De Fidel a Neymar

Correspondência

28.07.11

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Caro Sérgio,

Que maravilha essa sua história com o Fidel Castro, não só o encontro em Havana, mas também o destino da foto do “grande comandante”. Acho que esse episódio sintetiza todo um processo, o do entusiasmo e posterior desencanto da sua geração e da minha (que, afinal, talvez sejam a mesma) com Fidel, Cuba, o comunismo, o marxismo.

Você me pergunta o que penso “dessas coisas” (a política) e respondo que me identifico plenamente com essa sua história. Fui comunista na juventude, cheguei a ser filiado ao Partidão na época de faculdade. Éramos chamados pejorativamente de “reformistas” pelas outras correntes de esquerda, supostamente “revolucionárias”.

Depois, passei por um processo paulatino e mais ou menos doloroso de esclarecimento. É engraçado como resistimos a abandonar certas crenças. Primeiro, percebemos que o stalinismo é insustentável, mas nos refugiamos na ideia de que, se Lênin tivesse vivido mais e continuado no poder, ou se Trotsky (e não Stálin) o tivesse substituído, as coisas seriam diferentes. Depois percebemos que os germes do totalitarismo estavam no próprio Lênin e em seu “centralismo democrático”, e talvez mesmo em Marx e em sua ideia de “ditadura do proletariado”.

Houve quem, desiludido de Stálin e da URSS, tenha se voltado com esperanças para outras miragens: a China de Mao, a Cuba de Fidel, o Vietnã de Ho Chi Min. Mas chega um momento em que não há mais peneira que tape esse sol enganador e vemos que é tudo a mesma merda, para usar o português bem claro.

Muita gente passou da fé esquerdista para o outro extremo, a apologia do capitalismo liberal, do livre mercado, das políticas conservadoras. Conheço muitos ex-trotskistas e ex-maoístas que hoje são os maiores direitistas em política, patronais nas relações de trabalho e, não raro, moralmente reacionários.

O difícil, a meu ver, Sérgio, é manter aceso o senso crítico com relação ao capitalismo – um sistema que produz intrinsecamente a injustiça e a desigualdade, além de degradar o ambiente – sem cair numa alternativa fácil e perigosa.

Nossa, falei demais de política. Por que você foi me incitar?

O fato é que o marxismo, ou antes uma leitura superficial e mecânica do marxismo, prejudicou a mim e a muita gente da minha geração, por exemplo na abordagem da arte e da literatura. Muitas vezes li mal um romance ou um filme porque ficava procurando em sua trama apenas a luta de classes ou a posição ideológica do autor. Custou um bocado limpar a cabeça desse tipo de viés. Desembotar a sensibilidade exige tempo e persistência.

Mas a sensação de liberdade e de abertura de horizontes que vem junto com a superação do dogmatismo é semelhante à deliciosa e assustadora vertigem que nos acomete quando descobrimos que Deus não existe. (Pelo menos foi assim comigo.)

Mas chega de política. Quero voltar a um assunto que esteve presente no início da nossa conversa e que deixamos meio de lado nas últimas cartas: o futebol.

É que ontem foi uma noite de gala na Vila Belmiro, com uma das melhores partidas dos últimos tempos, a vitória de virada do Flamengo sobre o Santos, por 5 a 4. Neymar e Ronaldinho, com gols e jogadas memoráveis, me fizeram lembrar uma frase do grande historiador britânico (marxista, por sinal) Eric Hobsbawn: “Quem tiver visto Pelé e seus companheiros jogarem não haverá de negar ao futebol o estatuto de arte”.

No mais, fico encabulado com seus generosos elogios. Às vezes me vejo como uma fraude que os outros estão prestes a desmascarar. Mas na maior parte do tempo me conformo com a condição de típico jornalista, que sabe um pouquinho sobre uma porção de coisas – e usa as palavras de modo a fingir que sabe mais do que sabe de verdade.

Alguém já disse que o jornalista, assim como o “jogador polivalente”, é como o pato, que anda, nada e voa – mas faz tudo isso mal e porcamente. É a mais pura verdade.

Por isso invejamos os verdadeiros artistas, os verdadeiros escritores, os verdadeiros teóricos e pensadores.

Para terminar esta carta que já vai longa, uma pergunta simples: o que você achou da cobrança de pênalti do Elano, com “cavadinha”, e sobretudo da “embaixadinha” do goleiro Felipe depois de defendê-la?

Grande abraço,

Zé Geraldo

* Na foto da home que ilustra este post: Pelé em Paris (1971), em foto de Alécio de Andrade

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