realidade que habita. Trata-se, portanto, de um ato revolucionário: uma tomada de consciência sobre suas próprias contradições e um impulso para chegar à coerência e se projetar ativamente sobre a realidade.
Numa etapa difícil de construção do socialismo, como esta que estamos vivendo, um olhar crítico sobre a realidade, como o de Memórias do subdesenvolvimento pode ser utilizado pelo inimigo, até certo ponto. Principalmente se, na obra, os problemas colocados não são resolvidos com a imagem final, mas tendem a prolongar-se para além da sala de projeção. Uma obra aberta a problemas cujo desenvolvimento ulterior e cuja eventual conclusão colocam-se na consciência do espectador, convidam a refletir, procuram inquietar o espectador, levantam problemas e contradições que ele deve resolver atuando numa direção indicada. É nesses traços, que constituem a aparente vulnerabilidade do filme, que se enraízam a força maior e o alcance de Memórias do subdesenvolvimento.
[ Em 1993, numa entrevista para La Gaceta de Cuba, depois da estreia de Fresa y chocolate no Festival de Berlim, Alea fez uma observação que tanto parece se referir ao filme que acabara de ser premiado quanto prosseguir o que comentou sobre Memorias do subdesenvolvimento: “O cinema se alimenta de feições da realidade para produzir uma obra que, por natureza, deve efetuar uma direta intervenção na realidade. Ao lado do prazer estético, os filmes têm também a necessidade de assumir uma posição frente à realidade, uma opinião. Têm de criticar a realidade e ao mesmo tempo ser objeto de crítica. Acho que a crítica é fundamental para o processo de desenvolvimento. Uma sociedade deve obrigatoriamente tomar consciência crítica dos seus problemas – é a única maneira de se desenvolver. Quando se cai no jogo de ocultar o lado feio da sociedade, eles se perpetuam. Isso, me parece, é o pior que nos poderia acontecer. Nesta ilha a noventa milhas dos Estados Unidos, país com o qual existe uma tensão muito grande, quando exercemos a crítica muita gente diz: ‘criticar a nossa realidade é oferecer armas ao inimigo’. Eu francamente não creio nisso. Não acho isso. Há muitas maneiras de fazer críticas, pode-se fazer internamente ou externamente. Quando o inimigo nos critica procura nos diminuir; mas quando nós criticamos a nossa realidade, ao contrário, o fazemos justamente para melhorar. E ao adotar essa atitude, conscientes da necessidade da crítica, devemos saber que também nos tornaremos objeto de crítica, que iremos receber uma resposta. Há um confronto, uma luta ou, no melhor dos casos, um diálogo, que, acho, é o melhor que pode ocorrer. Não é fácil. Poucos compreendem assim. Muitos se entrincheiram, se fecham. Outros utilizam o poder para cortar o exercício da crítica. A luta não é fácil”. ]