Memórias para além do cárcere – quatro perguntas para Cid Benjamin

Quatro perguntas

06.11.13
Cid Benjamin em 2013 e em 1970, ao ser preso

Cid Benjamin em 2013 e em 1970, ao ser preso

O jornalista, professor e permanente ativista político Cid Benjamin foi um dos protagonistas da mais notória reação à ditadura militar: o sequestro do embaixador norte-americano Charles Elbrick em 1969. A ação rendeu a libertação de 15 prisioneiros (entre eles José Dirceu e Vladimir Palmeira) e custou a perseguição aos autores da empreitada. Integrante do MR-8, Cid era um deles, foi capturado em 1970, torturado no DOI-Codi, no Rio, e só graças a outro sequestro (do embaixador alemão) pôde partir para o exílio. Viveu no Chile, em Cuba e na Suécia, de onde voltou em 1979 com a anistia.

Apenas essa história já renderia um livro. Mas Cid achava que não bastava, e driblou a ideia por muitos anos. Em entrevista ao Blog do IMS, alega que obras semelhantes já tinham sido escritas, como O que é isso, companheiro?, de Fernando Gabeira, e outras menos célebres. Queria combinar o relato com reflexões sobre o que ele e o país passaram nas últimas décadas. São reflexões de um fundador do PT que se desencantou com o partido e migrou para o PSOL, embora se diga consciente das poucas chances eleitorais da legenda.

Gracias a la vida – Memórias de um militante (José Olympio, R$ 35) é um livro que prende o leitor, em seus primeiros capítulos, pelos relatos vívidos de um participante da luta armada contra a ditadura. Num segundo momento, entram as reflexões que convidam para uma avaliação da esquerda brasileira dos anos 1960 para cá, do erro político da luta armada (é a opinião de Cid) à pasteurização partidária de hoje.

Na entrevista abaixo, Cid comenta dois pontos importantes de suas memórias: a decisão de virar a página quanto às torturas que sofreu, evitando ficar aferrado a essa dor; e a certeza de que ele e a esquerda erraram ao condenar até o fim Amílcar Lobo, o médico que examinava os presos políticos para que eles continuassem a ser torturados e que depois, com crise de consciência, revelou parte do que viu.

1 – Por muito tempo você disse que não tinha interesse em fazer um livro de memórias. A distância dos acontecimentos dos anos 1960 e 70 foi fundamental para você decidir escrever agora?

Não é que eu não tivesse interesse em redigir um livro de memórias. Isso eu tinha. É que não tinha muito tempo disponível, devido à luta pela sobrevivência. E havia outro fator, até mais importante. Não estava preparado para fazer o livro que eu gostaria. Assim, preferi que certas reflexões amadurecessem. Se minha intenção fosse apenas fazer um livro de relatos, tudo teria sido mais fácil e, certamente, ele teria saído antes. Mas achei que, para isso, não valeria a pena. Já tinham sido escritos muitos livros de relatos sobre a guerrilha, a prisão e o exílio. O meu seria apenas mais um. E com um agravante: sairia com atraso em relação aos demais. Assim, precisei de tempo para amadurecer reflexões e me sentir em condições de fazer o livro que queria. Ele combina relatos com reflexões sobre a política, o país e a vida em geral.

2 – Você não chega a demonstrar ódio pelos que te torturaram. E diz que a esquerda foi injusta com Amílcar Lobo, o médico que costurou 17 pontos a frio na sua cabeça e que examinava os presos políticos para que eles continuassem a ser torturados. Qual a presença que tem na sua vida hoje as torturas que sofreu?

