Do ruído ao silêncio

Colunistas

15.06.16

A imensa profusão de artigos, posts, debates, palestras, narrativas, ocupações, discussões nas ruas, nas praças, nas universidades, nas redes, sobre a crise política faz com que essa inflação de discursos por vezes constranja articulistas – como será aqui o meu caso – numa desvantagem, tão bem explicada pelo filósofo alemão Peter Sloterdijk: “a descrição de descrições caracteriza uma época que transformou a desvantagem tardia em relação a tudo numa virtude da observação de segunda ordem”. Dada a impossibilidade de avançar em novas percepções, por vezes só resta como possibilidade produzir uma metanarrativa das  narrativas, e necessariamente pensar a partir do muito de interessante que está sendo pensado.

É a partir deste lugar híbrido entre articulista e professora universitária que pretendo refletir sobre o movimento “Escola sem partido”. Há cerca de 10 anos, conforme as diretrizes do Ministério da Educação foram incorporando demandas sociais e políticas nos currículos escolares – notadamente as questões de gênero, raça e etnia – , também cresceram as forças contrárias a estas transformações, provando que a cada pequeno avanço as reações mobilizam uma opressão desproporcional, violenta e desmedida. Os inúmeros projetos de lei que tentam barrar o uso do termo “gênero” nas escolas é apenas a ponta de um iceberg de articulações internacionais, religiosas e jurídicas cuja principal estratégia é levar para a Justiça – e tirar das mãos do Executivo – as decisões políticas mais fundamentais.

É sobre o tripé “formulação de argumentos-batalhas jurídicas-alianças religiosas” que o “Escola sem partido” vem se expandindo, apoiado financeira e ideologicamente por entidades como o Millenium e o Instituto Liberal. Reportagem de Marina Amaral (“A nova roupa da direita”) mostra que, ao contrário do que muitos de nós gostaríamos de acreditar, as forças conservadoras não são composta apenas por vetustos senhores de terno. São principalmente jovens – o que justifica a importância de entrar nas escolas e universidades – os angariados por bandeiras liberais e religiosas cujos ecos estamos ouvindo diariamente, sem necessariamente perceber as suas ligações.

Seguindo a lógica de que a paranoia é considerada pela psicanálise ao mesmo tempo um sintoma e um mecanismo de defesa, talvez seja possível pensar que em algum ponto o paranoico tenha razão. Ali onde sua desconfiança pode ser levada a sério, carrega potência de crítica. Como observadora atenta da atuação dos grupos religiosos pró-vida, cuja atuação no Brasil se modifica radicalmente a partir do final dos anos 1990, posso enxergar íntima semelhança entre estes grupos e o “Escola sem partido”. Ambos trabalham com os mesmos métodos: ampla articulação internacional, religiosa, legislativa, com apresentação de projetos de lei tanto no Congresso Nacional quanto nas câmaras municipais e assembleias legislativas.

Desta estratégia decorre uma forma particularmente perversa de ação: o estímulo a processos jurídicos. Nos grupos pró-vida, isso se deu com a denúncia de mulheres que são atendidas na rede pública de saúde depois de complicações de aborto clandestino. No “Escola sem partido”, a estratégia é oferecer aos pais um modelo de processo judicial contra os professores. Tudo se passa, no entanto, como se estes processos brotassem espontaneamente na sociedade, quando a rigor podem ser analisados como mais um indicador da profunda derrota da capacidade das forças progressistas de canalizar os interesses das camadas mais populares, infelizmente cada vez mais revertidos para a pauta moral.

Como escrevi no início, a crise política deflagrou uma inflação de debates, discursos, aulas públicas, discussões, encontros, manifestações, mobilizando pensadores formados nas universidades brasileiras, agora alvo não apenas de uma ameaçadora política de desmonte econômico, mas sobretudo também novo alvo do “Escola sem partido”. Calar a viva capacidade de crítica significa um retrocesso obscurantista sob o qual corremos o risco de morrer. Em silêncio.

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