Cada um de nós é, em boa medida, fruto das experiências que viveu, das quais, em maior ou menor grau, traz marcas. Assim, certamente a tortura me deixou sequelas (além daquela física, mais perceptível, que é a surdez parcial em um ouvido). Mas eu não saberia descrever essas sequelas exatamente. Talvez quem conviva de perto comigo possa responder melhor a essa pergunta. Quanto aos torturadores, carregar pelo resto da vida ódio a eles seria, de certa forma, carregar também a tortura. Prefiro virar a página. Ainda que considere essencial que a sociedade conheça o que aconteceu nos porões da ditadura, para que aquelas barbaridades não se repitam. Mas é uma questão política, não pessoal. Cito no livro uma frase do Buda de que gosto muito: “Guardar ódio é como carregar nas mãos um carvão em brasa para atirá-lo em alguém; você é que se queima.” Já no caso específico do Amilcar Lobo, penso que, de fato, faltou maturidade e grandeza a setores da esquerda, entre os quais me incluo. Lobo era, efetivamente, uma peça daquela engrenagem macabra, pois examinava presos para constatar se eles poderiam ou não continuar a ser torturados sem o risco de morrerem. Além disso, aplicou pentotal – o tal soro da verdade – em alguns presos. Por isso tudo, teve cassado seu registro de médico, o que foi merecido. Mas é inegável que teve problemas de consciência. E é inegável, também, que contribuiu para que viessem à tona alguns segredos importantes dos porões da ditadura. Deu entrevistas à imprensa, prestou depoimentos e escreveu um livro em que relata muita coisa que presenciou. Foi o primeiro a falar da tal Casa da Morte de Petrópolis. Afirmou ter visto Rubens Paiva moribundo no DOI-Codi e outras coisas mais. Por isso, foi perseguido pelos militares ligados ao aparelho repressivo e chegou a sofrer um atentado. Teve um fim de vida difícil, abandonado por todos, com a exceção da mulher e da filha, isolado num sítio no interior do estado do Rio. Tinha pesadelos horríveis, sonhando que ele próprio estava sendo torturado. Enquanto isso, pelo seu passado e por, de fato, não contar tudo o que viu, foi também pressionado pela esquerda, que não o perdoava. Olhando para trás, penso que teria sido mais proveitoso se tivéssemos compreendido seu drama pessoal e tratado de, ao seu lado, extrair tudo o que ele sabia sobre o sinistro aparato de tortura e morte montado pela ditadura. Mas não vejo essa questão apenas do ponto de vista das vantagens políticas. Teria sido também mais humano se tivéssemos agido de outra forma. Essa crítica é também uma autocrítica, porque eu próprio não tive maturidade para o comportamento que, no livro, aponto como o mais acertado.

3 – O capítulo sobre o sequestro do embaixador americano Charles Elbrick em 1969 tem como título “Um golpe de mestre”. Você transmite orgulho pela ação, da qual foi um dos protagonistas. Mas, em vários momentos do livro, afirma que a luta armada foi um erro. Participar da guerrilha foi um mal necessário? E como se sente tendo atirado no peito de um policial, que não morreu?

Não escondo o orgulho por ter feito parte de uma geração que se jogou por inteiro na luta contra a ditadura e por transformações que nos levassem a uma sociedade mais justa e fraterna. E continuo afirmando a legitimidade da guerrilha e da luta armada contra o regime militar. Aliás, até a doutrina da Igreja e a Declaração dos Direitos do Homem reconhecem o direito à revolta contra a opressão. Mas a opção pela luta armada, naquele momento e naquelas condições, foi um erro político. Não tinha condições de crescer, derrubar a ditadura e caminhar para transformações sociais que levassem ao socialismo. Isso não tira a legitimidade daquele movimento armado nem desvaloriza a abnegação dos que se jogaram nele por inteiro, arriscando a própria vida. Assim, dentro de uma estratégia geral errada e fadada ao fracasso, o sequestro do embaixador americano foi um golpe de mestre. Além de libertar 15 presos, humilhou a ditadura e foi uma enorme propaganda da guerrilha. Quanto ao policial ferido por mim numa ação armada, embora torcesse para que ele não morresse, não tive remorsos. Era uma situação de combate. Se eu não tivesse atirado, dois companheiros teriam sido metralhados por ele.

4 – Você fundou o PT e apresenta fortes críticas àquilo que o partido se tornou, citando no final do livro os casos de corrupção, as alianças estranhas e até a macabra série de assassinatos que se sucederam à morte do prefeito de Santo André, Celso Daniel. Se, como também você diz, o PSOL não é uma alternativa com chances de chegar ao poder, que esperança há para a militância política de esquerda?

Fui fundador do PT e tive alguns dos anos mais profícuos da minha militância naquele partido. Optei por deixá-lo por considerar que, na política, ele estava excessivamente parecido com o PSDB, e que, nos métodos, tinha se tornado excessivamente parecido com o PMDB. Algo é inegável: o PT deixou de ser um partido de transformações sociais. Quanto ao PSOL, o que considero é que, nesta conjuntura, suas chances de um crescimento exponencial são mínimas. Por isso, ele não tem chances de chegar ao poder a curto prazo. Ainda assim, é um partido necessário. O Brasil sem o PSol seria muito pior. Suas dificuldades em chegar ao poder a curto prazo são as dificuldades das posições de esquerda se afirmarem no país, depois de 12 anos de pasteurização petista, que confundiu esquerda e direita. E quando isso ocorre, quem ganha com a confusão é o conservadorismo. Em 2014, se a reeleição de Dilma for ameaçada, o que não creio, o será por uma alternativa igual ou à direita dela. Para os bancos, as empreiteiras, os ruralistas e o agronegócio, este é o melhor dos mundos. Ganharam muito com o PSDB e ganham muito com o PT. Aliás, hegemonia sólida é isso: não importa o resultado da disputa, os setores hegemônicos vão ganhar sempre e não terão sua posição ameaçada. Mas isso não é motivo para esmorecer. Trata-se, apenas, de uma avaliação realista do quadro do país. Ela não deve desestimular os militantes de esquerda. Ou só se faz política quando há uma perspectiva de poder a curto prazo?

, , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , ,